Um marco na história dos direitos das mulheres: a ação pela descriminalização do aborto e a Greve Internacional de 8 de março

Neste momento especial, eu me uno e me solidarizo com mulheres brasileiras e de todo o mundo em suas lutas. Vou parar no 8 de março.

Por Flávia Biroli, no Blog da Boitempo

Nesta semana da mulher, dois marcos históricos se apresentam juntos no Brasil. Na noite de 6 de março, foi protocolada junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que pede a descriminalização do aborto até a 12a semana de gestação. Neste 8 de março, as vozes das mulheres brasileiras se unem às de mulheres de várias partes do mundo na Greve Internacional de Mulheres.

Falo um pouco, neste texto, de como chegamos a essas duas ações políticas de grande importância para as mulheres brasileiras.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) protocolada no STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com o apoio técnico da Anis – Instituto de Bioética, nos leva a um novo patamar nas disputas pelo direito aborto. Seu principal argumento, o de que a criminalização do aborto viola o direito das mulheres à dignidade, está ancorado nos motivos pelos quais os movimentos feministas vêm atuando, há décadas, em defesa da despenalização.

O direito ao aborto contrapõe-se à maternidade compulsória. Desrespeitando a autonomia das mulheres, retira a elas a possibilidade de integrar seu corpo e sua capacidade reprodutiva a seus projetos de vida. Trata-se também de um direito de cidadania, como registra a ação, porque remete a dois de seus principais fundamentos: o igual direito ao exercício da autonomia, independentemente do sexo, e o igual direito a ter respeitada sua integridade física e psíquica.

Trata-se, assim, de um direito fundamental e não de uma questão que diga respeito às crenças e disposições de grupos ou mesmo, eventualmente, de uma maioria. Vale observar que o Legislativo, âmbito formal da representação política no qual se poderia legislar em favor do direito das mulheres ao aborto, é historicamente um ambiente de ampla maioria masculina. Temos, assim, um histórico de barreiras ao direito ao aborto em espaços decisórios nos quais outra injustiça é visível a olhos nus, a da sobre-representação dos homens, que são hoje cerca de 90 para cada 10 mulheres no legislativo.

Observo que o controle sobre a capacidade reprodutiva tem sido historicamente retirado às mulheres. Na América Latina e em outras partes do mundo, esterilizações compulsórias e criminalização do aborto corresponderam, e correspondem ainda, a violências contra as mulheres e a déficits claros no Estado de Direito e na democracia.

A ação protocolada hoje se apoia nas lutas históricas das mulheres contra essas violências. Ela se apoia também em decisões anteriores favoráveis ao entendimento de que a criminalização do aborto fere a Constituição por tratar de forma desigual mulheres e homens e por comprometer ainda mais a saúde e as vidas das mulheres que já estão em situação social de desvantagem. No Brasil, são as mais pobres e negras quem mais sofre as consequências das restrições no acesso ao aborto. Observo, ainda, que os dados disponíveis mostram que as mulheres abortam a despeito da criminalização e que o número de abortos tem sido reduzido nas partes do mundo onde o acesso foi ampliado pela despenalização (cf os dados da Pesquisa Nacional do Aborto-2016 e, internacionalmente, a pesquisa internacional publicada na revista Lancet, vol. 388, n. 10041, por Gilda Sedgh e co-autoras).

No Brasil, a lei penal de 1940 criminaliza o aborto, com duas exceções: gestação resultante de estupro e riscos para a vida da gestante. Em 2012, uma decisão do STF acrescentou a essas uma terceira exceção, a anencefalia fetal. Nos anos 2000, durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), tivemos alguns passos para a garantia de atendimento nos casos já permitidos pela lei, por meio de Normas Técnicas do Ministério da Saúde, e uma recomendação expressa, na primeira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos-3, de que o Estado brasileiro avançasse na descriminalização e nas garantias às mulheres. Em 2015, o debate público sobre aborto se ampliou quando mulheres foram às ruas em cidades de diferentes estados e regiões contra o PL 5069/2013, que tem como objetivo restringir o atendimento em caso de estupro. A “primavera feminista” brasileira expôs novos padrões de luta e a potência política das subjetividades e identidades coletivas resultantes da atuação estratégica de movimentos e organizações nas últimas décadas, em um contexto de mudanças sociais e culturais profundas nos papeis de gênero.

Hoje contamos, também, com uma nova decisão do STF, de 2016, que firmou o entendimento de que aborto não é crime quando realizado até as doze primeiras semanas da gestação. Pela primeira vez, a mais alta corte do país afirmou que o direito ao aborto é um direito fundamental, que não pode ser recusado às mulheres. Segundo o parecer proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, a criminalização do aborto estabelece uma desigualdade de direitos que está em desacordo com a Constituição, compromete a integridade física e psíquica das mulheres e pune, sobretudo, as mulheres mais pobres, que têm menores chances de interromper a gravidez com segurança.

Na esteira de décadas de luta e de todos esses passos para garantir os direitos das mulheres, chegamos à ADPF protocolada agora pelo PSOL. E isso se dá às vésperas de outro grande acontecimento, a Greve Internacional de Mulheres, convocada por movimentos de mulheres em todo o mundo.

Nos muitos 8 de março que nos precederam, mulheres corajosas vocalizaram diferentes pautas, inseridas em contextos que apresentavam desafios específicos. Pelas suas vozes, foi para as ruas a defesa da liberdade sexual e a condenação da dupla moral sexual, que respalda agressões e assassinatos; a defesa de condições justas de trabalho, contra a exploração, que é ainda mais aguda no caso das mulheres devido à divisão sexual do trabalho; a condenação do assassínio de mulheres, em contextos nos quais estupro e assédio são socialmente tolerados; a defesa do direito ao aborto, mostrando os efeitos da criminalização nas vidas das mulheres; a crítica à objetificação dos nossos corpos nas relações cotidianas e nos meios de comunicação; a defesa de uma educação que ensine desde cedo a meninas e meninos que merecem igual respeito e condições simétricas para a construção de suas vidas. Das lutas das mulheres lésbicas, vieram demonstrações de que o sexismo está atrelado à homofobia; das mulheres negras e da periferia, vieram as vozes contra o racismo, contra a violência policial que dizima a juventude negra e a inclusão, na agenda, da situação das mulheres encarceradas. Trabalhadoras rurais e mulheres indígenas têm nos mostrado como as disputas pela terra e o agronegócio afetam, todos os dias, as vidas das mulheres e de suas famílias. A violência da xenofobia e das guerras e miséria no mundo pós-colonial é denunciada, crescentemente, nos relatos e intervenções políticas de tantas mulheres.

Essa pauta ampla e interseccional tencionou outras pautas históricas no campo progressista. As posições das mulheres, suas vozes, se impuseram não apenas na confrontação com o conservadorismo e o neoliberalismo, mas também inseriram novos componentes nas lutas e no processo em curso de reorganização das esquerdas.

A proposta de uma paralisação conjunta, unificada, pôde ser construída a partir de manifestações e greves ocorridas em diferentes países em 2016 e 2017, como a Polônia, a Argentina e os Estados Unidos. Na América Latina, destaca-se a organização a partir do NiUnaMenos-Argentina, com as chamadas para greve, paralisações e manifestações do 8M (para mais https://www.8mbrasil.com). O foco simultâneo na violência e nas condições de trabalho é significativo: “Se nossas vidas não importam, que produzam sem nós”. Organizações que vêm atuando há mais tempo no Brasil, como a Articulação de Mulheres Brasileiras, em conjunto com as mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT) – infelizmente, sem uma adesão mais ampla desta e de outras centrais às ações do 8 de março –, focam na oposição à Reforma da Previdência, vocalizando também as pautas que estão presentes no 8M. Violência sexual, assassinatos e violência econômica estão na linha de frente das ações no sul global. A abordagem anticapitalista, por sua vez, aumenta o potencial de que o feminismo seja protagonista na crítica ao neoliberalismo e seu caráter predatório e no processo de reorganização das esquerdas, por aqui e em outras partes do mundo.

No Brasil, a Greve Internacional ocorre em um contexto de extrema gravidade. Após a deposição da primeira mulher a chegar à presidência da República, em um golpe com conteúdos misóginos claros, foi composto um governo amplamente masculino, que além de romper o diálogo com os movimentos de mulheres vem atuando para desconstruir direitos de modo que afeta particularmente as mulheres. Hoje, as propostas de Reforma da Previdência e Reforma Trabalhista de Michel Temer e seus aliados tucanos coloca em risco o direito à aposentadoria e as garantias no trabalho. São questões sensíveis para todas e todos, uma vez que se trata da retração do Estado na regulação das relações e do avanço da privatização, definindo o modelo de sociedade em que vamos viver. Mas são especialmente sensíveis para as mulheres, que trabalham mais e em condições mais precárias, são maioria entre as pessoas desempregadas e são cotidianamente responsabilizadas pelo cuidado com as crianças e os idosos, em um momento em que o Estado recua de sua responsabilidade pelo bem-estar coletivo.

Neste momento especial, eu me uno e me solidarizo com mulheres brasileiras e de todo o mundo em suas lutas.

Eu paro no 8 de março pelas vidas das mulheres e por um mundo no qual elas valham mais do que o lucro de alguns poucos e a moral hipócrita e ultrapassada de quem diz defender a “família”, enquanto constrói um Brasil com ainda menos amparo social e proteção para as pessoas mais vulneráveis.

Eu paro que possamos nos expressar contra a criminalização do aborto, em defesa do exercício seguro da maternidade para as mulheres que escolhem ser mães, e para que possamos garantir esse direito com a descriminalização proposta pela ADPF protocolada no STF neste 6 de março.

Eu paro em defesa do direito à aposentadoria, para que nós e nossas filhas e filhos possamos envelhecer com dignidade.

Eu paro com voz crítica apontada para o capitalismo predatório, que nos rouba energia, tempo, saúde física e psíquica, os aparatos coletivos para a proteção e o cuidado, a possibilidade de que os afetos sejam bem-vividos em vez de nossos corpos serem violados pelo casamento (in)feliz entre neoliberalismo, machismo, homofobia e racismo.

 

*Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê

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