As declarações do ministro da Justiça, Osmar Serraglio, de que os envolvidos em conflitos no campo deveriam “parar com a discussão sobre terras”, pois estas “não enchem barriga de ninguém”, revelam profunda ignorância e/ou má fé e desnudam o caráter antipopular do governo ilegítimo. Nos últimos tempos, o governo, ao privilegiar a impostura dos ignorantes, seleciona os piores personagens possíveis para assumir cargos de relevância. A atitude é típica de regimes totalitários.
Por Iracema de Alencar, no Vermelho
Para o ministro, umbilicalmente ligado ao agronegócio, o que importa aos indígenas é ter “boas condições de vida”. Trata-se, do argumento genérico oficial de setores retrógrados anti-indígenas e antipopulares, para quem “quilombolas, índios, gays, lésbicas” são “tudo que não presta”. Os fundamentos dessa argumentação se sustentam no reducionismo à função social que a terra e o território representam não apenas para “encher a barriga” (como se isso por si só já não fosse importante), mas para a própria formação e preservação do modo de vida, da cultura (material e imaterial) dos diversos povos indígenas e sua sobrevivência. A “terra” é o princípio gerador de diversos direitos, muito embora, sem ela estes não se restrinjam.
Os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam e não foram apenas outorgados, mas reconhecidos no Art. 231 da Constituição Federal de 1988. O ato de demarcação de uma terra indígena é administrativo e de natureza meramente declaratória. Tem esteio em uma situação jurídica preexistente, ou seja, traduz um direito mais antigo do que qualquer outro, preponderando sobre os demais direitos adquiridos.
As tensões entre os setores ligados ao agronegócio e indígenas surgem na confusão entre o conceito jurídico de terra indígena e a concepção antropológica da territorialidade. É preciso, antes de tudo, observar o que afirma o Art. 231 §1º da CF. 88, quando destaca que as terras indígenas são imprescindíveis ao “seu bem-estar e necessárias à sua reprodução física e cultural”. A ocupação dos territórios indígenas é compreendida à luz dos “usos, costumes e tradições”. A terra tem um significado sociocultural, e não apenas um bem material, como no caso dos guarani-kaiowá, para quem o território recebe o nome de tekoha ou “o lugar do modo de ser”, onde o território não é uma noção que remete apenas ao espaço físico, mas sobretudo a concepções cosmológicas. A demarcação de uma terra indígena, segundo a Constituição, deve levar em consideração os seguintes aspectos: “as terras ocupadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural”.
Os entraves para a identificação e demarcação das terras são oriundos da negação do conceito antropológico de territorialidade. Os conflitos de interesses existentes na política brasileira são pautados por uma noção desenvolvimentista retrógrada que desconsidera tal dimensão. Os índios e suas terras são tratados como mero empecilho ao crescimento econômico. Os grupos de interesse representados pelo ministro defendem que a situação de precariedade dos povos indígenas não será resolvida com a demarcação de seus territórios, mas somente com ampliação da assistência. Defendem que o direito indígena à terra deve estar subordinado aos interesses dos setores do agronegócio.
Atualmente trava-se uma guerra político-ideológica no âmbito das esferas judicial e legislativa. O Estado torna-se o palco desse conflito. Exemplo disso é a PEC 215/2000 que propõe que as demarcações de terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional, além de outros projetos de lei como o PLP 227/2012, a Portaria 303/2012 e o Decreto 7957/2013 que restringem os direitos indígenas. A excessiva judicialização dos processos de demarcação de terras torna as demandas por demarcações algo impossível de se executar num prazo razoável. É justamente nessa indefinição que vão se sobrepondo as pautas do agronegócio. A morosidade nos processos de demarcação causa conflitos e insegurança jurídica nos dois lados. Deveria partir justamente dos ruralistas a iniciativa de resolver de forma definitiva o problema das demarcações, no entanto, a tática etnocida é o sufocamento de culturas e povos inteiros que, aos poucos, vão se extinguindo através do preconceito (social e institucional), do racismo ambiental, do álcool e dos suicídios.
O ministro sugeriu “parar com a discussão sobre terras” e que não escolherá nenhum lado na batalha entre ruralistas e índios. Alegou, do alto de sua ignorância, pacificar a crise no campo usando a Constituição. Mas é justamente pelo desrespeito à Constituição, que previa as demarcações até 1993, cinco anos após sua adoção como a Lei Maior, que essa situação se arrasta até hoje. Ao relegar o direito dos indígenas ao seu território, reduz toda a problemática atrelada ao etnocídio dos índios Brasil a uma mera questão assistencialista. Nega, peremptoriamente, a existência de diferentes lógicas espaciais indígenas e diferentes formas de organização territorial e cultural. O direito à terra não se reduz ao direito a um bem material, como enxergam os ruralistas. Como então negariam os índios a própria cultura? Como renunciariam a si próprios sem extrema violência externa? É a extrema violência que o ministro propõe, ainda que implicitamente. O território indígena é, antes de tudo, religiosidade, família, comunidade, autonomia, natureza, saúde e vida. É um substrato de sua cultura. É porta de saída para o assistencialismo das cestas de alimentos. Em especial, é encher a barriga.
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Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil