Carne fraca na política econômica e na PF

Novo cenário global exige reindustrializar países do Sul. Mas governo Temer segue a toada da submissão – com notável apoio da polícia

Por Tatiana Berringer* – Outras Palavras

A conjuntura política internacional e nacional traz à tona debates, reflexões e polêmicas muito importantes para entender a inserção internacional do Brasil e as características da burguesia brasileira.

Até a eleição do Donald Trump e a aprovação do Brexit, havia entre os intelectuais marxistas quem defendesse que o neoliberalismo baseia-se em uma globalização produtiva, econômica e financeira de tal sorte que teria sido criada uma burguesia mundial, isto é: um bloco monolítico do capital financeiro (monopolista) que atua independentemente da estrutura jurídico-política dos Estados-nações. As grandes corporações multinacionais e os agentes do capital financeiro (fundos de pensões, seguradoras, etc.) seriam os principais atores políticos do capitalismo contemporâneo, solapando a existência de burguesias nacionais e/ou internas. Nessa linha de raciocínio o Brasil teria se integrado de maneira subordinada ao imperialismo estadunidense e a burguesia brasileira (industrial e de serviços) teria se diluído ou se tornado associada ao capital externo.

Essas interpretações já foram fruto de debates na sociologia brasileira nos anos 1970 com André Gunder Frank, Rui Mauro Marini, Jacob Gorender, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto,etc. À época interessava entender o caráter e a posição da burguesia industrial brasileira face ao imperialismo. As organizações de esquerda e a intelectualidade brasileira, que lutavam contra a ditadura militar, se debruçaram sobre a crítica à tese III Internacional, defendida pelo PCB antes do golpe de 1964. Partia-se da contraposição à possibilidade de que a burguesia brasileira fosse nacional: tivesse a disposição de construir uma aliança anti-imperialista com as classes populares como uma etapa do processo revolucionário. Não é à toa que dadas as semelhanças na natureza de classe do golpe de 2016 com o golpe de 1964, estejamos de volta a essa polêmica, que se aprofundou após a operação Carne Fraca da Polícia Federal, denunciando as práticas irregulares dos grandes frigoríficos brasileiros.

Ora, trata-se de empresas nacionais ou multinacionais? Essa operação pode contribuir para a disputa por mercados e posições político-econômicas e ideológicas de classes e frações de classe na economia mundial e na cena política doméstica? A crise do neoliberalismo acirrou a contradição entre burguesias e Estados nacionais demonstrando que o capitalismo contemporâneo não construiu uma burguesia integrada globalmente?

Lênin afirmava, referindo-se ao capitalismo do início do século XX, que a criação de trustes e holdings, apesar de aumentar a centralização e a concentração de capital, não elimina a disputa entre os capitalistas e entre os Estados. A lógica de acumulação do capitalismo pressupõe que para a manutenção da taxa de lucro haja permanentemente uma competição intra e entre industriais, setores e as grandes corporações. Como o Estado organiza os interesses das classes e frações de dominantes, no plano internacional a disputa entre capitais se transforma em uma disputa entre Estados. Essa tese ainda pode esclarecer muita coisa, a despeito das grandes mudanças no capitalismo mundial. Nesse sentido, os acordos de comércio e investimentos refletem uma disputa entre os Estados por acesso a mercados e por privilégios e garantias aos investimentos externos diretos. Assim, a despeito da financeirização das economias e do elevado grau de desregulamentação dos fluxos de capitais não é possível afirmar que as burguesias tenham se diluído ou se integrado. A formação de cadeias produtivas em escala internacional não elimina a existência de conflitos seletivos entre o capital que acumula internamente e o capital externo.

A burguesia interna brasileira, seja ela industrial ou do setor de serviços, é dependente financeira e tecnologicamente do capital externo – por isso, não deve ser considerada uma burguesia nacional. No entanto, também não é uma burguesia integrada ao imperialismo tal qual a burguesia compradora (o capital financeiro). Ela mantém uma posição sui generis, pois, para sobreviver ela também depende da proteção do Estado brasileiro. Precisa que este tenha uma posição internacional que não seja de mero seguidismo da política estadunidense e que, sem ser antiimperialista, guarde uma certa autonomia frente os Estados do norte. Nós denominamos essa posição de subordinação conflitiva com o imperialismo, o que significa não romper os laços, dada a sua dependência, mas impor limites e condições de concorrência e sobrevivência face ao capital externo.

No caso em questão – os grandes frigoríficos criados a partir do apoio do BNDES durante os governos Lula – é importante salientar que essa atividade industrial e, sobretudo, comercial sempre fora realizada pelo capital externo. A criação dessas grandes empresas com capital nacional só foi possível com o apoio do Estado. Assim, ainda que seja parte de um processo de monopolização do mercado interno e das exportações brasileiras de carnes e aves, ele é fruto de um processo de concorrência com o capital externo. É parte de um processo de tentativa de alteração da posição da economia brasileira no cenário internacional. Do mesmo modo, não é fruto de uma aliança com as classes populares, mas a geração de empregos encontrou-se com a demanda e a necessidade imediata e material de muitos/as trabalhadores/as brasileiras, que integravam uma frente política neodesenvolvimentista.

Nesse ponto, partir da ideia de que essas empresas são parte da burguesia interna brasileira não se trata de defender o indefensável: a adulteração de carnes é crime, assim como a corrupção. Mas, também, é importante chamar atenção para o que pode indicar essa operação da Polícia Federal, ou ao menos o momento político e econômico em que ela foi feita. Ou alguém acredita que esse processo é novo? Que os frigoríficos internacionais que atuaram durante um século no Brasil não tinham essa prática?

Não podemos cair também em uma visão mecanicista que seria: qual é a empresa que pretende entrar no Brasil no lugar dessas empresas que foram denunciadas pela operação da PF? Ou qual é a país que produz carne e se interessa pelo desmonte desse setor no Brasil? Os reflexos internacionais que já apareceram indicam que haverá sanções e bloqueios para as exportações de carne do Brasil e que a União Europeia tem agora um motivo a mais para não apresentar uma lista de ofertas para as negociações entre o Mercosul e a União Europeia. Ainda que esse acordo fosse extremamente negativo, seria melhor se fosse possível denunciar a prática dos Estados imperialistas nesses acordos do que sofrer um revés como esse. Ora, na verdade, esse acordo visa à promoção e proteção do investimento externo europeu na região, o acesso às compras governamentais e o aumento das exportações de produtos industrializados, sem contrapartida – uma vez que o a Política Agrícola Comum da União Europeia pressupõe a defesa da soberania alimentar e, portanto, dos protecionismos agrícolas.

Entender que as disputas entre as burguesias e entre os Estados permanecem e tendem a se acirrar é parte da análise das cenas políticas internacional e nacional. É importante desvendar os interesses de classe e frações de classes que se estão por trás das práticas políticas dos diferentes atores e aparatos estatais e internacionais. Estamos diante de uma nova dinâmica e conjuntura, mas, sem grandes alterações nas estruturas políticas e na questão fundamental da divisão internacional do trabalho. No entanto, tudo indica que haverá mais protecionismos econômicos na Inglaterra e nos Estados Unidos e que a reindustrialização tornou-se uma necessidade para a saída da crise financeira internacional que já dura desde 2008. O Brasil parece marchar no sentido contrário, adotando uma posição de subordinação passiva ao imperialismo e enfraquecendo a sua burguesia interna. Voltaremos a que estágio e que posição internacional? Esse é o ponto. Essa é questão. Eis os interesses.

*Professora de Relações Internacionais da UFABC e integrante do Grupo de Reflexão de Relações Internacionais/GR-RI

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