5 mitos consolidados no senso comum que acabam prejudicando a sua vida

Por Matheus Claudino, no Voyager

Muito provavelmente você já deve ter ouvido, seja no trabalho, ecoando em um bar da esquina, em rodas de amigos ou até mesmo de familiares, certas opiniões que se tornaram aceitáveis não necessariamente por estarem corretas, mas por terem sido reforçadas pelo senso comum.

Opiniões como “socialismo é lindo na teoria, mas impossível na prática porque o ser humano é mau por natureza” ou “os países desenvolvidos não possuem um Estado inchado como o brasileiro e se desenvolveram graças ao livre mercado” ou ainda (e certamente a mais conhecida), “tudo que é publico não presta, basta ver as escolas e hospitais públicos, por isso sou a favor de que tudo seja privatizado”.

Já nas discussões políticas que ocorrem nas redes sociais, tais opiniões ganham status de estudo sério: “segundo os índices de liberdade econômica…” entre outras coisas desprendidas completamente da realidade, mas que são mitos muito bem construídos, que acabam promovendo cada vez mais a desinformação no público em geral como se verdade fosse…  Porém, a única verdade dessa história é que tais mitos não passam de falácias.

Esses mitos surgem e se consolidam não apenas por conta da nossa deficiente formação em história, economia, antropologia ou sociologia, mas também porque raramente são questionados e devidamente rebatidos pelas pessoas que poderiam fazê-lo. Logo, nossa intenção aqui é tentar mudar um pouco esse quadro, colocando à prova alguns desses mitos, desmistificando essas crenças que ouvimos rotineiramente.

Segue uma análise sobre cinco deles, a qual, baseando-se em fatos e pesquisas, objetiva mostrar até onde esses mitos dizem alguma verdade, quando não completamente falsos.

1 – O mito da natureza humana má

O conceito que define o homem como naturalmente mau não tem respaldo algum em estudos antropológicos. Na verdade, trata-se de um conceito criado pelo teórico político inglês Thomas Hobbes em sua obra O Leviatã.

Segundo Hobbes, “o homem é o lobo do homem” e está fundamentalmente preocupado com seu ego. Todas as suas ações decorrem da realização de suas necessidades e da probabilidade de alcançá-las com êxito.

Hobbes afirma ainda que “enquanto o homem estiver na condição de mera natureza (…) o apetite privado é a medida do bem e do mal” [1] sublinhando aqui claramente o significado do indivíduo em seus conceitos. Hobbes continua dizendo que, para superar essa barbárie, os homens criam um pacto entre si no qual abdicam do seu estado de natureza a favor de um governante soberano, o qual seria responsável pela paz, segurança e ordem social.

Ou seja, o conceito de “homem mau” foi teorizado para legitimar o Estado absolutista, contra o qual, mais tarde, os liberais clássicos se colocaram e combateram. Porém esse fato não impede que hoje os (neo)liberais utilizem esse conceito para também legitimar o capitalismo baseado no Estado moderno, que não tem nada de absolutista, o que é conceitualmente contraditório. No entanto, as limitações da teoria de Hobbes não param por aí…

Benjamin Kleinerman, professor de ciências políticas da Universidade de Michigan, posteriormente chamou isso em seu livro de “a novidade do individualismo de Hobbes”. Como crítico deste conceito, ele nos faz entender que este pensamento do “homem mau” é baseado em um ser individual, com suas necessidades e desejos, cuja realização gira em um fim-em-si absoluto. Em vez de considerá-lo como ente de todo um corpo social, acaba o definindo fora de seu contexto social. [2]

Outro crítico de Hobbes, o filósofo escocês George Croom Robertson, argumentou em seus escritos que: “a imagem das tendências egoístas e anárquicas no homem são claramente exageradas pelo seu escritor, o que, na verdade, é um simples resultado do temperamento de Hobbes, incapaz de entrar nos lados mais nobres da natureza humana”.[3]

Além do Kleinerman e Geroge Croom, uma gama de pensadores como Van Mill, Gauthier e o mundialmente famoso Rousseau também fizeram grandes críticas a este pensamento.

É preciso salientar aqui que o homem é muito influenciado pelo meio em que vive. Sendo ele um produto do seu meio, ele é passível de incentivos do arranjo econômico em que está inserido. De acordo com o filósofo e sociólogo Theodor Adorno,  se a competição é o que fundamenta uma economia, como consequência veremos homens egoístas, com suas relações sociais cada vez mais coisificadas, objetivando seus valores em meras relações entre objetos de troca.

O ser humano não é naturalmente bom, mas também não é essencialmente mau. Temos que considerar o contexto social em que viveu para melhor compreendê-lo, como tentou Karl Marx ao encarar o homem como um ser social limitado pelo seu meio. Para ele, a relação entre sujeito e objeto é dialética, onde o sujeito abstrai do objeto as informações, utilizando de diversos instrumentos para estabelece-la.

Evidentemente existem outros fatores que também podem influenciar, como o biológico, mas não cabe aqui dissertar entre esses campos. O que é necessário lembrar é que o homem não é coordenado ou determinado por desejos ou aspirações já inerentes. No máximo, o instinto pela própria sobrevivência e para a sua espécie, que é o instinto básico “programado” no nosso comportamento, sendo os demais fatores externos a ele a chave elementar para avaliarmos seu bom ou mau comportamento.

Um fato muito relevante que também pode ser levado em consideração, é a natureza do macaco Bonobo, cuja cadeia de DNA é 98,7% igual ao do homem. Esses primatas são conhecidos pelos biólogos por uma convivência relativamente pacífica e altamente empática com outros membros do grupo.

O comportamento pacífico pode ser observado em primatas humanos e não humanos como o motor das relações sociais, afirma o primatólogo holandês Frans de Waals , que acredita ser a natureza humana igualmente pacífica, como a de seus ancestrais. [4]

Para vocês terem uma ideia da natureza deste primata, se um bonobo eventualmente tenta ferir uma fêmea, acaba sendo repreendido por todo o grupo e recebe uma espécie de castigo por conta disso.

Assim, percebemos que os liberais e conservadores, ao tentarem justificar o status quo  utilizando o conceito da natureza má do homem, estão se valendo de uma teoria já rechaçada pela ciência para embasar sua defesa do capitalismo, e, desta forma, acabam se revelando totalmente ideológicos.

2 – O mito dos índices de liberdade econômica

Os índices de liberdade econômica são elaborados por think tanks (fundações pagas para propagar ideologias) conservadores e liberais como Catho, Fraser Institute e Heritage Foundation. Todos eles foram criados e mantidos por magnatas dos EUA, seja diretamente ou por meio de organizações que os representam.

A Heritage Foundation, por exemplo, foi criada com um investimento bilionário do banqueiro estadunidense Richard Mellon, junto com o também bilionário Joseph Coors (ambos militantes do movimento conservador nos EUA) e é usado frequentemente para ranquear os países  de acordo com sua “liberdade econômica”, numa clara apologia ao (neo)liberalismo econômico. Sua metodologia utiliza diversos critérios, os quais, no entanto, pouco têm a ver com a ideologia (neo)liberal ou que são simplesmente um consenso entre diversas vertentes políticas. Já os poucos critérios que realmente tem a ver com a ideologia que pregam, valem-se de uma correlação que não implica uma causalidade, além de ser uma abordagem a-histórica (ignora que a liberação da economia dos países ricos é algo recente), logo não explicam o desenvolvimento econômico de país algum, o que tornam esses índices falaciosos.

Mesmo sendo levado a sério apenas pela extrema direita conservadora dos EUA (falaremos mais sobre isso à frente) parece que, aqui no Brasil, os índices da Heritage Foundation ganharam status de estudo acadêmico para muita gente. A direita tupiniquim costuma utilizá-los para fazer afirmações como “Singapura é desenvolvida devido ao livre mercado”, o que é completamente falso (confira o real modelo de desenvolvimento de Singapura aqui). Via de regra, o índice ignora totalmente o peso do Estado e seu papel na história econômica dos países, assim como suas políticas governamentais assistencialistas/intervencionistas e sua presença nos mais diversos setores, como o de energia, o imobiliário e o de telecomunicações nos dias atuais. [5]

Devido a sua forma de avaliação extremamente inconsistente e incoerente, a credibilidade desta fundação foi colocada em xeque nos EUA. Até mesmo outro think tank liberal de lá, o da CATO, já fez críticas aos estudos da Heritage, chamando-os de pretensiosos, mas sem muita base no real.

Entre muitos erros cometidos pela fundação, destacam-se seus controversos relatórios, dentre os quais dois  ficaram muito conhecidos entre os estadunidenses:

1) A Heritage apresentou um relatório afirmando que a imigração era prejudicial para a economia dos EUA. No entanto, foram posteriormente forçados a reconhecer este erro grotesco. [6] (Inclusive o encarregado pelo estudo ajudou a refutar a pesquisa e então foi demitido).

Um dos especialistas no assunto, o professor Raul Hinojosa-Ojeda, escreveu um extenso artigo sobre o impacto da reforma migratória na economia Americana. Ele descobriu que ela aumentaria o PIB dos EUA em aproximadamente US $ 2,3 trilhões. Desta forma invalidou todo o estudo da Heritage mostrando dados bem diferentes dos que foram apresentados por essa fundação. [7]

2) Com o claro objetivo de difamar o presidente Obama, a Heritage apresentou um relatório chamado de “o índice de dependência do governo em 2012”, com o qual seus especialistas chegaram à conclusão bem previsível de que a nação está perigosamente perto de um “colapso econômico e social”, porém, o real alvo dos seus especialistas ao fazer essa constatação era atacar as políticas sociais que atendem os estadunidenses que mais dependem da ajuda governamental para garantir a sua sobrevivência. [8]

Usando sempre um tom alarmista (o que se tornou sua principal característica nos EUA), a Heritage afirmara que a dependência dos estadunidenses em relação ao governo aumentou 13,8% entre 2009 e 2010. Mais de 67 milhões de americanos – 21,8% da população – dependeria do governo, concluía o think tank em seu relatório.

Este relatório foi alvo de muitas críticas por ser extremamente seletivo: em sua elaboração considera apenas a ajuda governamental aos grupos sociais mais vulneráveis ou dependentes (estudantes, idosos, pequenos proprietários) e ignora programas governamentais enormes e muito mais custosos que subsidiam grupos privilegiados (principalmente a classe média alta e os ricos). [9]

Assim, fica evidente que os relatórios da Heritage não conseguem sequer avaliar com a devida propriedade dados do próprio país onde essa fundação está sediada, o que coloca em xeque a sua capacidade para analisar dados de outros países como Hong Kong, Singapura e Coréia do Sul.

Além dos relatórios, a metodologia utilizada em seus índices de liberdade econômica é extremamente falha, o que você pode conferir aqui.

Diante disto surge um questionamento inevitável: como os conservadores brasileiros pretendem utilizar esses índices como argumento a favor de um Estado mínimo no Brasil, se a principal fundação responsável por sua elaboração é conhecida por fazer relatórios absurdos, além de usar metodologias falaciosas em seus rankings de “liberdade econômica”? Como confiar em índices de think tanks que são encarados com desconfiança no próprio país onde estão sediados, os EUA?

3 – O mito do livre mercado

Geralmente os defensores do livre mercado possuem crenças que à primeira vista possuem alguma lógica, como o da livre concorrência que resolveria todos os nossos problemas, inclusive o dos monopólios, os quais apenas existem, ora, veja só, por não existir de fato livre concorrência. Tal crença vai além, fazendo a seguinte conclusão: se não há concorrência perfeita, não existe capitalismo de verdade, mas sim “crony capitalism” ou capitalismo corporativista, de compadrio. Todavia, a realidade é bem diferente do que essas crenças dizem, ela é muito mais complexa, o que faz os defensores do livre mercado caírem em contradição. Afinal, longe de ser uma análise objetiva e empírica da realidade, suas crenças se baseiam em impressões subjetivas e que são repetidas como mantras.

A real possibilidade de existir um real livre mercado, no qual seria possível uma concorrência perfeita, foi avaliada pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang, que é especialista neste tema, em seu livro 23 Coisas que não nos contaram sobre o capitalismo [10]:

“O livre mercado não existe. Todo mercado tem algumas regras e limites que restringem a liberdade de escolha. O mercado só parece livre porque estamos tão condicionados a aceitar as suas restrições subjacentes que deixamos de percebê-las. Não é possível definir objetivamente o quanto um mercado é “livre”. Essa é uma definição política. A alegação habitual dos economistas que defendem o livre mercado de que eles estão tentando defender o mercado contra a interferência politicamente motivada do governo é falsa. O governo está sempre envolvido e esses adeptos do livre mercado estão tão politicamente motivados quanto qualquer pessoa. Superar o mito de que existe algo como um “livre mercado” objetivamente definido é o primeiro passo na direção de entender o capitalismo.”

Porém, mesmo os gurus dos defensores do livre mercado (em sua maioria da Escola Austríaca) sustentam essa ideia de maneira extremamente frágil. Um deles, Milton Friedman (este monetarista da Escola de Chicago), reconhece em seu livro Capitalismo e Liberdade que de fato a liberdade dos indivíduos aumenta caso a sociedade estabeleça regras que assegurem a disseminação da riqueza e da livre concorrência [11]. Mas, pela mesma lógica, um mercado que opera sem regras para impedir o acúmulo de riquezas gerado por essa própria disseminação nega completamente a “liberdade humana” de muitos, o que é, no mínimo, contraditório.

Mesmo enfatizando os monopólios estatais e suas interferências, Friedman também reconhecia o monopólio como decorrência da própria livre concorrência, reconhecia abertamente os monopólios sem qualquer interferência governamental. [12]

Surpreendentemente, até mesmo o guru mais citado entre os defensores do livre mercado na internet, o economista austríaco Ludwig von Mises, também reconhecia que a não interferência do Estado na economia poderia gerar monopólios em seu livro Ação Humana, p 437. [13]

Outro fator que deve ser considerado ao falarmos de livre mercado, é o modo de produção no capitalismo, que é baseado em  economia de escala: a produção visa maximizar a utilização dos seus fatores produtivos (por meio do constante aprimoramento tecnológico de maquinários, equipamentos, robôs, etc), em sua busca por  custos de produção cada vez mais baixos. Assim, as empresas que contam com uma grande escala produtiva, o investimento inicial é inserido sobre o crescente número de unidades de produção. Desta forma, as grandes empresas ficam com uma enorme vantagem competitiva em detrimento dos pequenos negócios, que podem ser praticamente engolidos, surgindo assim os monopólios. [14]

Diante de tais fatos, surge o seguinte questionamento: Como é coerente chamar algo de livre mercado ou liberdade de escolha, se o que existe na realidade é cerca de 10 corporações gigantes que detém o controle de praticamente tudo o que é consumido, e que chegaram nesse estágio não por conta do “capitalismo de compadrio”, como dizem os defensores do livre mercado, mas sim justamente pela lógica da economia de escala, própria do capitalismo? [15] Outra pergunta é: Como o homem atinge sua liberdade por meio de relações regidas pela lógica de mercado, restando-lhe assim apenas a “opção” de vender sua força de trabalho e tendo apenas um acesso condicionado na vitrine de mercadorias, limitadas a sua condição material?

Logo, vemos que o conceito de livre mercado e sua livre concorrência é bastante limitado e desconsidera vários fatores existentes na realidade. Seus defensores, por uma questão de coerência e comprometimento com os fatos, deveriam chamá-lo de uma forma mais adequada, como “mercado parcialmente livre” ou “mercado livre de certa forma”.

4 – O mito do Estado inchado no Brasil

Chegamos no mito mais conhecido, bastante difundido pela grande mídia e pela classe média brasileiras, mas até onde esse mito é verdadeiro?

Se compararmos o Brasil com outros países, veremos que o número de funcionários públicos em relação aos empregados na iniciativa privada é baixo [16]:

Ou seja, o Brasil possui um Estado muito menor do que os países desenvolvidos, apesar de possuir mais de 200 milhões de habitantes, cuja maioria é pobre e se encontra desassistida de serviços públicos essenciais. Fica evidente que a campanha por um Estado mínimo no Brasil não se justifica (afinal, na prática, já é mínimo) e acaba se revelando um pretexto dos setores mais abastados da sociedade em coro com a grande mídia (cujos anunciantes também são corporações estrangeiras também interessadas no desmantelamento do Estado) para desmantelar o raquítico, quase inexistente Estado Social brasileiro a favor dos seus negócios, via privatizações, priorização do pagamento da dívida pública com seus juros abusivos e pesado lobby para influenciar a agenda da orçamento público.

Um estudo lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), chamado Serviço Público Federal Brasileiro no Século 21: Inchaço ou Modernização e Profissionalização, faz uma análise mais detalhada do funcionalismo público brasileiro, trazendo dados sobre suas contratações e sua situação [17]. Neste estudo podemos conferir que, em vez de inchaço do Estado, como muitos insistem em dizer, o que de fato foi constatado é que o serviço público nos últimos anos “se recompôs e modernizou sua força de trabalho”.

Outro dado que deve ser observado é o gasto federal com a folha de pagamento dos servidores públicos, cujo valor é muito baixo em relação à receita líquida. Segundo a lei de responsabilidade fiscal presente na Constituição, é resguardado 50% dos gastos com servidores, contudo só 37% é realmente utilizado. [18]

Desde os anos 90, vemos que os gastos com servidores públicos se manteve abaixo do crescimento da nossa receita [19] e isso é nítido para qualquer pessoa de bom senso, que não tenha uma concepção de mundo ideológica, como costumam ter aqueles que insistem em culpar o Estado e seu tamanho (sempre algo gigantesco no imaginário dessas pessoas) como a fonte de todos os nossos problemas. No entanto, conforme os estudos sobre o Estado brasileiro evidenciam, na verdade o Brasil necessita ampliar ainda mais seus serviços públicos e aumentar o investimento neles, principalmente em áreas vitais para a população como saúde e a educação.

5 – O mito da eficiência da iniciativa privada

Mais um mito que é repetido como um mantra, principalmente pelos monopólios de mídia. É tão repetido que, com o passar do tempo, o senso comum acaba adotando isso como uma verdade incontestável.

Essa ideia vem sempre acompanhada de justificativas como ”o setor privado é melhor porque é eficiente e dinâmico, já o setor público é gastador e ineficiente” outro pretexto usado é “quanto mais privatizações, melhor para a economia”.  Mais uma vez, trata-se de uma crença ideológica que, na prática, assim como o mito do “Estado inchado”, serve aos interesses de grupos econômicos que desejam a alienação dos bens públicos e a privatização crescente dos bens e serviços essenciais para expandirem seus negócios.

Diversas pesquisas sobre as privatizações foram feitas e elas nos dizem muito sobre até que ponto o mito de que a iniciativa privada é mais eficiente é verdadeiro. Aqui falaremos sobre uma delas, que também é uma das mais completas já feitas sobre a eficiência da iniciativa privada, no caso, as empresas europeias privatizadas entre os anos de 1980-2009. Essa pesquisa compara o desempenho das empresas públicas com as empresas privadas, assim como o desempenho destas últimas quando ainda eram públicas.

A conclusão dessa pesquisa é surpreendente: As empresas privatizadas tiveram um pior desempenho em relação às empresas públicas, e, ainda, segundo a pesquisa, esse baixo desempenho se prolongará por aproximadamente dez anos ou mais. [20]

Trazendo o debate para a realidade brasileira, também podemos conferir que esse mito não se sustenta observando a diferença de qualidade entre as faculdades privadas e as faculdades públicas. Estas sempre lideram o ranking das melhores faculdades do Brasil. No topo, podemos conferir nomes como a UFRJ e a USP [21]. A superioridade das faculdades públicas atrai até mesmo os jovens defensores do livre mercado que prestam vestibular para entrar nelas e, caso aprovados, de lá não saem mais até obterem o diploma. Ora, se a iniciativa privada é melhor, por que não estudam em faculdades privadas? Eles dizem que apenas querem recuperar  impostos, mas curiosamente não estudaram em escolas públicas para fazer o mesmo, porque seus pais e eles próprios sabiam sobre a sua baixa qualidade devido aos baixos investimentos, como já explicado no item 4.

O que faz o ensino público superior ser tão eficaz assim? Talvez seja pelo mesmo fator que faz a OMS (Organização Mundial de Saúde) considerar o modelo se saúde pública cubano um exemplo para o mundo em medicina e saúde preventiva? [22] De forma inusitada, até mesmo o jornalista da conservadora Rede Globo, Jorge Pontual, reconheceu a eficiência da saúde pública de Cuba, chegando a declarar ao vivo na Globo News que “devemos tirar o chapéu, a medicina cubana é um exemplo para o mundo”. [23] Seja no capitalismo ou no socialismo (real), os serviços públicos funcionam muito bem se forem administrados com boa vontade política.

Outro mantra muito utilizado a favor das privatizações, é aquele baseado na seguinte máxima: lucros privados, prejuízos privados – o que é uma noção de capitalismo idealizada, que existe apenas na mente deles, já que, na realidade, no capitalismo real, a história é bem diferente. Vejamos um caso recente que contraria essa idealização: a crise de 2008.  A pedido dos executivos do banco Goldman Sachs, o governo dos EUA, país que é nada mais, nada menos o centro do capitalismo mundial, topou injetar 700 bilhões de dólares para salvar o banco e evitar o desmoronamento do sistema bancário devido à crise do Subprime. Quando a crise bate a porta, os devotos do mercado clamam pelo dinheiro público, dizendo que são “grandes demais para falir” [24].

É claro que existem inúmeros problemas com o nosso serviço público, isso pode ser facilmente constatado e é necessário reconhecer suas falhas e limitações. No entanto, a solução para esses problemas não virá da iniciativa privada, mas sim via participação política, que pressione as autoridades responsáveis  pela administração da coisa pública reivindicando melhoras e ajustes nesses serviços tão essenciais para o nosso bem-estar.

Conclusão

De unicórnios que apresentam um mundo de fantasia para dragões que incendeiam o senso comum: os cinco mitos se mostraram na verdade cinco falácias, e encharcadas de ideologia.

Com a ajuda da grande mídia, elas se espalham e ganham cada vez mais espaço nas redes sociais, diante das quais a trincheira virtual acaba padecendo de embasamento acadêmico e dados concretos para confrontá-las.

Em consequência disso, a primeira teoria política toma formas cada vez maiores aqui no Brasil ultimamente, sendo amparada quase sempre por sites como “Mises Brasil”, “Spotniks” ou formadores de opinião como o MBL (Movimento Brasil livre), que defendem ideologias de think tanks conservadores. Por essa razão, tentamos aqui prover aos que realmente estão interessados o oposto, isto é, a real informação, baseada na realidade e nos fatos.

Logo, é necessário alertar a você, leitor (e aproveitando para agradecer a leitura do nosso texto, dado que estamos no último parágrafo) que, antes de compartilhar ou tomar qualquer um desses mitos apresentados acima como verdade, é necessário, antes de tudo, pesquisar a fundo sobre o assunto em questão, do contrário, acabamos caindo em falsificações grotescas que apenas estão comprometidas com interesses econômicos bem específicos, e jamais com a construção de um mundo melhor por meio do conhecimento.

Revisão de texto: Jorge Charon

Referências

[1] HOBBES, Thomas – Leviathan (PDF), pag. 216
[2] KLEINERMAN, Benjamin –  The Political Theory of Possessive Individualismp (1985), pag. 8
[3] TARLTON, Charles D. (2001) The Despotical Doctrine of Hobbes (Parte I: ‘The Liberalization of Leviathan’, History of Political Thought, 22:4, 587-618, p. 595).
[4] Veja – Humanos são naturalmente pacíficos, afirma Frans de Waal
[5] Voyager – 10 fatos que invalidam os índices de liberdade econômica
[6] CATO – Heritage Immigration Study Fatally Flawed
[7] CATO – The Economic Benefits of Comprehensive Immigration Reform (PDF)
[8] Heritage Foundation – The 2012 Index of Dependence on Government
[9] Market Watch – Heritage Foundation is wrong about welfare state
[10] BBC – Livro questiona 23 mitos do capitalismo
[11] FRIEDMAN, Milton –  Capitalismo e Liberdade (PDF), pag. 6
[12] Brasil Livre (YouTube) – Friedman fala sobre os monopólios
[13] MISES, Ludwig von – Ação Humana, pag 437
[14] UFRJ – Economias de Escala, Concorrência Imperfeita e Comércio Internacional (PDF)
[15] InfoMoney – 10 empresas que controlam (quase) tudo que você consome
[16] OCDE – Employment in the public sector
[17] IPEA – Serviço público federal brasileiro no século XXI: “inchaço” ou modernização e profissionalização?
[18] APUFPR- Existe mesmo inchaço da máquina pública?
[19] ILAESE – A Educação no Brasil e os 10% do PIB JÁ! (PDF)
[20] PSIRU – PUBLIC AND PRIVATE SECTOR EFFICIENCY (PDF)
[21] FOLHA – Ranking de Universidades
[22] Operamundi – Cuba: um modelo de acordo com a Organização Mundial da Saúde
[23] GloboNews (YouTube) – Jorge Pontual: A Medicina Cubana é Exemplo para o Mundo
[24] HARVEY, David – O enigma do Capital, pags. 6 e 7

 

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