Ecos do arianismo e da intolerância no Brasil

Claudia Izique – Agência FAPESP

Entre 1933 e 1948, centenas de milhares de judeus tentaram deixar a Alemanha e os países europeus ocupados pelo nazismo. Muitos buscaram refúgio no Brasil. E não foram bem acolhidos. “A diplomacia brasileira, nessa época, era marcada pelo racismo e inspirada no arianismo que se alastrava pela Europa e que contaminava também países do continente americano”, afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER) da Universidade de São Paulo (USP).

Sob o Estado Novo de Getúlio Vargas, a imigração judaica foi tratada como um “problema” solucionado com uma política sigilosa de negação de vistos, conforme atestam circulares secretas e outros documentos consultados por Carneiro no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, no Museu Lasar Segall, entre outros, além de testemunhos de sobreviventes e de refugiados. “O controle imigratório era sistemático e seletivo, alimentado por um sentimento nacionalista exacerbado por intelectuais eugenistas e higienistas”, ela resume.

A política migratória dos governos Vargas e Dutra é o pano de fundo do livro Cidadão do Mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascimo (1933-1948), publicado no Brasil pela Editora Perspectiva, em 2010; na Alemanha, em 2014, pela editora Lit, e que acaba de ser lançado, em fevereiro de 2017, na França, pela editora L´Harmattan. A edição em português e as traduções para o alemão e francês tiveram apoio da FAPESP.

Cidadão do Mundo é subproduto das teses de doutorado e livre-docência de Tucci Carneiro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A pesquisa teve como base cerca de 14 mil documentos oficiais e testemunhos de sobreviventes e refugiados radicados no Brasil entre 1933 e 1950, boa parte deles digitalizados com o apoio da FAPESP e disponíveis para consulta no site www.arqshoah.com.

Germanófilos e arianistas

Os arquivos do Itamaraty revelam que, na visão dos diplomatas em missão no exterior e das autoridades responsáveis pela liberação de vistos, os judeus eram “improdutivos”, desprovidos de lealdade nacional, membros de um complô internacional e potencialmente perigosos à lei e à ordem. “Na maioria dos ministérios era possível encontrar germanófilos, adeptos das teorias do arianismo e simpáticos às ações antissemitas sustentadas pela Alemanha nazista e países colaboracionistas”, ela sublinha.

Uma circular “reservada” do Ministério de Relações Exteriores, datada de 29 de setembro de 1936, por exemplo, orientava as missões diplomáticas, consulados de carreiras, autoridades de imigração e policiais a apenas conceder visto “em passaporte estrangeiro de origem semita” a “portadores de licença de retorno, em plena validade” e a “turistas e representantes de comércio”.

O próprio Oswaldo Aranha, que foi chanceler entre 1938 e 1944, sete meses após assumir o cargo afirmava em carta confidencial datada de 20 de outubro de 1938, dirigida a Ademar de Barros, então interventor federal em São Paulo: “O israelita, por tendência milenar, é radicalmente avesso à agricultura e não se identifica com outras raças e outros credos. Isolado, há ainda a possibilidade de vir a ser assimilado pelo meio que o recebe, tal como aconteceu, em geral no Brasil, até a presente época. Em massa, constituiria, porém, iniludível perigo para a homogeneidade futura do Brasil”.

Em janeiro de 1941, o Decreto Lei nº 3.175 suspendeu a emissão de vistos permitindo apenas a entrada daqueles que atendiam ao “ideal de imigrante desejável, de acordo com o perfil eugênico idealizado pelas autoridades brasileiras”, afirma Tucci Carneiro. E o imigrante ideal não era judeu: “De preferência, eram provenientes de cidades portuguesas ou nascidos em países americanos, com especial atenção para artistas ou capitalistas que pudessem depositar 440 contos (20 mil dólares) no Banco do Brasil”.

A política antissemita do governo brasileiro persistiu no pós-guerra, segundo Tucci Carneiro. “Eurico Gaspar Dutra, presidente da República entre 1946 e 1950, manteve seis circulares secretas contra a entrada de israelitas e fechou os olhos para a Missão Militar Brasileira que, instalada em Berlim em 1946, acobertava a entrada de nazistas no país”, ela conta.

“O discurso segregacionista começa a mudar em meados dos anos 1950, depois que a comunidade internacional tomou conhecimento das atrocidades do holocausto. A partir daí houve uma política forte de imigração de judeus sobreviventes, principalmente para São Paulo”, ela afirma.

Base de dados virtual

O LEER foi constituído em 2006, vinculado ao Departamento de História da FFLCH da USP. “O objetivo é disponibilizar on-line um conjunto de arquivos virtuais que apoiem o desenvolvimento de novas pesquisas e a produção de novos conhecimentos nos campos dos Direitos Humanos e da Educação, promovendo a construção de uma cultura de tolerância e de respeito à diversidade”, explica Tucci Carneiro.

O Laboratório conta, atualmente, com duas bases de dados integradas. A primeira é a do Núcleo de Estudos Arqshoah (www.arqshoah.com), que reúne, além dos arquivos do Itamaraty, testemunhos de 248 sobreviventes do holocausto. Esse arquivo foi constituído com o apoio da FAPESP no âmbito de dois auxílios à pesquisa: o “Arquivo virtual sobre Holocausto e antissemitismo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo, 1933-1945”, e “De apátridas a cidadãos brasileiros: histórias de vida dos judeus refugiados do nazifascismo no Brasil, 1933-1960”. “Hoje temos 15 bolsistas financiados por empresários brasileiros, numa ação inédita no campo da pesquisa histórica e preservação da memória”, sublinha Tucci Carneiro.

A segunda base de dados está vinculada ao Núcleo de Estudos Populacionais, que desenvolve pesquisas sobre imigrantes, ciganos, índios e negros. O arquivo é formado por documentos coletados no âmbito de dois projetos: o “História de Migrantes”, coordenado por Sedi Hirano, com documentos sobre estudos imigratórios, apoiado pela FAPESP, e o projeto “Deslocamentos Populacionais”, coordenado por Miriam Rossi. “Em abril será lançado o livro História migrantes: Caminhos Cruzados, organizado por Sedi Hirano e editado pela Humanitas”, adianta Tucci Carneiro.

O LEER conta ainda com dois outros núcleos de estudos: Imagem e Memória, coordenado por Boris Kossoy, e sobre Discriminação, coordenado por Yara Monteiro, reunindo, ao todo, cerca de 50 pesquisadores.

Perigo amarelo

As pesquisas sobre imigrantes indesejáveis, desenvolvidas pelo projeto “Histórias Migrantes”, deixa claro que os judeus não foram as únicas vítimas da política migratória seletiva do governo brasileiro na primeira metade do século 20 e no pós-guerra. Os japoneses, por exemplo, eram estigmatizados como “indesejáveis” e identificados como o “perigo amarelo”.

“Se, nos casos dos judeus, a segregação oficial era implementada por circulares secretas antissemitas, no caso dos japoneses ela se inspirava nas teorias eugenistas e em sentimentos nacionalistas e xenófobos que forneciam munição para manifestações de violência física ou simbólica”, diz Tucci Carneiro.

Marcia Yumi Takeuchi, no livro Imigração Japonesa nas Revistas Ilustradas, publicado (post mortem) com apoio da FAPESP, em 2016, fez uma releitura das charges e caricaturas de japoneses, aparentemente ingênuas, identificando forte carga de racismo e xenofobismo instigadores do ódio e da repulsa. O livro é resultado de sua tese de doutorado com bolsa da FAPESP.

O livro de Takeuchi é o sexto da coleção História das Migrações, organizada por Tucci Carneiro e publicada pela Edusp. Todas as publicações – e, em grande parte das vezes, também a pesquisa – contaram com o apoio da FAPESP. “A coleção instiga a que se repense as fronteiras territoriais e simbólicas que discriminam e limitam a mobilidade dos migrantes”, diz Tucci Carneiro. Todos as pesquisas tiveram origem no LEER.

Também integra a coleção o livro Imigração e Revolução: Lituanos, Poloneses e Russos sob Vigilância do Deops, de Erick Reis Godliauskas de Zen, publicado com apoio da FAPESP. O livro descreve a saga de um grupo de imigrantes que esteve sob vigilância da Política Política de São Paulo entre 1924 e 1950. Marcados pelo fantasma da revolução bolchevique e do comunismo, foram considerados “indesejáveis”, perseguidos, presos e até mesmo expulsos do país.

De ascendência lituana, o autor mostra como o governo Vargas se valeu da imagem do “perigo estrangeiro” para exercer a vigilância sobre imigrantes suspeitos, principalmente no meio operário. No embate ideológico, anticomunistas, nacionalistas e católicos aliavam-se à polícia política para montar uma ampla rede de infiltrados e colaboracionistas.

Estereótipos sociais

O preconceito e o racismo, inspirados no arianismo, que marcaram a política migratória brasileira na primeira metade do século XX, alimentava-se do nacionalismo exacerbado de um grupo de intelectuais. “Esse sentimento forjou estereótipos em relação a grupos sociais. Ao se referir às raças indesejadas, os intelectuais emprestavam termos da medicina, denominando-os de ‘quisto social’, ‘cancro social’ ou afirmando que, acolhendo esses imigrantes o ‘fluxo de sangue´ seria contaminado.”

A discriminação tampouco ignorou os portugueses, favorecidos por leis e por políticas migratórias nos séculos XIX e XX, de acordo com José Sachetta Ramos Mendes, autor de Laços de Sangue: Privilégios e Intolerância à Imigração Portuguesa no Brasil, publicado em 2011 com apoio da FAPESP. Os imigrantes lusos, neste mesmo período, foram alvos de ataques individuais e coletivos, movidos pelo preconceito. Também nesse estudo, que teve origem na tese de doutoramento de Mendes, as fontes são textos legais, registros de debates parlamentares, correspondências diplomáticas, entre outros.

“Atualmente, oriento o mestrado de Ingrid Aguiar Schlindwein, pós-graduanda em Direitos Humanos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que estuda a emigração de haitianos favorecidos pelo visto humanitário concedido pelo Brasil”, ela adianta. “Além de ampliar o leque de temas, essa dissertação traz para a atualidade uma problemática que exige soluções imediatas pela sociedade brasileira que ainda não conseguiu dialogar com seu passado intolerante.”

Foto: LEER, da USP, que estuda o racismo e a discriminação no país, disponibiliza documentos oficiais e depoimentos em suas bases de dados

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