Quando uma mulher está em situação de violência, o Estado deve “meter a colher”

Por Fernanda Valente, no Justificando

“Qual a raiz da violência contra a mulher? Quais são os tipos de serviços públicos que atendem hoje as mulheres em situação de violência? Como podemos prevenir o ciclo? É possível combatê-lo?”. Quem questiona todos estes fatores, por muitas vezes vistos como banais pela sociedade, é a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Fabíola Sucasas Negrão Covas, 44 anos.

Com formação de classe média, tendo estudado no Colégio Mackenzie, Fabíola ingressou no curso de Direito da Faculdade Integrada de Guarulhos (FIG) – considerada por ela uma grande referência. “Me formei em uma faculdade que tinham profissionais maduros e isso foi importante para enxergar a realidade como ela é. Existe muita diferença em fazer uma faculdade, ainda que pública, mas uma faculdade que só tem jovens, e outra que já tem em suma adultos procurando outras qualificações“, conta com ar de nostalgia.

Em sua primeira experiência de trabalho, Fabíola estagiou no Ministério Público de São Paulo. Três anos depois de formada, ela passou no concurso e trabalhou em várias comarcas como substituta, passando por Piracaia, Itatiba e Bragança Paulista. “Desde a faculdade e até mesmo na minha experiência como estagiária do MPSP, não havia discussão e um olhar voltado para a realidade que batia em nossas portas a todo momento. A violência doméstica sempre aconteceu e nunca deixou de bater nas portas daqueles que atuam na Justiça“, diz a promotora.

Foi a partir dessa inquietação pessoal que Fabíola passou a trabalhar no Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), do MPSP. Implantado em 2013, o projeto prevê a integração entre o Ministério Público e agentes femininas comunitárias de saúde, para que elas visitem casas em comunidade, conversem com mulheres sobre violência doméstica e entreguem uma cartilha explicativa sobre situações e direitos.

Inicialmente, ele foi desenvolvido em algumas regiões da zona leste de São Paulo e também no município de Bragança Paulista. Desde então, o projeto tem espalhado o debate sobre a mulher e, só em 2016, alcançou mais de 109 mil famílias.

Veja o documentário desenvolvido pelo Ministério Público, em parceria com as Secretarias Municipais de Saúde e Assistência Social de São Paulo.

Por ser uma das coordenadoras do programa “Prevenção da Violência Doméstica com a Estratégia de Saúde da Família”, a promotora ficou em segundo lugar no Prêmio Innovare, um dos mais prestigiados na área jurídica. Atualmente, ela atua no centro de apoio de direitos humanos, em específico, com inclusão social. Na entrevista abaixo a promotora comenta sobre a atuação do Ministério Público em programas de violência contra a mulher, a importância da Lei Maria da Penha e os mecanismos de defesa e proteção para a mulher.

Justificando – Quais são as especificidades da promotoria?

Fabíola – Bom, o promotor deve agir como um agente articulador de políticas públicas com os outros entes federativos. É ele quem vai participar de todas as ações criminais ou como fiscal da lei, em casos de violência contra mulher.

Como era a atuação da Justiça em relação à violência contra mulher?

Antes a Justiça agia com penas alternativas, pagamentos de cesta básica e multa, por exemplo. Deixava-se de olhar para a mulher que ia voltar para casa onde foi agredida e que, assim, estava em uma situação de vulnerabilidade, precisando de ajuda para romper esse ciclo de violência.

Já hoje…

O primeiro ponto que temos que pensar é: o Estado tem sim que ‘meter a colher’. Sempre se olhou [para a violência doméstica] como: ‘ali é um espaço privado, então não vamos interferir’. Já hoje há obrigatoriedade em processar o agressor. Ou seja, não prevalece mais a privacidade e sim o interesse público em encontrar mecanismos de proteção e assistência à pessoa que está em situação de violência, especialmente a mulher.

Quais são as dificuldades encontradas pela promotoria em ocorrências de violência contra a mulher?

O promotor é aquele que entra com ação penal e, em geral, está acostumado com aquele sistema de “provas fechado”. Quando se trata de violência contra a mulher, você raramente tem as testemunhas “clássicas” ou o espaço público para encontrá-las. Caso as testemunhas existam, serão as pessoas do convívio da vítima, assim como aquele que a agrediu, e é muito provável que a mulher muito tenha laços de afeto ou parentesco com o agressor. Daí a dificuldade. O promotor vai arrolar uma criança como testemunha? É uma dinâmica diferente de “crimes comuns”.

Qual é o olhar da Lei Maria da Penha para o agressor e para a mulher?

Você tem que olhar para o agressor como uma pessoa que também necessita de apoio, para que haja mecanismos de responsabilização. E isso não pode ser apenas de ‘fora para dentro’, mas também tem que vir de ‘dentro para fora’, do agressor para a sociedade, digamos. Para a mulher, a lei trouxe o reconhecimento de que ela está em um situação especial de vulnerabilidade e naquela circunstância necessita de ajuda. E ainda que, se você não encarar a violência dessa forma, a mulher pode vir a ser uma vítima de feminicídio.

Em quais espaços devemos pensar a violência contra a mulher e, consequentemente, o feminicídio?

De maneira natural, os casos são sempre levados para a questão penal e isso deve ser desconstruído. (…) A gente precisa pensar na violência contra a mulher em todos os espaços da Justiça, ou seja, ela vai estar na Infância e Juventude, porque uma criança e um adolescente que testemunham a violência, pode ser um futuro agressor e/ou uma futura vítima; na formação dos policiais, profissionais de saúde, no âmbito da educação, porque é preciso levar a discussão de gênero nas escolas… Não só para criança, mas também em universidades.

O programa que você coordena sobre prevenção da violência doméstica é bem amparado pela Lei Maria da Penha?

A Lei Maria da Penha veio como um ponto de revolução. (…) A grande mudança que ela trouxe foi no sentido de uma nova roupagem quanto às possibilidades de enfrentamento pelo sistema de Justiça.

Como funciona o projeto?

O projeto abarca a necessidade de que seja feito um trabalho em rede para coibir e prevenir a violência, assistir e proteger a mulher, tal como ações voltadas para a sociedade em geral, para o homem e as crianças. A mulher em situação de violência precisa de uma série de apoios que não necessariamente vêm de um único serviço. Contar com a atuação dos agentes comunitários de saúde, que já são pessoas conhecidas na região, para que eles entrem nas casas dessas mulheres e conversem com elas, disseminem a informação sobre a possível situação de violência em que podem se encontrar. Isso é feito com conversas e com a distribuição de uma cartilha.

É de interesse geral que haja especialização dos agentes?

É necessário enxergar a vítima como alguém que se insere no ambiente familiar e que sofre violência. Desta forma, a condenação do juiz não significa necessariamente que o caso encerrou. Em que medida isso irá prevenir uma nova onda de violência? Usando apenas os métodos tradicionais de judicialização, talvez não seja a maneira mais adequada para uma resposta imediata e por isso é necessário um olhar humanizado, com especialização.

Por exemplo?

Em uma Unidade Básica de Saúde, caso não haja a especialização, a mulher terá apenas a ferida curada, porque os agentes não enxergarão a violência contra a mulher. Cuidando apenas da ferida, não haverá preocupação com uma série de outras interferências para que a nova ferida não se repita na vida da vítima. É preciso que hajam vários serviços capacitados para tratar da temática.

Quais serviços?

Justiça, saúde e assistência interligados. A saúde é a porta de entrada para a mulher que sofreu violência física.

A região é um fator determinante para certos tipos de violência contra a mulher?

A mulher que mora em Higienópolis vai acessar o serviço de saúde pública com bem menos frequência do que um serviço de saúde particular. A mulher que tem residência em Cidade Tiradentes vai utilizar o que tem: o serviço público. Cada território tem sua especificidade, pode ser por classe social, por gênero, raça, entre outros. A depender da região nós conseguimos procurar ferramentas diferenciadas de atuação para a proteção das mulheres e também conhecer as formas diferentes do exercício do poder patriarcal quando se fala na opressão masculina na relação conjugal.

E o projeto pensado em conjunto com a rede de saúde já foi difundido para outros locais?

Sim, nós temos um projeto de expansão. A partir desse trabalho, muito serviços já manifestaram interesse em replicar o projeto. Na assistência social, nós já temos os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) enquanto multiplicadores. A ideia é que o Ministério Público alavanque essa comunicação entre os serviços e que nós façamos o monitoramento, que deve ser feito em qualquer política pública.

Foto: Fernanda Valente /Justificando

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