Um João ninguém

Por Eduardo Januário Newton, no Justificando

Ao som de “vida louca, vida” escrevo essas linhas que decorrem da mistura de sentimentos que tomou conta de mim após a última audiência criminal que participei. Tristeza, indignação e rebeldia me impediram, mesmo após a folia capitaneada por Momo, de apagar da memória o que ocorreu naquela fria sala de audiência localizada no Palácio da Justiça.

A melhor forma de nominar o meu defendido seria João, mas não se trata de um João qualquer, ali naquele dia eu conhecia um verdadeiro João Ninguém. Ele estava sendo apresentado, em menos de 1(um) mês, pela segunda vez para uma audiência de custódia. Tudo conspirava em seu desfavor. A autoridade do tablado havia o reconhecido e demonstrava toda a sua insatisfação em ter sido concedida a liberdade provisória dias atrás. Dessa vez, ele seria implacável em opinar – pois é esse seu papel – pelo cárcere provisório.

O Sr. Ninguém não possuía comprovante de residência, pois morava debaixo do viaduto próximo a um shopping center; tampouco, apresentava documentação que atestasse o exercício de atividade lícita, já que labuta com reciclagem, ou seja, meu defendido retira do lixo produzido em nossa sociedade o seu pão de cada dia.

Antes da audiência, realizo a entrevista prévia e pessoal com João. O questionário padrão, que supostamente serve para atestar a seletividade racial do nosso sistema penal, é rapidamente abandonado. E isso se deu pela minha mais completa incapacidade de me deparar com alguém poucos anos mais velho que eu, mas que castigado pela vida sofrida aparentava ser meu avô.

O nosso João demonstra sua incapacidade em se adequar aquele ambiente, quiçá seja resultado de sua dependência química decorrente do uso e abuso de álcool e crack. Em outras situações, já teria me insurgido e questionado o entrevistado se tinha noção da importância daquele ato. Um sopro de humanidade tapeia minha face e, por essa razão, me impede de prosseguir com uma espiral de despersonificação de João.

Ao término do nosso primeiro contato, faço um pedido que dificilmente será atendido por aquele homem, rogo que largue seus vícios por acreditar que sempre é possível percorrer uma nova trilha nessa jornada que chamamos de vida. Não sei se João fingiu ou se refletiu por um átimo de segundo naquele meu pedido, mas logo depois me pede a garrafa de água que tenho sobre a mesa, pois seria sua forma de enganar a fome que sente. Forneço a água, ele sai da minha sala – alguns poderiam chamar aquele local de gabinete – e fico sabendo que enquanto não é chamado para o solente ato processual, João decide se entregar nos braços de Morpheu no asséptico corredor forense.

Com muita dificuldade, João foi qualificado e inquirido se havia sofrido alguma agressão quando da efetivação de sua prisão. Ele é indiciado por furto de cabos de telefonia. Quando da realização da entrevista, ele havia me informado que simplesmente pegou coisas que se encontravam abandonadas em um beco.

Naquele dia havia uma estranha sintonia entre as autoridades – do tablado e a judicial. Todas as opiniões em prol da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva foram acolhidas. Paula, minha colega de custódia, um exemplo de Defensora Pública e, o mais importante, uma amiga para todas as horas, já não suportava aquele concerto de atores jurídicos e, com muita razão, me pede para realizar a audiência de João. Por não existir vinculação entre quem realiza a entrevista com quem participará da audiência, eu topo na hora, pois não só conheço o caso, mas, principalmente, por saber que ela faria o mesmo por mim, só imponho uma condição que me acompanhe no ato.

O início do ato processual se dá como imaginado. Opinião pela prisão por representar ameaça à ordem pública – o defendido possuía 6 passagens e ostentava “personalidade voltada para o crime” – e risco à futura aplicação da lei penal – já que não apresentava nenhum comprovante de residência fixa e de ocupação lícita.

É, então, chegado o momento sagrado de a defesa se manifestar. Confesso que estava atordoado com aquele pedido e, o pior, com o sério risco dele ser atendido. Decido dividir a minha fala em 2(dois) argumentos.

Em um primeiro momento, rebato as surreais opiniões acusatórias. Indico para a ausência de qualquer estudo psiquiátrico ou psicológico que abalize a fala da autoridade do tablado.   Tratava-se de um argumento perfomático – como sói acontecer com a maioria das vezes em que a ordem pública é apontada como bem jurídico em risco, caso a liberdade venha a ser efetivada – e que não poderia seduzir ninguém. Quanto à falta de documentação, indico que qualquer pessoa teria dificuldade de apresentá-los em menos de 24(vinte e quatro) horas.

Eu mesmo seria um sério candidato ao ergástulo, pois, se preso em flagrante, não teria como apresentar a documentação exigida, quer seja por não andar com comprovante de residência, quer seja por não portar minha carteira funcional em minhas andanças. Aliás, exigir naquele caso essa documentação representava uma piada de pésssimo gosto. O que desejava a autoridade do tablado? Uma correspondência indicando que havia um barraco debaixo do viaduto? Ou tencionava uma CTPS assinada com a profissão: catador de lixo autônomo?

Sabia que até então havia feito uma defesa formal, era necessário ser mais incisivo e, por essa razão, em um segundo momento parti para uma defesa que chamei de humana. João era analfabeto, não conheceu, portanto, qualquer sistema de educação pública. Era dependente químico, o SUS representava tão somente um conjunto intelegível de letras. Morava em um barraco, logo desconhecia qualquer política pública habitacional.

Da mesma forma, ignorava qualquer política pública do pleno emprego, tanto que vivia dos dejetos produzidos por uma sociedade ávida pelo consumo. João Ninguém poderia ser chamado de Zé Esquecido pelo Estado. E quando foi lembrado por essa utopia foi para apresentá-lo a sua pior faceta: a penal. Por acreditar no Tribunal da História, afirmei que preferia ficar ao lado de quem vive na sarjeta do que daqueles que decidiram apresentar somente o Estado Repressivo para João Ninguém. Tal como Fidel, afirmei que a história me absolveria por ter ficado ao lado de João.

Com o término da fala, um constrangedor silêncio se apoderou daquela sala. O acusador demonstrara que havia sentido o golpe e antes de qualquer decisão já havia manifestado o seu intento em recorrer, caso a liberdade viesse a ser deferida. Um sorriso teimava aparecer em meu rosto, mesmo ainda não acreditando de onde teria puxado aqueles argumentos.

Ao comentar com minha mãe sobre o ocorrido, ela afirmou que se tratava da aplicação da misericórdia. Não adotei essa postura pensando em elogios, ali se tratava do meu mister e da verdadeira repulsa que tenho por qualquer aprisionamento, ainda mais quando se efetiva a título processual.

Iniciei esse texto com a pena de Cazuza e retomo os famosos versos para deixar uma mensagem para João Ninguém. Encerro com as palavras do saudoso poeta, para quem me critica por ter esse amor incondicional pela liberdade, parafraseio seus versos: “Vida louca vida, vida intensa. Ninguém vai nos perdoar. A liberdade sempre compensa.”

*Eduardo Januário Newton é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Mestre em direito pela UNESA. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).

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