Por Mauro Lopes, no Outras Palavras
Há dois recursos discursivos que as elites usam para enrolar os pobres do país, tratando-os sempre como crianças: o primeiro é dizer que os assuntos são complicados demais e que não dá para entender, como acontece no caso dos juros da dívida pública; o segundo é simplificar e distorcer para agitar fantasmas no imaginário das pessoas, como é o caso da história tosca de que a economia do país seria como a de uma família. Na verdade, há um terceiro recurso discursivo, para situações extremas: a Polícia Militar e agora, como o demonstra o Espírito Santo, o exército.
Esta breve introdução para o artigo a seguir estava pronta quando me encontrei ontem (8) com o amigo Eduardo Fagnani, talvez a pessoa que entendeu com maior profundidade o processo de falência da Previdência Social engendrado pelo novo regime (veja uma entrevista de Fagnani aqui). Ele citou livremente Joaquim Nabuco em “O abolicionismo”: “Num país de 516 [anos] de história, quase 300 foram debaixo da escravidão, e isso determinou a alma das elites, que olham para o povo hoje como olharam durante 300 anos”.
De fato, é uma imagem precisa: as elites enxergam os pobres de hoje como os escravos injustamente libertos, mais do que como crianças. Ressoa até hoje a indignação do senador Barão de Cotegipe com a Lei Áurea registrada pelo Jornal do Senado em 14 de maio de 1888: “a Constituição, a lei civil, as leis eleitorais, as leis de fazenda, os impostos etc., tudo reconhece como propriedade e matéria tributável o escravo, assim como a terra”. Além de traçar um sinal de igualdade entre a propriedade das pessoas e de bens como a terra, ele protestava contra a agressão ao que há de mais sagrado para as elites brasileiras, o direito de propriedade, pois com a abolição decretava-se, na visão do senador, que “não há propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei sem atenção nem a direitos adquiridos nem a inconvenientes futuros”. A voz de Cotegipe está reverberada nos discursos de Romero Jucá, Aloysio Nunes, Aécio Neves, na torrente de ódio contra os pobres que inunda as redes sociais, na lógica que os banqueiros e seus aliados decretam ao país…
Só isso explica que um fato escandaloso (dentre tantos fatos escandalosos) seja encarado pelas elites e suas mídias como algo normal, corriqueiro: os três maiores bancos em operação no país (Itaú, Bradesco e Santander) lucraram em 2016 mais de 45,5 bilhões de reais, é a festa da Casa Grande. Na senzala, são mais de 12 milhões de “escravos libertos” sem emprego.
De um lado, 25 Setúbals e quatro Vilelas, ao lado de alguns grupos poderosos e apaniguados tomaram para si 22,1 bilhões de reais em 2016 (veja a lista aqui); de outro, mais de 12 milhões de pessoas, Silvas, Santos, Limas… sem trabalho, com o espectro da fome rondando suas casas.
Há uma crise gravíssima para os pobres no país. Enquanto isso, ano passado, a filial brasileira do Santander “salvou” o resultado ruim da filial inglesa e garantiu ao banco espanhol um ano “acima das expectativas”, para alegria dos acionistas.
Uma conta simples, singela, mas reveladora: se dividíssemos os mais de 45 bilhões de reais de lucros dos bancos entre os 12 milhões de desempregados, haveria R$ 3.800,00 para cada um deles. É pouco? Para a turma da Casa Grande é –por vezes, o preço de um jantar num dos seus restaurantes. Para os pobres, comida na mesa por meses a fio.
A festa da elite brasileira não para –nunca. Mas não há compaixão pelos pobres; vai piorar para eles em 2017. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, ao final deste ano haverá 13,6 milhões de desempregados no país. De cada três pessoas desempregadas no mundo em 2017, uma o será no Brasil. Enquanto isso, na Casa Grande…
A política do país existe apenas para perpetuar esta divisão da renda nacional. Não é por outro motivo que os juros do Brasil são o que são. Eles garantem o lucro dos bancos, que é integralmente feito com base na soma do que auferem com os juros pagos a eles pelo Estado brasileiro mais o que arrancam de milhões de pessoas infelicitadas nas operações com estas instituições, cujo rastro conhecemos pelas empresas quebradas, famílias desesperadas, bens tomados.
Os juros estratosféricos não garantem apenas os lucros dos bancos. Há uma teia de sócios menores beneficiados por eles; cerca de dois milhões de pessoas (ao redor de 1% da população do país), entre altos funcionários do Estado, executivos, jornalistas, empresários, artistas globais. São estes que se encarregam de replicar o discurso oficial -não são papagaios por “amor à causa”; é apenas dinheiro.
Um argumento recorrente deste grupo (banqueiros + rentistas) é que não são os bancos os responsáveis pelos juros, que o governo é o culpado, que a gastança desenfreada dos governos do PT… todos conhecem a cantilena. Os bancos, segundo este padrão discursivo, seriam quase vítimas da política econômica oficial, pois com seus padrões de eficiência de gestão exemplares no mundo, seriam altamente rentáveis com qualquer taxa de juros.
O que tal discurso não informa? Que a política econômica do país é estabelecida exatamente pelos bancos. O atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, foi alto executivo do Bank of Boston e hoje recebe a bagatela de R$ 250 mil mensais como aposentadoria do Bank of America Merrill Lynch, que comprou o Bank of Boston (se quiser, entenda como este fato articula-se com a reforma da Previdência clicando aqui). O ministro da Fazenda que marcou o segundo mandato de Dilma, interrompido pelo golpe, Joaquim Levy, era alto executivo do Bradesco. O presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, é acionista do Itaú e alto executivo do banco. Os demais gestores da política econômica estão dentre os dois milhões de pessoas que integram o universo dos rentistas no Brasil.
O Brasil nunca deixou de ser deles, apesar da tolerância com a distribuição das sobras do banquete durante os governos do PT. As commodities deixaram de ser a galinha dos ovos de ouro que amorteceram o embate distributivista e o ódio acumulado dos sinhôs e sinhazinhas ao testemunharem a tímida ascensão dos escravos libertos subiu à tona com toda a violência.
Agora, só se a senzala levantar-se. O que está acontecendo no Espírito Santo pode ser um aviso, mas a distância entre os saques de supermercados, a mudança na taxa de juros e o fim da senzala é muito maior que entre o planeta e a lua.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.
Foto: Severino Silva, O Dia