O capitalismo e o planeta Haiti

Mas ele desconhecia/Esse fato extraordinário:/Que o operário faz a coisa/E a coisa faz o operário./De forma que, certo dia/À mesa, ao cortar o pão/O operário foi tomado/De uma súbita emoção/Ao constatar assombrado/Que tudo naquela mesa/- Garrafa, prato, facão – /Era ele quem os fazia/Ele, um humilde operário,/Um operário em construção./Olhou em torno: gamela/Banco,enxerga, caldeirão/Vidro, parede, janela/Casa, cidade, nação!Tudo, tudo o que existia/Era ele quem o fazia/Ele, um humilde operário/Um operário que sabia/Exercer a profissão. (Vinicius de Morais, Operário em Construção)

Marcio Sotelo Felippe – Justificando

Daniel Blake (dirigido por Ken Loach, Inglaterra, 2016) conta a história de um operário inglês da construção civil. Tem entre 70 e 80 anos. Cardiopata, não pode mais trabalhar. Sobrevive com o equivalente inglês do nosso auxílio-saúde. Repentinamente o benefício é cortado. A trajetória de Daniel Blake para recuperar o único meio de sobrevivência, sem o qual terá que dormir na rua e esmolar, pode ser descrita como um mix da Odisséia e do Processo, de Kafka.

Daniel Blake não é importante. Está no degrau inferior da escala social. Um mero operário. Na sua odisseia é tratado como um pedinte, como alguém a quem às vezes se dispensa de má vontade um ato caridoso. Ninguém o ouve. É escorraçado por funcionários do Estado como um cão vadio. Durante toda sua longa vida, imprimiu sua força, sangue, músculos, nervos, inteligência nas casas que construiu. Aquelas habitadas pelos cidadãos que são bem tratados, estão na escala superior da sociedade, são respeitados por funcionários do Estado. Frequentemente mandam no Estado.

O filme que conta a saga cruel a que é Daniel Blake é submetido retrata este momento especialmente pérfido do capitalismo – o neoliberalismo. Relatório da Oxfam[i] constatou que nunca se produziu tanta riqueza no mundo, mas concentrada “no grupo que compõe o 1% mais rico da população mundial, cuja renda aumentou 182 vezes mais que a dos 10% mais pobres entre 1988 e 2011”. Este é o tempo em que o 1%, não obstante esse processo insano de concentração da riqueza mundial de que é beneficiária, decidiu que os 99% têm direitos demais e que é preciso corrigir essa distorção.

O grande capital, jornalões conservadores, colunistas a soldo, acadêmicos entorpecidos declararam guerra aos direitos de Daniel Blake, aos direitos dos 99%. O projeto neoliberal significa transformar o planeta em um gigantesco Haiti. O filme de Ken Loach mostra a Inglaterra, que era o modelo clássico do Estado do bem-estar social, tornando-se Haiti. O Haiti é na Inglaterra. O Haiti é aqui.

Os modos de produção antigos eram apropriações diretas e ostensivas do trabalho alheio. Os gregos antigos sequer tinham uma palavra para o trabalho como função social. No Direito Romano o escravo era instrumentum vocale – literalmente, um instrumento que falava. O servo feudal trabalhava alguns dias para o senhor feudal e alguns para si.

Mas o capitalismo é um modo de produção complexo. A dominação não é aparente, a apropriação do trabalho alheio é oculta e por isso campo fértil para a dominação das consciências. Vemos apenas uma estrutura fundada em um contrato de trabalho perfeitamente “comutativo”: o trabalhador recebe por x horas e isso é tudo a que ele tem direito. E é trabalhador porque tem menos mérito. Se fosse mais inteligente ou esforçado estaria no outro polo do contrato. Uma forma de desvendar a natureza do capitalismo é recorrer à antiga distinção filosófica entre aparência e essência.

Marx diz n’O Capital que toda ciência seria supérflua se a manifestação e a essência das coisas coincidissem. A verdade é sempre um paradoxo. E toda Filosofia seria supérflua. A afirmação de Marx ressoa a fundação da Filosofia grega, desde os pré-socráticos. Conhecimento e ignorância como o jogo de sombras e luzes de Platão na caverna; a distinção aristotélica entre essência e aparência. Qualquer pessoa com reputação de versada em Filosofia já se viu diante da questão “para que serve a Filosofia”. O cotidiano e o senso comum, viver, trabalhar, lidar com os objetos da experiência – o que percebemos pelos sentidos – parecem prescindir de algo à primeira vista tão desprovido de proveito prático. A melhor resposta àquela pergunta é que toda ciência, toda filosofia, consiste em suspeitar da aparência e do senso comum, irmãos siameses. E fazer isto é parte do caminho para a emancipação da Humanidade.

Zenão de Eléia, pré-socrático, discípulo de Parmênides, suspeitava, por exemplo, muito seriamente do movimento. Ele dizia que em um mundo racional Aquiles, o herói homérico, tido como o homem mais veloz do mundo, perderia uma corrida contra uma tartaruga se desse uma mínima vantagem para ela. Se o movimento fosse racional, dizia Zenão, quando Aquiles chegasse ao ponto em que a tartaruga partiu, ela estaria em outro ponto. Quando Aquiles chegasse ao segundo ponto, a tartaruga estaria em outro, já que o espaço pode ser dividido em infinitos pontos. Aquiles jamais alcançaria a tartaruga.

A Física tradicional podia caçoar de Zenão. Mas a Física quântica ainda não sabe o que fazer com as descobertas sobre tempo, espaço e movimento. Uma partícula subatômica pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Zenão ilustra a atitude filosófica por excelência: suspeitar da aparência. Alguém um dia suspeitou que o céu não era um espaço para o desfile diário do sol à nossa volta. Ou que seu dedo apontado para o firmamento não era maior que as centenas de estrelas que ele encobria.

Crer sem duvidar responde pelos mais variados males sociais. Boa parte da população brasileira nunca suspeita que tratar bem um ser humano possa ser mais seguro para a sociedade do que tratá-lo como uma fera enjaulada. E tantas vezes por bagatelas, ou por portar ou vender uma substância que, por danosa que seja, o é menos que o álcool, que faz fortunas para o grande capital. Nunca suspeita que essa decisão deve ser do indivíduo, como exercício de sua autonomia, e jamais do Estado. Nunca suspeita que jornais e formadores de opinião podem ter interesses escusos que apresentam elegantemente como um bem para a sociedade. Nunca suspeitam que números apresentados pelo Estado são distorcidos para aniquilar direitos. Não duvidar, não suspeitar, é um não pensar.

O que nos remete à ideia de Hannah Arendt, de fundo kantiano, de que o mal decorre do raso, do flutuar na superfície do senso comum, de crer infantilmente no mundo das aparências. O pensamento que vai às raízes, ao ser que reside na essência, emancipa o ser humano. Emancipa a humanidade. Somente sendo radical – ou seja, indo às raízes das coisas – se encontra o bem.

Marx suspeitou que o contrato de trabalho “livre” (na verdade, o constrangimento econômico obriga o trabalhador a firmá-lo para sobreviver) que constitui o capitalismo não era comutativo. Tendo lido os economistas clássicos ingleses, viu que o valor de uma mercadoria era decorrente do trabalho socialmente necessário para produzi-lo, o que explicava a diferença de valor entre um lápis e um navio. E que no contrato em que o capitalista pagava x por x horas de força de trabalho, o valor que o trabalhador incorporava à mercadoria era superior ao que recebia.

Denominou de mais valia: trabalho não pago, o que vulgarmente denominamos de lucro. Toda a estrutura do capitalismo estava assentada na aparência enganosa desse contrato “justo”. A descoberta da essência do contrato de trabalho minava as bases morais do capitalismo, para além ainda da brutal desigualdade e miséria que gerava. E, sobretudo, tal como nos modos de produção anteriores, via-se que o proprietário era desnecessário. Também mero apropriador do trabalho alheio.

Convivemos com essências ocultas por aparências o tempo todo. Despertamos com o alarme de um smartphone. Dormimos em uma cama de madeira coberta de tecidos em um recinto protegido do mundo exterior por concreto, tijolos e outros materiais. Fervemos água em recipiente de alumínio para sorver o café em um objeto de vidro. Nestes singelos 10 minutos do cotidiano estamos rodeados de coisas. Mas são apenas aparências de coisas.

Há nelas uma essência que é o trabalho humano: operários construíram a casa; operários transformaram metais em pequenas e delicadas peças de um smartphone; operários transformaram árvores em camas; operários fizeram de vegetais tecidos; operários transportaram o gás até nosso fogão; operários fizeram de plantas pó de café empacotado; operários transformaram areia em vidro. A essência de todas estas coisas é o trabalho humano. Força física e psíquica, sangue, músculos, nervos, mente que ganham a forma de mercadorias.

Assim, desde estes 10 minutos triviais do cotidiano estamos rodeados de essências que consistem no trabalho de milhões de trabalhadores. Eles estão invisíveis ao nosso lado. Desvendar a natureza oculta do capitalismo mostra que essa essência nada tem a ver com o 1% que é dona do mundo. Meros apropriadores do trabalho alheio, tal qual senhores de escravos e senhores feudais, os capitalistas donos do mundo que estão concentrando mais e mais a riqueza mundial são simplesmente desnecessários. No entanto, são eles que estão nos conduzindo à barbárie.

*Pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.

[i] Organização não governamental criada na Inglaterra em 1942 para combate à pobreza. Hoje é uma confederação internacional.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

two × 1 =