Leda Paulani: “Igualar mulheres e homens na Previdência é uma injustiça”

Para a economista e professora da USP Leda Paulani, mudanças propostas por Temer penalizam ainda mais as mulheres de baixa renda, que dificilmente vão conseguir se aposentar

por Anna Beatriz Anjos, da Agência Pública

Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, uma pauta bastante específica misturou-se às bandeiras usuais, como o combate à violência e desigualdade de gênero: a luta contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287/2016, que tramita em uma comissão especial na Câmara dos Deputados. Defendido pelo governo de Michel Temer, o projeto prevê alterações importantes nas regras da Previdência, como estabelecer a idade mínima de aposentadoria aos 65 anos tanto para homens como para mulheres.

Leda Paulani, professora titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), conversou com a Agência Pública sobre a reforma previdenciária que o presidente pretende aprovar ainda neste semestre. Para a economista, além de representar um risco de “retrocesso social violento” para o país, a PEC prejudica especialmente as mulheres, que perdem o benefício da aposentadoria aos 60 anos – embora acumulem a jornada oficial de trabalho aos afazeres domésticos, desempenhando múltiplas funções. A ex-secretária de Planejamento da Prefeitura de São Paulo destaca ainda a maior vulnerabilidade de mulheres pobres, negras e moradoras de periferia, normalmente submetidas a empregos informais e mais precarizados.

Qual a sua opinião sobre a proposta de reforma da Previdência defendida pelo governo Michel Temer? Ela ataca os principais problemas do sistema previdenciário brasileiro?

A Previdência é uma questão que tem que ser discutida, de fato, por várias razões. É discutida no mundo inteiro, principalmente por conta do aumento da expectativa de vida. Porém, este projeto parte de premissas que não são verdadeiras e é absolutamente desumano, desnecessário, só vai causar um enorme retrocesso social, porque as parcelas mais negativamente afetadas por ele são aquelas que mais dependem, hoje, das rendas previdenciárias. É uma coisa muito ruim para o país, pode haver um retrocesso social violento.

O PMDB tem divulgado em suas redes sociais campanha condicionando a existência de programas sociais – como Fies e Bolsa Família – à aprovação da reforma da Previdência. Isso é verdadeiro?

Isso não é verdadeiro. Na realidade, hoje, a principal despesa que o governo tem é com o pagamento de juros, que são elevados por uma razão que ninguém sabe explicar exatamente qual é; não há razão nem teórica, nem empírica que justifique esse patamar de juros no Brasil já há mais de duas décadas. O regime de seguridade social geral – o INSS –, se for considerado da forma como está prevista sua estruturação na Constituição, não é deficitário. Boa parte de diversas fontes de receitas acabam não indo parar na Previdência e na assistência social por mecanismos como o da desvinculação de recursos da União – a famosa DRU – e, por outro lado, acaba-se considerando como receita do sistema previdenciário apenas as contribuições dos trabalhadores e empresas, sendo que, no desenho deste tipo de regime, considerado de repartição, necessariamente há a participação do governo. Se você considerar, dentro do regime, a contribuição com a qual o governo deveria entrar, ele é superavitário. O que não quer dizer que a gente não possa ter problemas lá na frente por conta dessa questão do aumento da expectativa de vida, mas hoje, por exemplo, ele [o regime] é bastante superavitário. A campanha [do PMDB] magnifica o problema da Previdência e a coloca como se fosse a causa de todos os males: déficit público, paralisação dos investimentos públicos – seria tudo causado pela Previdência. Isso não é verdade: o que o Brasil gasta com o pagamento dos juros, por exemplo, é mais do que se gasta com Previdência, incluindo os benefícios previdenciários do tipo BPC – benefícios de prestação continuada –, que hoje atingem mais de 4 milhões de pessoas.

Por que a reforma da Previdência, nos termos em que está sendo proposta, prejudicaria mais as mulheres do que os homens?

Porque, tradicionalmente, e por razões bastante conhecidas, a idade mínima de aposentadoria para as mulheres é cinco anos inferior à dos homens – 65 e 60, respectivamente –, ou, nos casos em que também se computa o tempo de contribuição, a fórmula em vigor hoje é a 85/95 – 85 para mulheres, 95 para homens [o valor representa a soma da idade ao tempo de contribuição]. Em suma, as mulheres sempre têm um benefício em termos de tempo, não em termos de valor da aposentadoria. Esse benefício é completamente retirado nessa proposta. Por que ele é justo? Apesar de as mulheres terem uma expectativa de vida até um pouco mais elevada no Brasil, o que é uma tendência mundial, elas têm também dupla, tripla ou quádrupla jornada de trabalho. Isso não deixou de existir em nenhum lugar do mundo, mas no Brasil, principalmente; aqui isso é regra, a exceção é quando realmente há uma divisão integral das tarefas domésticas entre a mulher e seu companheiro. Até porque hoje muitas famílias são chefiadas por mulheres, elas têm uma jornada de trabalho absolutamente exaustiva. Então, você impor que as mulheres tenham que atingir o mesmo tempo de trabalho que os homens para se aposentar é uma injustiça. Retira-se da mulher um direito há muito tempo conquistado.

Mulheres negras e pobres podem ser ainda mais penalizadas, por ocuparem postos de trabalho mais precarizados, muitas vezes informais?

Sem dúvida. As mulheres, como um todo, são mais prejudicadas que os homens em termos relativos porque perdem benefícios que já tinham e, dentro do conjunto das mulheres, as de renda mais baixa, que, em sua maioria, são negras ou afrodescendentes, vão sofrer ainda mais. Em relação a essa questão da idade mínima de 65 anos, você está condenando regiões inteiras do Brasil a morrerem trabalhando. A expectativa de vida no Brasil, que é de 73 anos, é uma média. Se pegarmos os bairros ricos de São Paulo, por exemplo, ela chega a 83 anos, [equivalente à] expectativa de vida mais elevada do mundo, que ocorre no Japão. Essa expectativa de vida é a que encontramos nos bairros ricos de São Paulo, na zona oeste, em Pinheiros, nos Jardins, Itaim Bibi, Vila Olímpia, Moema. Agora, quando vamos para as periferias da cidade, essa expectativa cai para 60, 59 anos. No Nordeste, a mesma coisa. E quem mora nessas periferias? Em geral, pessoas de baixa renda, afrodescendentes em sua maioria. Por isso, é absolutamente desumana essa proposta [de reforma da Previdência], porque condena uma parcela da população – parcela esta já mais sofrida, sem apoio e com condições de vida muito ruins – a pagar o pato. É esta parcela que, em média, não vai sobreviver aos anos exigidos para ter acesso à aposentadoria.

Apoiadores da PEC 287/2016 defendem que não é mais necessário que as idades mínimas de aposentadoria para homens e mulheres sejam diferentes. Como argumento, citam países europeus onde todos os cidadãos, independentemente do gênero, se aposentam com a mesma idade, como Islândia, Dinamarca e Alemanha. A comparação faz sentido?

De jeito nenhum. Para começo de conversa, a renda per capita desses países é muito maior do que a do Brasil. Além disso, esses países são muito mais homogêneos. Nosso país tem uma desigualdade brutal, profunda. Se entrarmos em bairros de classe média, classe média alta [no Brasil], as mulheres são menos sofridas, mas ainda assim é injusta [a extinção do benefício], porque, apesar de tudo, são elas as responsáveis por seus lares e têm dupla jornada de trabalho – à exceção da alta burguesia, que tem um batalhão de empregados domésticos para cuidar de tudo.

Quando extrapolamos isso para as regiões mais pobres, a injustiça é absurdamente gritante. Vou dar um exemplo pessoal: tinha uma senhora que trabalhava uma vez por semana na minha casa, era diarista, mas eu gostava muito dela e comecei a pagar sua aposentadoria como se fosse de fato empregada minha. Ela se aposentou quando tinha 57, 58 anos – hoje deve ter por volta de 70 –, já muito cansada e com muitos problemas de saúde. Você imagine se essa mulher tivesse que esperar até os 65 anos para se aposentar, ou então, se quisesse ter direito à integralidade do salário, esperar para juntar com o tempo de contribuição e atingir o valor total. Estaria trabalhando até hoje, sendo que passou por condições desumanas a vida toda. As mulheres como um todo são prejudicadas, mas, sobretudo, as mulheres dos grupos de renda mais baixa que, em sua maioria, são afrodescendentes, como é o caso dessa senhora.

Fazer comparações entre um país como o Brasil e a Islândia é completamente descabido, não faz o menor sentido. A Islândia é um país de 400 mil habitantes, minúsculo, com renda altíssima e IDH dos maiores do mundo. Agora, o que tem que ser comparado, eles não comparam. Não dizem, por exemplo, que nos países europeus, quando se analisa os sistemas previdenciários, a média de contribuição dos Estados é em torno de 40% e no Brasil é zero, porque esse dinheiro não é posto na conta. O tal do déficit do qual partem só aparece quando se faz a conta sem colocar a contribuição do governo. Mas, no desenho que está na Constituição, o governo tem que contribuir, e foram criados tributos, inclusive, para isso, como a CSLL [Contribuição Social sobre o Lucro Líquido] e o Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social]. Só que isso não é colocado na conta.

O Brasil difere muito dos demais países do mundo quando o assunto é sistema previdenciário?

Não estamos muito diferentes do que ocorre em outros países do mundo em quase nada, a não ser em relação à contribuição do Estado. Muitos argumentos a favor da reforma dão conta de que o sistema previdenciário brasileiro é muito generoso, mas não é, de modo nenhum. Após as reformas feitas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, muita coisa mudou – inclusive, apareceu essa coisa da idade mínima, que não existia – e depois houve outra reforma em 2015. Estamos mais ou menos seguindo o que se faz no mundo, não há nenhum absurdo gritante que tornaria inviável ou insustentável o sistema previdenciário no Brasil por conta de benefícios exagerados ou coisa do tipo. Voltando à questão das diferenças de expectativa de vida, em Alto de Pinheiros [bairro nobre de São Paulo], ela é em torno de 80 anos; em Cidade Tiradentes, em torno de 54. Em Cidade Tiradentes, o povo vai morrer antes de se aposentar, pode escrever. Sessenta e cinco anos [como idade mínima de aposentadoria] para esta realidade, destas populações, é uma crueldade enorme. E não há nada que justifique isso do ponto de vista de comparações internacionais ou do que quer que seja. Há de fato um problema que precisa ser pensado, mas com a participação da população, não com um projeto regressivo socialmente e imposto de cima para baixo por um governo ilegítimo. Isso não se pode aceitar.

Na sua opinião, qual seria o modelo de Previdência ideal para o Brasil, levando em conta mecanismos que garantam a igualdade de gênero? São necessários muitos ajustes em relação ao que existe hoje?

Talvez a gente precise entender um contexto mais amplo. Existem dois tipos de regimes previdenciários: um deles é esse regime que segue o INSS, chamado regime de repartição. Como funciona? Ele tem esse princípio de que os trabalhadores contribuem, as empresas contribuem, o Estado contribui. Há algum tipo de solidariedade intergeracional, de modo que aqueles que trabalham geram renda para aqueles que já trabalharam. Não há um vínculo tão firme entre benefício e contribuição – por exemplo, hoje, os trabalhadores rurais que não contribuem têm o benefício –, porque [este regime] inclui o espírito da seguridade social, de que a sociedade é responsável por seus membros, a visão da sociedade como um conjunto. Tem suas raízes na política de Bismarck na Alemanha no final do século 19, foi reforçado por todos os mecanismos do Estado do bem-estar social ao longo do século 20 etc.

Este regime vai tão melhor quanto melhor andar a economia. Claro que os resultados começaram a piorar porque agora a economia brasileira está andando para trás, e é claro que a arrecadação que cai não é somente a dos impostos, cai também a arrecadação previdenciária, afinal há menos gente empregada. Ainda que seja verdade que a situação piorou de uns anos para cá, apesar dele não ser deficitário se as contas forem feitas corretamente, isso se deve não a um desequilíbrio do regime, mas ao fato de que a economia entrou em recessão e passou a funcionar muito mal. O outro regime é o chamado regime de capitalização, que amarra completamente o benefício à contribuição – você vai usufruir lá na frente daquilo que contribuiu; se não contribuiu, não tem direito nenhum. Este regime em geral produz coisas como os fundos de pensão, por exemplo: se você participa deles, lá na frente se beneficia, se não participar, não há benefício. Este segundo tipo de regime normalmente vai bem quando as finanças vão bem, não quando a economia vai bem. Por exemplo, juro alto, para este regime, é uma beleza, porque vai somando fundos de riqueza financeira que têm que ser aplicados ao longo de dez, vinte, trinta anos para pagar os beneficiários lá na frente, e é óbvio que, quanto mais elevados os juros, tanto melhor para eles. O regime assentado nesses fundos anda junto com a financeirização do capitalismo, com o crescimento da riqueza financeira.

Por conta disso, desde os anos 70, 80, houve uma onda mundial de redução dos regimes de repartição – que são os regimes gerais, como o INSS – e de aumento do espaço para os regimes privados, que representam um mercado enorme, pois a maior parte das pessoas vai demorar muitos anos para se aposentar e, mesmo assim, vai se aposentar sem a integralidade. Diante disso, faz o quê? Começa a contribuir para um fundo privado. A tentativa de redução do espaço do regime de repartição e de aumento do espaço do regime de capitalização – que a gente chama respectivamente de universal, social e de fechado, privado – foi uma tendência geral no mundo. Aqui no Brasil, quem deu o pontapé inicial nisso foram as reformas do Fernando Henrique, que o governo Lula, em alguma medida, aprofundou, e houve ainda um último aprofundamento em 2015. Tem muita gente que acha que nem deveria existir o regime geral. O Brasil, segundo consta, tem um dos maiores regimes de repartição do mundo, em termos de volume de recursos que mobiliza, o que representa um potencial violento para o sistema financeiro. Há, então, esse subproduto da reforma previdenciária que é, sem dúvida nenhuma, reduzir o espaço do regime de repartição e abrir espaço para o regime de capitalização, na intenção de que estes fundos floresçam. Agora, estes fundos já provocaram desastres no mundo inteiro, ao ponto de hoje, em determinados deles, haver situações em que a pessoa não recebe porque “viveu mais do que o previsto”. Fora que, embora tenham regras de segurança para aplicação de recursos e tudo mais, na crise de 2008, vários fundos de pensão italianos e espanhóis se arrebentaram e botaram muita gente na miséria, pois são feitos dentro desta lógica: você vai acumulando a riqueza financeira e aplicando nos próprios ativos financeiros, sujeitos à formação de bolhas, que estouram e provocam a redução brutal do valor dessa riqueza.

Concluindo, você me perguntou qual seria o regime ideal para o Brasil: o ideal é a gente não deixar passar essa PEC para não reduzir o espaço do regime de repartição por aqui, pois em um país como o nosso, de renda per capita ainda baixa e com uma desigualdade brutal, o risco é produzir uma regressão social sem tamanho, já que, sem dúvida nenhuma, os mais afetados serão as populações de baixa renda.

Como é ser mulher num campo tão dominado por homens como a economia? De que forma o machismo de manifesta nesta área?

Essa área é bastante masculina. Quando entrei na faculdade, na minha sala tinha, se muito, 10% de mulheres, a maioria era de homens. Hoje dou aula na FEA, onde estudei, e a coisa é um pouco diferente, mas ainda assim é uma área predominantemente masculina. Tenho uma história para contar: quando me formei, fui trabalhar no Banco Itaú, na área de investimentos. Meu chefe direto gostava muito de mim e me colocou para coordenar uma área de estudos macroeconômicos. De vez em quando, tínhamos reunião com o diretor-geral, cujo nome não me lembro, mas era um sujeito muito conservador e bem pouco simpático. Nessas reuniões, éramos cerca de 15 pessoas, sendo que a única mulher era eu, e ele nunca se dirigia a mim, falava com meu chefe direto e dizia simplesmente: “Você tem que pedir para a mocinha aí fazer tal coisa”. Ele nunca se dirigia a mim para dizer “Olha, Leda, acho que é bom fazermos isso ou aquilo”. Fiquei muito tempo assessorando meu chefe e depois, quando se criou oficialmente um grupo, não fui para o cargo de coordenação, e meu chefe me disse: “Você, aqui no banco, já chegou o mais longe possível para uma mulher”. Isso foi no começo dos anos 80. O cenário deve ter mudado um pouco, mas certamente deve haver muita discriminação. Ainda que formalmente não haja, a probabilidade de existirem homens machistas neste meio é muito alta, então há um machismo que mora nas relações, na forma de tratamento.

Imagem: Professora da FEA-USP, Leda Paulani considera “desumana: a PEC 287, proposta pelo governo Michel Temer (Foto: Prefeitura de São Paulo)

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