Democratização pouco alterou estrutura das polícias. Entrevista especial com Ariadne Natal

Vitor Necchi – IHU On-Line

O fato de o regime ditatorial de 1964 ter se encerrado não foi suficiente para erradicar das forças policiais práticas consolidadas durante o regime de exceção. “Como sabemos, a passagem para a democracia pouco alterou a estrutura das instituições policiais, de maneira que muitas das práticas do período ditatorial se mantiveram no período democrático”, afirma Ariadne Natal em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Em consequência, a violência é adotada de maneira recorrente como instrumento e recurso para a contenção da criminalidade, “embora o discurso oficial seja de total aderência ao Estado de Direito”. Os mecanismos de controle da atividade policial são frágeis, e isso favorece a continuidade de práticas violentas.

Ariadne considera preocupante os casos de policiais que empreendem operações para vingar colegas mortos ou que agem como se fossem justiceiros, pois eles “deixam de exercer o papel voltado para a defesa do Estado de Direito e abrem um ciclo de retaliações que coloca em risco o papel de todas as instituições deste Estado”. Ao adotarem o discurso de “fazer a justiça”, promovem ações extremas que “afrontam diversas instituições […] e colocam soluções que são muito mais extremas do que a própria lei prevê, determinando uma pena de morte sumária e ilegal, sob a justificativa de fazer justiça com as próprias mãos”. As execuções promovidas por policiais “seriam muito menos frequentes sem um cenário de apoio social, cultural e institucional”.

O agravamento da violência e a deslegitimação dos direitos humanos sustentada por vários grupos, incluindo políticos, imprensa e populares, estabelece uma situação em que “suspeitos e acusados de crimes não devem ter sua integridade física respeitada”. Ariadne constata que “um dos grandes paradoxos da democracia brasileira é que os direitos humanos passam a ser objeto de contestação justamente no final do regime militar, momento em que deveriam se tornar universais”.

A pesquisadora aponta que qualquer tentativa de pensar maneiras de contornar estas questões “deve passar, primeiro, pelo reconhecimento da existência do problema e de sua magnitude”. Na sequência, é necessário mapear as causas que são múltiplas. “Certamente o modelo militar é um entrave para um modelo de policiamento em consonância com um regime democrático. Isto porque a estrutura militar é caracterizada pela formalidade, rigidez, falta de flexibilidade, propensão ao uso da força, além da dependência da coerção, das armas e do poder físico”, detalha. Para Ariadne, em resumo, é necessário implementar “mudanças institucionais que envolvem a desconstrução do que é central no modelo militar, que é a lógica da guerra e de aniquilação do inimigo”.

Ariadne Natal é doutoranda e mestra em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O uso da força pela polícia deve obedecer a critérios de necessidade e de proporcionalidade. Por que se tem a impressão de que os policiais agem sem limite?

Ariadne Natal – Embora a polícia tenha a prerrogativa de fazer uso da força em determinadas situações, de acordo com as diretrizes e treinamentos este uso deve ser estritamente controlado e sempre observar os princípios da legalidade, da necessidade, da proporcionalidade, da moderação e da conveniência. O uso da arma de fogo deve ser evitado, de maneira que ela seria acionada apenas em situações de risco iminente de vida ou lesão grave para o policial ou terceiros. Em uma escala progressiva, o policial inicialmente procura dissuadir apenas por meio de sua presença, quando ela falha ele deve tentar a comunicação, depois a contenção física, uso de armas menos letais e, quando todos os demais recursos falharem, o uso de armas letais é permitido nas situações de risco.

O que diferencia o uso da força da violência sem limites são justamente todos esses parâmetros e controles a respeito de seu emprego. No entanto, na prática, a linha que separa o emprego legítimo da força e a violência pode ser bastante tênue, pois em última instância, por mais regulamentos que possamos estabelecer, existe o fator humano no processo decisório e a discricionariedade policial. Em sua essência, o trabalho cotidiano dos policiais envolve decisões que têm o poder de limitar as liberdades civis dos cidadãos, envolvem escolhas a respeito de como e quando empenhar medidas coercitivas (quando, quem e como parar, conter, conduzir, prender e atirar).

Geralmente, na polícia as decisões mais importantes (como o direito de vida ou morte) são feitas pelos policiais que estão na ponta, em frações de segundos, diante de forte carga emocional e muitas vezes longe de qualquer tipo de supervisão. Entre os regulamentos e a discricionariedade, entram também outros elementos, existem pressões e demandas (que vêm de parte da sociedade, parte da imprensa e parte da própria corporação) para que as ações ultrapassem o uso legítimo da força e envolvam o emprego de violência. Não são raros os casos em que a necessidade e a intensidade da força empregada são questionadas e vistas como ações desnecessárias, violentas e excessivas.

IHU On-Line – Durante a ditadura, a tortura foi usada como uma política de Estado aplicada pelo Exército e pelos órgãos de repressão. A rigor, nunca houve uma condenação da tortura no país, mesmo ela sendo considerada ilegal. Isso favorece a continuidade dessa prática?

Ariadne Natal – As polícias brasileiras têm um longo histórico de episódios de violência que são inclusive anteriores ao período da ditadura militar. O que diferencia o regime militar dos momentos anteriores a ele é o uso deliberado das polícias estaduais e o recurso da violência policial (por exemplo, a tortura) como instrumentos de repressão sobre aqueles que faziam oposição política ao regime, além do fato desta violência passar a atingir também a classe média, que até então não era atingida por estes métodos violentos. Como sabemos, a passagem para a democracia pouco alterou a estrutura das instituições policiais, de maneira que muitas das práticas do período ditatorial se mantiveram no período democrático.

Leis que identifiquem claramente os comportamentos abusivos como ilegais são conquistas muito importantes da democracia, mas sozinhas elas não são suficientes para inibir estas práticas. O uso da violência como instrumento e recurso para a contenção da criminalidade ainda é prática recorrente, disseminada e aceita, embora o discurso oficial seja de total aderência ao Estado de Direito. As polícias brasileiras convivem com essa dualidade no cotidiano: de um lado, o discurso oficial de manutenção de conduta impecável e da existência de mecanismos de controle contra a violência; de outro lado, uma mensagem informal que emana da sociedade, da imprensa, da instituição policial, dos superiores e ainda do Ministério Público e do Judiciário, expressando uma atitude de perdão diante das manifestações de violência, por entender que este é um instrumento eficaz para alcançar o sucesso na “guerra” contra o crime, de modo que há uma espécie de código não objetivamente expresso de que os policiais que recorreram à violência devem ser inocentados das ações disciplinares ou judiciais que correm contra eles. A falta de controle favorece a continuidade de práticas violentas e sinalizam sua aceitação.

IHU On-Line – Pode-se afirmar que as manifestações ocorridas a partir de junho de 2013 inauguraram um novo tempo na Polícia Militar, no que tange às táticas empregadas e ao grau de violência?

Ariadne Natal – Conflitos e emprego da violência em manifestações são anteriores a junho de 2013, o que vimos de novo foi principalmente a magnitude (número de envolvidos) e recorrência, além da multiplicidade de registros realizados não apenas pela imprensa, mas pelos manifestantes. Outro elemento novo foi o fato de as manifestações terem uma organização mais horizontal. Sem lideranças claras para negociação, a polícia não estava preparada para lidar com este arranjo.

Aquelas manifestações e as cenas de violência de lado a lado trouxeram à tona discussões sobre o direito de manifestar, como ele pode ser garantido, qual deve ser o papel da autoridade, quais são os direitos e deveres dos manifestantes etc.

IHU On-Line – Nos protestos realizados em vários Estados, desde 2013, a Polícia Militar agiu com uma violência considerada excessiva e seletiva, conforme vários registros feitos pela imprensa e pelos próprios manifestantes. Por outro lado, havia grupos que saíam às ruas com intenção de usar a depredação como instrumento de protesto. Frente a posturas tão distintas por parte do público em um mesmo evento, como os policiais devem agir?

Ariadne Natal – Manifestações e protestos são fundamentais para a saúde de uma democracia, de maneira que as autoridades devem estar treinadas para garantir o exercício deste direito como algo corriqueiro e não como uma anomalia. Em tese, em uma manifestação a polícia não seria inicialmente necessária, pois para discutir rotas, fazer isolamento e garantir a fluidez e circulação daqueles que não fazem parte do protesto, os agentes de trânsito da prefeitura seriam suficientes. A polícia apenas deveria ser acionada para garantir a integridade quando de fato ocorrem ações que violem a segurança física ou a propriedade e, nestas situações, os autores devem ser identificados e responsabilizados individualmente. Se, por um lado, a polícia não pode se eximir e precisa agir em situações de violência, por outro lado, ela não pode agir de maneira indiscriminada, e o uso da força deve ser um recurso extraordinário e minimizado, evitando colocar a si mesmo e a multidão em risco.

IHU On-Line – No dia 4 de setembro, em São Paulo, a polícia prendeu um grupo que se manifestaria contra o presidente Michel Temer. Um dos integrantes, que não foi detido, acabou identificado como um capitão do Exército que estaria infiltrado entre os manifestantes. O quão grave é este episódio e por quê?

Ariadne Natal – Este foi um caso extremamente grave, pois ele indica que haveria uma articulação premeditada entre os governos federal e estadual para infiltrar um agente com condutas bastante questionáveis em meio a movimentos sociais e manifestantes que se organizavam contra o governo. É um tipo de ação que beira um Estado policial e coloca em risco a própria democracia. As tentativas de indiciar de maneira forçada os jovens envolvidos no episódio foram condenadas pelo próprio juiz que os liberou, que condenou o viés ideológico da ação.

IHU On-Line – Nos últimos anos, em situações específicas, as Forças Armadas colocaram efetivos na rua para atividades de policiamento, alterando a paisagem com veículos de guerra e soldados armados. Isso não gera na população uma sensação de que a militarização é garantia de mais segurança?

Ariadne Natal – Certamente o Exército oferece um modelo adequado para a questão da segurança pública. As Forças Armadas possuem treinamento e equipamentos voltados para lidar com um inimigo externo, em situação de guerra, com objetivo de garantir a soberania nacional (são situações em que, muitas vezes, direitos elementares são suspensos e a violência permitida). Esta não é uma instituição adequada para fazer segurança pública em um Estado Democrático de Direito, não apenas porque o Exército não obedece à mesma legislação que a corporação policial, mas principalmente porque os objetivos da ação das Forças Armadas e das forças policiais são antagônicos, a polícia existe para garantir direito e não para violá-los.

IHU On-Line – Quando um policial é morto em serviço, seus colegas reagem com rapidez em busca de vingança, e o autor do crime inicial acaba, quase sempre, assassinado. Na população, percebe-se uma sensação de vitória, como se fosse uma conta de “menos um”. Como deter a sanha vingativa dos policiais, de maneira que os ritos legais sejam cumpridos?

Ariadne Natal – São casos muito preocupantes, pois os policiais que se vingam ou agem como justiceiros deixam de exercer o papel voltado para a defesa do Estado de Direito e abrem um ciclo de retaliações que coloca em risco o papel de todas as instituições deste Estado. O discurso muitas vezes é de “fazer a justiça”, mas são ações que tomam uma forma extrema e afrontam diversas instituições (alienariam o poder de investigar e indiciar da Polícia Civil, de acusar do Ministério Público, de julgar do Judiciário, de condenar do júri e do Judiciário e, por fim, o poder de executar a pena, que cabe ao Sistema Penitenciário) e colocam soluções que são muito mais extremas do que a própria lei prevê, determinando uma pena de morte sumária e ilegal, sob a justificativa de fazer justiça com as próprias mãos.

IHU On-Line – Quando um criminoso é executado pela polícia, isso é celebrado por segmentos expressivos da mídia e da população. Isso encoraja mais ainda os policiais a seguirem com seus protocolos não oficiais?

Ariadne Natal – Ações violentas e execuções não são produto apenas da decisão individual de agentes, mas têm múltiplas raízes históricas, sociais, culturais, situacionais, institucional e individuais. Para compreender estas dinâmicas, temos que ir além dos autores e compreender o papel da sociedade, da imprensa e do Estado em reproduzir e fomentar as ideologias de limpeza social que sustentam a participação de policiais em ações violentas e execuções. As ações de execução com participação de policiais seriam muito menos frequentes sem um cenário de apoio social, cultural e institucional.

Existe, no contexto brasileiro, um movimento de deslegitimação dos direitos humanos que é sustentado por um expressivo grupo de pessoas (inclui políticos, imprensa e populares) para os quais suspeitos e acusados de crimes não devem ter sua integridade física respeitada. Um dos grandes paradoxos da democracia brasileira é que os direitos humanos passam a ser objeto de contestação justamente no final do regime militar, momento em que deveriam se tornar universais. Apesar do retorno à democracia e da expansão de direitos consagrados ao indivíduo, parte da sociedade rechaça princípios e garantias legais identificados como estímulos à criminalidade e à impunidade. O que acontece é um processo de exclusão moral. Pessoas de um determinado perfil, quando suspeitas de praticar um crime, são colocadas fora do universo da Justiça, teriam seus direitos suspensos e seriam passíveis de eliminação. Neste sentido, a execução de pessoas, ao invés de ser vista como um problema grave, passa a ser tratada como ação justificada, pois quem rompe com as regras sociais estaria incorrendo no risco de sofrer esta sanção. A vítima de justiçamento não só é desumanizada, mas chega a ser considerada culpada e desencadeadora da agressão à qual é submetida, seu sofrimento seria merecido e justificado pelo seu comportamento prévio. Esta lógica alimenta a ação de policiais e isto ocorre com forte respaldo social e institucional.

IHU On-Line – O papel legal dos policiais é garantir segurança aos cidadãos, mas não cessam os relatos de agressões contra pessoas de diferentes condições, como pobres, negros, estudantes e manifestantes. O que falta aos policiais? Formação sintonizada com os direitos humanos? Capacitação técnica? Consciência social? Ética? Respeito ao outro?

Ariadne Natal – Primeiro é preciso destacar que, em seus discursos oficiais, a maior parte das instituições policiais brasileiras trata do problema da violência policial como casos isolados e circunscritos a alguns policiais com desvios de conduta, de maneira que as corporações não poderiam ser responsabilizadas pelas ações destes indivíduos. No entanto, os dados evidenciam que características pessoais e individuais não podem ser apontadas como o único e principal elemento explicativo para um fenômeno tão complexo — e, no caso brasileiro, tão recorrente — quanto a violência intencional e deliberada de policiais.

Qualquer tentativa de pensar como contornar estas questões deve passar, primeiro, pelo reconhecimento da existência do problema e de sua magnitude. Em segundo lugar, pelo mapeamento de suas causas que, no caso da violência policial, são múltiplas: histórico (nosso legado autoritário que tem influência sobre a forma como as instituições policiais foram constituídas, seus valores e objetivos), sociocultural (estrutura social, valores e cultura de incentivo a ações que desrespeitam e deslegitimam direitos humanos), organizacional (características das instituições de segurança, seu caráter militarizado, o perfil e orientação de seus gestores) e, por fim, as características individuais de policiais (e como elas podem afetar sua atuação). Policiais não se tornam violentos do dia para a noite, violência policial deve ser entendida como resultado da confluência destes diversos fatores acima elencados.

Depois do reconhecimento do problema e de suas causas, podemos começar a pensar em mecanismos de controle para diminuir esta violência. Os mecanismos de controle podem ser reativos ou preventivos. Os mecanismos reativos estão voltados para a responsabilização dos agentes envolvidos em casos de abusos depois que eles ocorrem (por exemplo, punições disciplinares, responsabilização penal, responsabilização dos comandantes, mobilização da opinião pública, constrangimento de autoridades etc.). Os mecanismos preventivos são iniciativas mais amplas que, da perspectiva da polícia, podem envolver mudanças estruturais com relação ao modelo, à missão e aos valores institucionais. É preciso que estas instituições e seus comandos se posicionem claramente pela inaceitabilidade da violência como recurso de ação cotidiana e isto precisa estar refletido na seleção e recrutamento dos candidatos, nos treinamentos e processos de formação e na orientação para a ação. A legitimidade policial passa, necessariamente, pela adoção de procedimentos justos no contato cotidiano com a população, de maneira que quando a polícia é percebida como violenta, isto mina sua relação com a sociedade e provoca distanciamento, desconfiança, raiva e resistência.

IHU On-Line – A polícia atua intensamente em crimes menos violentos cometidos por pessoas mais empobrecidas, principalmente jovens negros e da periferia, que acabam presos em flagrante. Podemos pensar que há uma seletividade na ação da polícia?

Ariadne Natal – Diversas pesquisas têm apontado esta seletividade da ação da polícia e o tratamento desigual de acordo com o perfil socioeconômico daqueles que se relacionam com ela. Nos casos da lei de drogas, por exemplo, embora existam usuários e traficantes de diferentes perfis sociais, a “clientela” típica da polícia é jovem, de sexo masculino, negro, de baixa renda e escolaridade. Estes são os suspeitos de sempre, serão monitorados, parados e revistados, e estes irão compor o público do sistema carcerário posteriormente. O mesmo podemos dizer da violência policial, ela não se distribui de maneira equitativa, mas atinge a este mesmo público. Existe um arquétipo de quem é o bandido, quem pode ser maltratado, quem pode ser preso e quem pode ser morto, este é reconhecido como inimigo a ser combatido.

IHU On-Line – A sensação crescente de medo e de insegurança respalda o recrudescimento de medidas de segurança e a criação de dispositivos de controle e de vigilância. Nesse contexto, os policiais não estariam se sentindo autorizados tacitamente a ir além da legalidade?

Ariadne Natal – Nossas instituições de segurança e justiça se baseiam em um modelo dissuasório no qual o principal estímulo para a obediência às leis é a ameaça de coerção. Neste modelo, o objetivo é aumentar os riscos para um potencial criminoso (maximizando a possibilidade de ser pego e a severidade da punição), desestimulando suas ações. Este modelo envolve leis penais cada vez mais duras que prescrevam punições longas e severas, policiamento baseado na intensa vigilância, o que envolve vultoso efetivo policial patrulhando as ruas, grande exposição de armas, veículos opulentos e aparato bélico, presença de câmeras de vigilância, blitz e revistas constantes etc. Neste sistema, o respeito à lei e à autoridade busca se garantir pela ameaça e pelo medo.

No entanto, em contextos de sociedades democráticas, basear o sistema legal e o trabalho da polícia em monitoramento, vigilância e coerção, pode ser custoso e controverso. Do ponto de vista econômico, trata-se de um modelo que consome muitos recursos, dada a necessidade de constante expansão do efetivo policial, sofisticação de equipamentos e armamentos, sem que existam indícios de que estes investimentos sejam capazes de reverter o quadro de medo e insegurança ou extensas pesquisas que avaliem os efeitos destes investimentos sobre a incidência de criminalidade. Este modelo implica em custos sociais na medida em que o paradigma de constante vigilância gera intrusão, cerceia e limita liberdades, o que pode distanciar a população da polícia e impactar sobre os níveis de confiança na instituição. Outra consequência direta é a possibilidade da emergência de uma polícia mais violenta, que age com maior truculência, principalmente contra minorias.

IHU On-Line – A desmilitarização da polícia é apontada como algo positivo para combater as arbitrariedades e os excessos cometidos pelos agentes de segurança do Estado, mas as perspectivas de que isso ocorra são mínimas, pelo menos atualmente. Sendo assim, o que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

Ariadne Natal – Certamente o modelo militar é um entrave para um modelo de policiamento em consonância com um regime democrático. Isto porque a estrutura militar é caracterizada pela formalidade, rigidez, falta de flexibilidade, propensão ao uso da força, além da dependência da coerção, das armas e do poder físico. São fatores que limitam as possibilidades de resolução de conflitos e podem estimular o uso da força e da coerção em situações em que elas seriam dispensáveis. O modelo militar é baseado na guerra e no confronto com o inimigo, neste modelo a força física é o método preferencial para a regulação de conflitos, o que se mostra inadequado para responder às demandas de uma sociedade democrática, que pressupõe que uma polícia não seja respeitada pelo medo, mas que seja reconhecida por sua capacidade de prestar serviços de qualidade, agir de acordo com procedimentos justos e garantir respeito a direitos.

Acima eu elenquei algumas das possíveis saídas, mas elas passam necessariamente por mudanças institucionais que envolvem a desconstrução do que é central no modelo militar, que é a lógica da guerra e de aniquilação do inimigo.

IHU On-Line – A Polícia Militar é machista?

Ariadne Natal – É possível pensar esta questão tanto da perspectiva interna quanto externa. Internamente sabemos que as corporações têm um efetivo feminino muito menor do que o masculino, que não há igualdade de oportunidades, que mulheres sofrem com mais assédio, são menos reconhecidas profissionalmente e raramente ocupam patentes mais altas e posições de comando. Com relação ao público externo, a polícia não tem treinamento adequado para lidar com questões de gênero, ainda que seja acionada muitas vezes para agir em conflitos domésticos ou casos de violência sexual. Por esta razão, são comuns relatos de situações em que policiais aconselham mulheres a não prestar queixa contra companheiros violentos ou mesmo duvidem e minimizem relatos de abuso sexual. São comportamentos que revelam o machismo na atuação cotidiana de policiais.

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