Defender a democracia é defender os direitos trabalhistas

Por Juliana Borges, no Justificando

O sequestro do Estado pelo neoliberalismo tem como uma de suas facetas práticas restritivas da democracia, desmonte e desorganização do Estado criando sociedades “politicamente democráticas e socialmente fascistas”, na linguagem de Boaventura de Sousa Santos. Diante do cenário de crise e reorganização do sistema capitalista, o que se verifica é, na verdade, uma agenda do conservadorismo se impondo no país.

O governo ilegítimo de Michel Temer se instaura apostando e aprofundando na crise de representação e participação e, com isso, aplica uma agenda regressiva e de reformas neoliberais. É neste bojo que é apresentada, em dezembro de 2016, a Reforma Trabalhista. O governo argumenta que a flexibilização das leis trabalhistas traçará um caminho para a retomada do desenvolvimento e da geração de renda e emprego. Mas vários indicadores, experiências e formulações internacionais tem apontado para o sentido contrário. Ou seja, a flexibilização tem como consequência maior vulnerabilidade, precarização e exploração dos e das trabalhadoras e, com isso, a garantia da margem de lucro para os empresários.

A proposta apresentada não poderia ser pior para o conjunto dos e das trabalhadoras: aumento da jornada de trabalho, de 44h para 55h semanais (tendo até 12h diárias permitidas); redução do tempo de intervalo, hoje em um mínimo de 1h e máximo de 2h, passando para 30min (acarretando em maiores riscos de acidentes pelo pouco descanso); contratos temporários sendo ampliados de 90 dias para 120 dias e prorrogáveis em mais 120 dias; acordo entre sindicatos e empresas tendo força de lei e sobrepondo-se à CLT; entre outras medidas.

A literatura internacional tem provado que os direitos trabalhistas tem pouca influência no custo da produção (OIT, 1999), portanto é falacioso afirmar, então, que esta medida garantirá mais empregos. Pelo contrário. Poderíamos, ainda, estabelecer, com esta crise sistêmica e global, que, se antes havia, segundo Foucault, o biopoder exercendo o controle sobre os corpos tanto para vida quanto para a morte, verificamos que, hoje se expande o conceito, formulado pelo cientista político camaronês Achille Mbembe, de regulação da morte, ou seja, da biopolítica foucaultiana para a necropolítica mbembiana. Condição que, para o camaronês, é central neste novo processo de aprofundamento neoliberal.

Problematizando esta Reforma sob o olhar interseccional, veremos que os resultados podem ser ainda mais devastadores. Em um contexto em que o racismo e o machismo perpassam todas as relações sociais, por serem estruturais e estruturantes da sociedade brasileira, os efeitos da flexibilização e da aprovação da Lei das Terceirizações afetarão em cheio corpos negros e femininos.

As mulheres negras, base da pirâmide social, quando ocupam postos de trabalho já exercem suas funções de modo mais precarizado. Do ponto de vista salarial, por exemplo, enquanto que o salário de mulheres brancas, exercendo a mesma função, equivale a algo em torno de 70% do salário de um homem branco, o salário de homens negros equivale a 50% e o de mulheres negras a 30%. Mulheres negras, ainda, tem maior dificuldade para inserir-se no mercado de trabalho, sendo 66% das mulheres brancas inseridas no mercado, ao passo que 61% de mulheres negras estão inseridas (IBGE).

Com estes números, não à toa, as mulheres negras tem se sobressaído no setor empreendedor no país. Mas mais do que celebrar, é importante ressaltar que este destaque ocorre pela falta de oportunidades no mercado por escolhas em processos de seleção totalmente marcadas pelo racismo, na busca de pessoas de “boa aparência”.

Sendo as mulheres, e principalmente as mulheres negras, a maioria no contingente de postos precarizados no mercado de trabalho, não é demais afirmar estes reflexos, principalmente na opção por contratos temporários e jornadas de trabalho mais estafantes para esta população. Além disso, é preciso pensar na dimensão da divisão sexual do trabalho em nossa sociedade que impõe às mulheres as tarefas de cuidado, seja doméstico ou de acompanhamento das crianças e idosos das famílias. Uma qualidade de vida já totalmente comprometida será aprofundada com esta flexibilização.

Em recente artigo publicado no portal da Carta Maior, a Juíza do Trabalho, Lygia Maria de Godoy Bastista Cavalcanti (2016), aponta que no âmbito internacional não há bons exemplos de resultados diante da flexibilização de leis trabalhistas. Cavalcanti afirma que “analisando, especificamente, a Argentina, o Peru, o Chile e a Colômbia, a OIT constatou que a pretendida diminuição no custo do trabalho estava associada à perda de proteção. Ainda, verificou que o trabalhador temporário custava em média 34% menos que o contratado por tempo indeterminado; o trabalhador sem contrato (não registrado), por sua vez, representava um custo de 15% a 30% menos do que o trabalhador temporário”. E continua, “as medidas flexibilizadoras das últimas décadas trouxeram como resposta uma taxa de 34% de contratação temporária, sobretudo entre jovens, mulheres e trabalhadores menos qualificados, acentuando a precarização nas relações trabalhistas. (FREITAS JR, 1993, p. 67-93). A Espanha exibe, então, não apenas a mais alta taxa de contratação temporária da União Européia, como também um percentual que corresponde ao dobro da média desta, hoje com uma taxa de 26,8% de desemprego” (2016). Ou seja, não há qualquer questão positiva na proposta enviada ao Congresso Nacional.

Por fim, outro aspecto importante em torno deste debate é o de não confundir a profunda regressão desta proposta com analogias descabidas em relação ao processo escravista brasileiro. A agenda neoliberal, neste novo ciclo, se impõe em retirada de direitos e superexploração em moldes que nos remetem ao operariado do século XIX e XX do processo industrial, no máximo. Porém, é importante diferenciar venda de força de trabalho e superexploração industrial de desumanização e escravização de pessoas.

A escravidão moderna, que sequestrou mais de 6 milhões de pessoas, corpos negros, do continente africano para o Brasil, se deu nos marcos do processo colonial e de total coisificação com respaldo institucional e constitucional de homens e mulheres. Não havia, contudo, sequer um contexto de categorização de cidadãos de segunda classe, se não de seres humanos ressignificados como mercadorias. Não havia, portanto, qualquer possibilidade de negociação empregador X empregado, mesmo que em situações totalmente desfavoráveis como agora. O que ocorria era a subalternização do outro, transformado em “coisa”, numa relação proprietário X propriedade em um contexto aviltante, violento e de brutal apagamento cultural, político e social. Fazer analogias neste sentido é desconsiderar o pior capítulo da história moderna e, além disso, corroborar com o mito da democracia racial e do racismo “cordial” no Brasil. A maneira como apagamos a história, achando que com isso apagaremos problemas e chagas ainda abertas na sociedade brasileira, reflete-se neste tipo de analogia, além de perpetuar relações sociais racializadas e excludentes.

Nos novos marcos da agenda neoliberal, a única democratização é a da precarização e superexploração. Neste sentido, radicalizar a democracia é fundamental para estimular tensões sistêmicas. Defender a democracia é indissociável da defesa de direitos.

Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia. Foi secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013)

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