A “mula” do Presidente e o escândalo sem nome

Por , no The Intercept Brasil

Em 2005, Roberto Jefferson (PTB) deu uma entrevista bombástica para Renata Lo Prete revelando um esquema de compra de apoio de deputados pelo governo. Em uma entrevista curta, Jefferson disse a palavra “mensalão” 17 vezes. O escândalo já vinha batizado e atormentaria o governo Lula e o alto escalão do PT por muitos anos. À época, o assunto foi tão explorado e martelado na cabeça dos brasileiros, que muito se duvidou da reeleição de Lula. O ex-senador do PFL (ex-Arena, atual DEM) e filhote da ditadura militar Jorge Bornhausen chegou a decretar a morte do PT com uma frase reveladora da sua alma: “Estou é encantado (com a crise do mensalão), porque estaremos livres dessa raça pelos próximos 30 anos”.

José Yunes, ex-assessor e amigo de mais de cinco décadas de Michel Temer, deu uma declaração igualmente bombástica na semana passada revelando a existência de uma estratégia para eleger parlamentares fiéis a Eduardo Cunha. Yunes ficou sabendo disso pela boca de Lúcio Funaro – doleiro, lobista, operador das propinas de Cunha e que foi preso na época do mensalão – em setembro de 2014, às vésperas das eleições daquele ano. Este honorável cidadão relatou dessa maneira o esquema para Yunes:

“A gente está fazendo uma bancada de 140 deputados, para o Eduardo (Cunha) ser presidente da Câmara”.

O melhor amigo de Temer ouviu essa frase quando o doleiro, a mando de Eliseu Padilha, passou em seu escritório para deixar um “pacote” misterioso que alguém buscaria mais tarde. Segundo delação de ex-executivo da Odebrecht, o tal “documento” na verdade eram R$ 4 milhões em dinheiro vivo, que era parte de uma propina de R$10 milhões repassada para o PMDB. Yunes se viu sendo “mula” de Padilha e resolveu contar tudo para o presidente não eleito, que, à época, era candidato à vice de Dilma.

“Contei tudo ao presidente em 2014. O meu amigo (Temer) sabe que é verdade isso. Ele não foi falar com o Padilha. O meu amigo reagiu com aquela serenidade de sempre (risos).”

É óbvio que Temer não foi reclamar com seu braço direito. As chances de um esquema comandado por Padilha e Cunha ser ignorado por Temer são menores do que a de um tucano ser preso. Portanto, é mais do que provável que, antes mesmo da eleição, Padilha e Temer já tramavam para colocar Cunha na presidência da Câmara. É importante lembrar que Cunha não foi o candidato do governo para a Câmara, era Arlindo Chinaglia (PT), o que significa que a cúpula peemedebista já trabalhava contra os interesses do governo do qual faziam parte. Naquela época, o impeachment já estava no horizonte e seria muita ingenuidade acreditar que esses fatos não estavam relacionados. Cunha foi eleito por uma maioria avassaladora na Câmara. Uma maioria que o acompanharia até a derrubada de Dilma.

Após a eleição de Cunha, O Globo registrou que ele “é considerado inimigo da presidente Dilma Rousseff, com quem sempre teve uma relação difícil”. Ou seja, com base no depoimento de Yunes, é possível concluir que o vice-presidente há muito tempo já trabalhava nos bastidores – e depois abertamente – para eleger um inimigo do governo. Cunha articulou intensamente contra o governo para aprovar a MP dos Portos (com uma emenda cuja única beneficiária foi uma das principais empresas financiadoras de Temer), trabalhou pela derrubada do decreto da presidenta que criava a conselhos populares em órgãos públicos e fez de tudo para travar a votação do Marco Civil da Internet. Agora sabemos que o inimigo mortal da presidenta vinha sendo armado pelo vice-presidente desde antes das eleições presidenciais. Qual o nome disso senão traição, conspiração e/ou golpismo?

Em abril de 2015, poucos meses após Cunha virar presidente da Câmara, Dilma, preocupada com o desgaste da relação com o PMDB, colocou Temer na articulação do governo. A raposa foi alçada à condição de pacificadora do galinheiro depois de ter passado meses tramando o cerco com a raposada. Enquanto isso, Cunha comandou durante todo o resto do ano um boicote sistemático ao governo, trabalhando contra todas as medidas de saída da crise econômica por meio de pautas-bombas, travamento de votações e muita chantagem. Com a maioria dos parlamentares na mão e o apoio do vice-presidente, Cunha ficou cada vez mais à vontade para encaminhar o principal projeto do seu mandato: o impeachment.

“Michel é Eduardo Cunha”, já dizia Jucá no spoiler dos spoilers. Mas a relação não é mais a mesma. Depois de cassado e preso, Cunha vem frequentemente fazendo ameaças veladas a Temer. Insinuou haver digitais de Temer nas irregularidades no Porto Maravilha e o arrolou como testemunha na Lava Jato, quando fez perguntas comprometedoras. Curiosamente, Temer agora coloca Osmar Serraglio (PMDB) no Ministério da Justiça, um homem tão próximo de Cunha que chegou a reivindicar a anistia dos crimes cometidos pelo amigo. As ameaças teriam surtido efeito? Não é possível afirmar categoricamente que sim, mas a chantagem estaria perfeitamente dentro do contexto golpista da atual da política brasileira.

Cunha também fez duas perguntas para Temer sobre seu amigo José Yunes:

“Qual a relação de Vossa Excelência com José Yunes?”

“O sr. Yunes recebeu alguma contribuição de campanha para alguma eleição de Vossa Excelência ou do PMDB?”

Perguntas essenciais para compreender o papel de Temer na Lava Jato, mas o juiz-herói Sergio Moro evitou a fadiga de Temer cancelando essas e mais 11 perguntas embaraçosas. Os questionamentos foram considerados “inapropriados” pelo magistrado. Segundo ele, “não há qualquer notícia do envolvimento do Exmo. Sr. Presidente da República nos crimes que constituem objeto desta ação penal”. Parece piada, mas este é o homem conhecido por ser implacável contra a corrupção. Estamos muito bem de heróis, né, Brasil?

Yunes simplesmente revelou que os milhões da Odebrecht serviram para construir uma poderosa bancada de deputados para colocar um criminoso na presidência da Câmara. Com o envolvimento comprovado de Padilha, o braço direito de Temer, e com a “mula” amiga de Temer caguetando tudo, já não é mais possível ignorar as digitais do não eleito em mais esse escândalo. No país em que casos de corrupção são sempre batizados, como Mensalão e Petrolão, por que esse até agora não foi?

É instigante. Só acho que não podemos esperar que o batismo seja feito pela Globo, já que, segundo o Tabapuã Papers e Panamá Papers, Temer é sócio de Yunes, assim como o filho de Yunes é sócio de Roberto Marinho.

A minha sugestão é que chamemos de Golpe.

Michel Temer e Eliseu Padilha. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

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