Raízes da intolerância: Escravos de um racismo disfarçado e cruel

Especial UOL

Basicamente, o racismo no Brasil começou por volta de 1530, quando os primeiros navios trouxeram africanos para a terra recém-descoberta. Mas as raízes da intolerância contra os negros no mundo vão um pouco mais para trás, mais precisamente para o século 7, quando mercadores islâmicos no norte do deserto do Saara compravam mão de obra no sul do continente. Por isso, com a resistência dos índios nativos no Brasil, os portugueses e depois os grandes latifundiários brasileiros foram à África. Pesquisas apontam entre 3,5 e 5,5 milhões de negros trazidos de Gana, Angola, Congo e Moçambique em condições sub-humanas. Trazidos, vendidos e tratados como animais, a história da Pátria Mãe-Gentil nos mostra que aqueles povos desde que puseram os pés aqui foram torturados, mortos e estupradas (as mulheres). E, agora, mais de cem anos depois da Lei Áurea, ruas, escolas, empresas e campos de futebol, nos mostram ainda um longo caminho a ser percorrido para uma igualdade.

“A miscigenação dos negros com os brancos no Brasil começou com os estupros sofridos pelas mulheres negras de seus patrões brancos. Foi a partir dos filhos dessas relações, conhecidos como bastardos”, lembra o psicólogo Wellington Albuquerque Filho. Essa relação patrão branco/empregado preto (termo usado pelo IBGE) perpetua-se quase 500 anos depois do primeiro navio negreiro baixar as velas por aqui.

“Tem a população branca com vida mais confortável, que pode comprar bens. E os lugares reservados paras as populações negras, com acesso aos serviços muito dificultado. Durante muito tempo se acreditou que o filho da faxineira vai ser faxineiro, o filho do barbeiro vai ser barbeiro. Dizer que não é sociedade de castas é um mascaramento dessa condição, pois é o que sentimos na prática”, ressalta a bióloga e coordenadora de saúde da população negra da Prefeitura de Olinda, Conceição Silva.

A condição é tão desigual que chega a se manifestar até depois da morte. De acordo com Conceição, 60% dos doadores de órgãos ao Sistema Único de Saúde são negros e pardos. Mas quem é mais beneficiado? “Menos de 10% dessa população não acessa esses transplantes. Você doa o coração ao SUS mas não faz uso dele. Esse é um dado real”, aponta.

O professor de história Wellington Lima aborda a mais ostensiva manifestação dessa desigualdade racial: a violência. “Quando a gente abre o mapa da violência, vê que quem mais morre é o negro jovem e de periferia. O extermínio da juventude negra mata mais que o tráfico”, diz. As palavras dele ecoam no organizador do Mapa da Violência no Brasil, Júlio Jacobo Waiselfisz. Os números do último relatório, organizado em 2015, apontam que para cada homem branco assassinado no Brasil, morrem 2,5 negros.

“Aqui, como nas outras partes do mundo, racismo mata, seja diretamente via genocídio direto, como nos casos do nazismo, Bósnia, Ruanda, Armênia, seja indiretamente, pelas escassas condições de acesso à saúde, educação e renda. No Brasil temos ambas, periferias urbanas segregadas e esquadrões da morte que originam um verdadeiro genocídio da juventude negra do País”, explica.

Quando a gente abre o mapa da violência, vê que quem mais morre é o negro jovem e de periferia. O extermínio da juventude negra mata mais que o tráfico. (Wellington Lima)

O conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e doutor em ciência política Leonardo Sakamoto resume muito do que foi dito nos parágrafos anteriores ao lembrar da institucionalização do racismo no Brasil. E usa como exemplo quem tem o papel de proteger. “Os representantes das forças policiais fazem distinção e atiram mais em negros do que em brancos. As balas da polícia sabem muito bem diferenciar um e outro. É uma questão de pele (raça) e não de classe social”.

Cotas

Um dos instrumentos utilizados para amenizar essa desigualdade crônica foi a criação das cotas em instituições públicas de ensino e nos concursos. Necessárias, todos os personagens que aqui falaram concordam, mas apenas o primeiro degrau de uma escada que ainda está longe de chegar à fatia mais bem colocada da população. “Não é só ter acesso à educação, é às oportunidades também. O modelo do Estado brasileiro é de excluir a população negra. Diariamente sofremos opressão de quem deveria nos proteger”, avalia o sociólogo Adeíldo Araújo.

Sakamoto vai na mesma linha de pensamento ao recobrar a história. A tese dele é que o Estado nunca ajudou, apenas libertou a população negra do jugo dos senhores de engenho e os colocou como uma classe menor e perigosa. “O Estado os empurra para que eles cumpram a profecia que, nós brancos, criamos para eles”. Para ele, a cota é necessária, mas enquanto houver uma subrepresentação da população negra em todos os setores da sociedade. “A cota é importante para forçar a garantia de que a representação dessa população seja melhor distribuída. Há uma subrepresentação de negros no Congresso, entre as prefeituras e no comando dos estados, em todos os lugares. Mas como uma sociedade que não se vê como negra vai poder garantir esses direitos aos negros? Mas aí iriam bradar que isso é meritocracia. Mas, desculpa, a meritocracia no Brasil é hereditária. O Estado precisa compensar minimamente essa desigualdade, não que vá garantir sempre, mas que todos tenham um quinhão inicial e façam com ele o que quiserem”, ressalta.

No parlamento, tem que ter cotas para negros, indígenas, asiáticos e descendentes de europeus. Tem que ser feito de acordo com o IBGE. (Adeíldo Araújo)

Já Adeíldo pega o gancho da política para lembrar que apenas 5% do congresso brasileiro é formado por negros e pardos, quando 54% da população do País se declara destas raças. “No parlamento, tem que ter cotas para negros, indígenas, asiáticos e descendentes de europeus. Tem que ser feito de acordo com o IBGE. Assim se construiria uma democracia porque hoje, no Brasil, é o poder aquisitivo que faz chegar ao parlamento. “

Era digital e intolerante

Com a informação correndo cada vez mais rápido e atingindo um número muito maior de gente por causa das redes sociais, o racismo viu as duas faces da moeda aflorarem. Ao mesmo tempo que escancarou a intolerância de muitos, também serviu para outros se organizarem por mais direitos – ou não perderem o que já foi conquistado. Mostrou também que o preconceito está tão espalhado que não perdoa negros que pertencem às classes sociais mais abastadas: o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, a atriz Taís Araújo, o cantor Gilberto Gil e sua filha Preta Gil. Todos sofreram ataques racistas. “As redes sociais não tornaram o Brasil mais racista. Elas fizeram as pessoas se comunicarem melhor e determinados grupos da sociedade miram as redes sociais para descarregar discursos de ódio e intolerância”, pontua Sakamoto.

O cientista político também acredita que esses discursos das redes começaram a ir às ruas com os protestos de junho de 2013. Para ele, naquele momento as pessoas foram chamadas para participar da discussão política e também deu brecha para grupos ultraconservadores bradarem seu ódio aos quatro ventos. “São grupos que defendem que os direitos de outros grupos sejam tolhidos. São grupos que defendem um discurso de ódio sob o argumento de liberdade de expressão. Isso é uma falácia porque você não pode usar um direito seu fundamental para tirar a existência de outro. “

Racismo “não é crime” no Brasil. 

Você vai entender por quê

A Lei 7.716/89, que trata das discriminações, principalmente o racismo, tem 22 artigos. Passou por revisões que agravaram a pena em algumas hipóteses. Como todos sabem, é um crime inafiançável perpetrado na Constituição de 1988. É, ou seria, o braço forte do Estado combatendo o preconceito. Mas sabe quantas pessoas foram condenadas no País por racismo em 2016? Se o próprio governo federal não sabe, como você saberia? Durante a elaboração desta reportagem foi solicitado ao Ministério da Justiça, via Lei de Acesso à Informação, a quantidade de pessoas cumprindo pena por racismo no Brasil. O pedido foi respondido pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão vinculado ao MJ.

“Forçoso convir que os referidos dados estatísticos consolidados por este Departamento não abarcam plenamente a pesquisa demandada, pois a última coleta de dados é relacionada ao período de dezembro de 2014 e os dados sobre tipificação penal englobam o total de pessoas presas pelo respectivo crime, sendo a soma dos presos provisórios e definitivos.”

Além de defasado em mais de dois anos, o relatório do Depen traz a listagem de crimes contra a pessoa mais comuns, como homicídio, aborto, lesão corporal, violência doméstica e cárcere privado. Os demais artigos estão relacionados como ‘outros’. Essa ausência do racismo só reforça a teoria de quem o sofre diariamente: como existe a injúria racial com sua punição bem mais branda, o racismo como crime praticamente não existe no Brasil. “A pessoa age de forma racista e a defesa consegue tirar e transformar em injúria racial, paga uma fiança e, quando muito, fica um ano presa. Isso incentiva o racismo”, explica o professor de história Wellington Lima. Só para efeito de comparação, o crime de racismo pode manter alguém na cadeia por até cinco anos.

A diferença básica é que o racismo é interpretado juridicamente como uma ofensa a uma coletividade, enquanto a injúria é direcionada a uma determinada pessoa. Foi o caso da torcedora do Grêmio, Patrícia Moreira, que chamou o então goleiro do Santos, Aranha, de ‘macaco’ durante um jogo pelas oitavas de final da Copa do Brasil de 2014. Ela e outras três pessoas responderam por injúria racial, mas ninguém foi preso porque um acordo os obrigou a se apresentarem na delegacia uma hora antes de cada partida do time – em Porto Alegre ou qualquer outro lugar – durante dez meses.

“O que justifica o crime de racismo ser desqualificado para injúria? O Estado precisa dar essa resposta. Se as leis que existem forem trabalhadas vai mudar muito a nossa realidade. Basta tipificar os crimes e punir. Existem vários tratados internacionais contra o racismo, fora a vasta legislação não aplicada. Isso é uma forma de fortalecer a desigualdade”, reclama a bióloga e coordenadora de saúde da população negra da Prefeitura de Olinda, Conceição Silva.

A pessoa age de forma racista e a defesa consegue tirar e transformar em injúria racial, paga uma fiança e, quando muito, fica um ano presa. Isso incentiva o racismo. (Wellington Lima)

Negros no cárcere

Porém, se não informou quantos – ou se – estão condenados por racismo, o relatório penal dá um dos sintomas do que todos os movimentos ligados aos direitos dos negros – e humanos – bradam há tempos: o racismo é institucionalizado. O mesmo documento nos mostra a população carcerária dividida por raça. Nada menos do que 61,67% das pessoas, de ambos os sexos, atrás das grades, é negra. É um percentual bem acima dos que se identificam como pretos e pardos no censo (tais expressões são usadas pelo próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): 54%.

O conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e doutor em Ciência Política, Leonardo Sakamoto, acredita que o racismo responde bastante por esses números. A primeira teoria engloba os três P’s: preto, pobre, de periferia. “Não existe nada que garanta que o negro pobre da periferia seja bandido”. Ele gostaria que o debate fosse mais aprofundado não apenas para que se debata racismo dentro de instituições de manutenção da ordem, como Polícia Militar e Exército.

Não é apenas porque os negros são mais pobres. Eles têm uma condição menor para acesso a bons advogados e por mais que nossa Defensoria Pública tenha bons profissionais, há um limite. (Leonardo Sakamoto)

O trato com a lei também deveria ter alguma sensibilidade para o tema, além, é claro, de uma representação maior da população preta e parda nas varas, Tribunais de Justiça e escolas de magistratura e o famoso acesso ao serviço de advogados bem diferente da maioria da população branca. “Não é apenas porque os negros são mais pobres. Eles têm uma condição menor para acesso a bons advogados e por mais que nossa Defensoria Pública tenha bons profissionais, há um limite. Também há uma subrepresentação grande na Justiça em geral. Seria ótimo uma população maior entre juízes e desembargadores, pois uma pessoa negra vai entender muito mais como é esse preconceito. E mesmo com essa subrepresentação, os profissionais deveriam ser treinados para isso. A questão racial não é abordada como se deveria nas escolas de Direito”, acredita o cientista político.

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O pecado é “preto”, por isso quero ser branco

Se você achou cruel a mensagem do comercial do Governo do Paraná aí em cima, nas próximas linhas vai descobrir que o racismo talvez seja a mais perversa intolerância abordada aqui. Por um simples motivo: muitas vezes faz o indivíduo negar a si mesmo, fazer do seu corpo o objeto de seu próprio preconceito. O psicólogo Wellington Albuquerque Filho, do Grupo de Trabalho Enfrentamento ao Racismo, do Conselho Regional de Psicologia de Pernambuco, relata casos de mutilação do próprio corpo, principalmente de crianças e adolescentes em busca de um ‘embranquecimento’ alardeado pela moda, mídia e comércio como o padrão ideal de beleza.

“Tem um caso que debatemos aqui de uma criança que tomou água sanitária para mudar a coloração da pele porque havia visto numa propaganda que a água sanitária deixa tudo mais branco. Adolescentes já tiveram queimaduras de terceiro grau no couro cabeludo com chapinha para deixar o cabelo liso porque o padrão mostra que o cabelo liso é o bonito. Muitas pessoas negras, mas com um tom de pele menos escuro, vão à praia com camisas UV de manga comprida para não ‘escurecerem’ mais. Isso são dados reais”, conta.

Duas palavras que a psicologia usa bastante são significação e ressignificação. Nelas, estão as chaves de como o racismo se perpetua tão inconscientemente nos brancos e negros, levando um a ser educado a oprimir e o outro, sob o mesmo argumento, a ser oprimido sem reclamar. O exemplo clássico é o cabelo. Se for crespo ou encaracolado é tido como ‘ruim’. Se for liso, a classificação é ‘bom’. “Imagina você crescer escutando que tem algo ruim em você. A pessoa vai alisar o cabelo para ser aceita, para ser esteticamente boa”, aponta a psicóloga Gioconda Sousa Silva.

A partir daí entra-se num ciclo de negação, tentativa de mutilação e a decepção por, obviamente, não conseguir. Depressão, negação ainda maior, retraimento e ódio a si mesmo. Colocar pregador de roupa no nariz para ele ‘afinar’ e tentar uma maquiagem que amenize a espessura dos lábios são estratagemas que amplificam ainda mais esse sofrimento. “Começa daí o sofrimento para a pessoa negra. Tentar se aproximar do fenótipo branco é o que, de fato, é instituído. Esse processo de percepção é muito difícil porque o negro representa tudo de ruim. Num processo de desenvolvimento do sujeito é muito difícil que você tenha essa consciência”, ressalta Gioconda.

A bióloga e coordenadora de saúde da população negra da Prefeitura de Olinda, Conceição Silva, sente, literalmente na pele o que Gioconda aborda. “A gente chega numa fila de banco e as pessoas se retraem imediatamente. Se isso é muito frustrante para quem está no processo de lutar pelos direitos da população negra, imagine para um adolescente em pleno desenvolvimento da personalidade, numa fase de experiências, se deparar com isso? O processo de superação não acontece, isso acumula e tira a dignidade do existir”, pontua.

Tornar-se negro

Wellington Albuquerque teve acesso a outros estudos com crianças negras sobre a percepção do racismo a partir do ato mais simbólico da infância: brincar. Quando ela é estimulada a apontar quem é a boazinha e a malvada entre bonecas brancas e negras. “As próprias crianças negras vão dizer que o mau é o negro e o bom, o branco. A construção da subjetividade é colocada num ponto em que o negro não consegue se enxergar como tal. Existem algumas linhas de trabalho na psicologia que abordam o tornar-se negro, se compreender como ele é. E é muito difícil porque mexe nas estruturas da pessoa. “

Na clínica, quando isso é abordado, pacientes relatam situações em que se viram e não entenderam o motivo de ter sido tratado de uma maneira X e não daquela Y. “É um nível de sofrimento coletivo e social que a própria pessoa que sofre não consegue tomar consciência de que está sofrendo. Porque os motivos vão muito além dela”. Quando se consegue, prossegue o psicológo, é algo como se uma luz se acendesse. “A pessoa toma consciência do porque não era chamada para dançar na festinha da escola. “

Se a tomada de consciência do oprimido é apontada como difícil pelos psicólogos, imagine a do opressor. Fácil de interpretar porque quem oprime tem poder. E quem tem poder, seja lá qual for, não quer abrir mão. “Reconhecer-se racista e tentar trabalhar para que deixe de ser, implica em perda de poder e privilégios. Você vai perder alguns lugares porque vai passar a dividir. Quem vai querer?”, desafia Gioconda.

Wellington segue a mesma linha de raciocínio apontando a dificuldade maior de quem agride em reconhecer a agressão. Obviamente que não se trata de uma tentativa de amenizar o racista, mas de entender como isso se processa na cabeça de quem age dessa forma. “Estamos falando da relação de poder e quando existe essa relação de poder muito forte é difícil tomar consciência. “

Mas para que se enfrente o problema, é primordial que negros e brancos caminhem lado a lado nesse enfrentamento, no entender de Gioconda. “O enfrentamento ao racismo nunca pode ser restrito a pessoas negras. É preciso que as pessoas brancas venham para a luta ou não vamos conseguir quebrar esse ciclo que se perpetua há séculos. E por mais que se negue que ele existe, está sempre presente”, destaca.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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