A resistência dos sem-teto na avenida Paulista, por Guilherme Boulos

Na Folha/MST

Nesta quinta (2) completam-se 15 dias que centenas de pessoas acamparam na avenida mais famosa de São Paulo em luta por moradia popular. Vindos de diferentes ocupações –das zonas leste e sul, de Paraisópolis e da região metropolitana –os sem-teto têm resistido ao sol, à chuva e permanecem firmes em frente ao escritório da Presidência da República.

A pauta é conhecida de todos: a retomada das contratações de moradia para os mais pobres, através do Minha Casa, Minha Vida. Desde que o governo Michel Temer foi alçado ao Planalto, nenhuma moradia da faixa 1 do programa (destinada a famílias com renda mensal inferior a R$1.800) foi contratada. É nessa faixa que está o grosso do deficit habitacional brasileiro, pessoas que não conseguem obter crédito bancário e, por isso, precisa do programa social para ter garantido seu direito a morar dignamente.

Na contramão desta necessidade, o governo Temer tem ampliado as faixas do Minha Casa, Minha Vida que atendem famílias com maior renda, transformando-o praticamente em linha de crédito imobiliário. É a reedição do velho BNH (Banco Nacional de Habitação) dos militares. O acampamento do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) na avenida Paulista surgiu contra essa política.

Mas, ao longo destes 15 dias, a ocupação ganhou um simbolismo bem mais amplo. Primeiro pela presença de gente pobre vivendo num dos metros quadrados mais caros do país. Assim como o pedreiro da música de Chico Buarque, que “morre na contramão atrapalhando o público”, a presença dos sem-teto na Paulista incomoda. Incomoda por serem pessoas que ousaram sair da invisibilidade; por colocarem-se de igual para igual, na mesma calçada, ante outros que têm a íntima convicção de sua superioridade.

O sociólogo Jessé Souza tratou do fenômeno da “subcidadania” no Brasil, uma herança da Casa Grande. Gente que é tratada como naturalmente inferior, com desprezo e sem reconhecimento social, a quem está reservado o elevador de serviço, a porta dos fundos e outras excrescências de uma sociedade escravocrata. De repente, essa gente toma o centro financeiro da cidade, com altivez e cabeça erguida.

Os sem-teto levaram a solidariedade para a avenida. Uma cozinha coletiva que serve 300 pessoas diariamente, inclusive a população em situação de rua que não faz parte do movimento. Pessoas, de várias classes sociais, que desafiam a indiferença e levam doações de alimento, água e colchões. Alguns param para ouvir e conversar. Gestos estranhos àquela selva de pedra.

O acampamento tornou-se ainda um polo de resistência política e cultural. Aulas públicas sobre reforma da Previdência, educação, feminismo e tantas outras. Gente compartilhando seu conhecimento em oficinas abertas. Artistas levando sua música em shows gratuitos. A programação cultural, organizada pelo coletivo Fora do Eixo, deu vida à avenida.

Nestes 15 dias passaram por lá figuras como Emicida, Criolo e Sérgio Vaz; como a economista Laura Carvalho, o filósofo Renato Janine Ribeiro e os jornalistas Leonardo Sakamoto e José Trajano; a ex-ministra Eleonora Menicucci, a cartunista Laerte e o músico Eduardo Gudim; Frei Betto e o pastor Ariovaldo Ramos. E muitos outros que vieram oferecer seu conhecimento ou sua arte aos sem-teto. Sem falar nos parlamentares solidários à luta e militantes do movimento social e sindical.

As frias calçadas da Paulista receberam o calor da solidariedade e da luta. A decisão dos sem-teto de resistir até ter sua pauta atendida revela a dignidade de um povo que, mesmo sob duras condições, prefere lutar a sucumbir.

Foto: Midia Ninja

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