Por Juliana Borges, no Blog da Boitempo
O feminismo é um movimento político e de transformação que disputa todas as esferas da vida e do poder. Não por acaso, feministas cunharam a expressão “o pessoal é político”, tendo por objetivo lançar à esfera pública as desigualdades de gênero, bem como impulsionar, com isso, a defesa de uma sociedade igualitária. Neste sentido, o feminismo é uma ideologia e, como tal, constitui e disputa um projeto de mundo que abarca todas as esferas, sejam elas filosóficas, sociológicas e econômicas.
Contudo, dadas as suas diversas vertentes, cada vez mais tem se optado pelo uso da expressão “feminismos” para garantir o caráter plural deste movimento. Ainda sim, é importante ressaltar os pontos-chave e de encontro destas diversas vertentes. São elas: a luta pelo fim da subjugação das mulheres, a autonomia, o fim do Patriarcado, a pluralidade de existências e atuações, e a defesa da igualdade.
O pensamento feminista negro, por sua vez, se estabelece a princípio apontando esse elemento da pluralidade de existências e pautando-se contra universalidades. Em visita recente visita ao Brasil, a socióloga afro-americana Patricia Hill Collins delineou algumas das questões centrais dele. Em primeiro lugar, uma das premissas fundamentais é de que o pensamento feminista negro não é um aditivo de outros feminismos, mas uma formulação própria feita a partir das necessidades, conhecimentos e formas de atuação política próprias das mulheres negras.
Em segundo lugar, o senso de humanidade indissociável da luta feminista negra, a defesa de si conectada à defesa do outro, tendo em vista o processo de desumanização que corpos negros passaram, seja das populações negras em diáspora, seja da constante desumanização das populações negras em África. Ressaltou também a interseccionalidade, que evoca a heterogeneidade, e sublinhou a disputa pelo poder, e não de identidades, como centro deste pensamento, tendo na luta anticapitalista sua forma, já que o capitalismo é um sistema indissociável das desigualdades e da dominação do outro visando o lucro e acúmulo e concentração de riquezas. Por fim, a descolonização dos corpos, mentes e espíritos negros, seja na noção metafórica, seja na noção literal e de entendimento de defesa da liberdade.
Esse conjunto de reflexões aponta para o fato de que o pensamento feminista negro, conforme explicita bell hooks, traz uma crítica global e sistêmica do conjunto das opressões em jogo hoje e, ao interseccioná-las, jamais prescinde da crítica a dominação classista, racista e machista. Com isso, como aponta a filósofa e feminista interseccional Djamila Ribeiro, o feminismo negro nos permite pensar “um novo marco civilizatório”.
Neste momento de reorganização e aprofundamento do neoliberalismo e da ascensão de uma agenda conservadora em um movimento global, nos parece importante recorrer ao pensamento feminista negro como ponto de partida para a construção de renovadas saídas alternativas ao neoliberalismo e perspectivas democráticas.
É apenas no final do XVIII que a ideia moderna de democracia se fixa. A cidadania e o voto, como princípios para a escolha de representantes, foram recuperados da antiguidade clássica. No entanto, esta reconfiguração, ainda assim, tal qual entre os gregos, mesmo que ampliada, não se estendeu a todas as sociedades e indivíduos. Frente à ascensão de regimes autoritários no final do século XIX e início do século XX, a democracia popularizou-se e, após a Segunda Guerra Mundial, passou a ser utilizada como arma ideológica no contexto da Guerra Fria e contra qualquer regime que defendesse forte presença do Estado e a regulação de mercado. É nesse ambiente que o capitalismo passa a tolerar a democracia em alguns cenários. Mas, tendo a desigualdade como elemento constitutivo, os ventos democráticos não se estenderam a todos e todas pelo processo de divisão internacional do trabalho e pelo neocolonialismo essencial ao capitalismo para o desenvolvimento dos países do Norte global, utilizando dos conceitos de Boaventura de Sousa Santos. Com isso, a democracia foi descartada nos países semiperiféricos e periféricos como sistema político, se não apenas como simbólico ideal.
Sendo o pensamento feminista negro constituído na disputa pelo poder, na luta anticapitalista, pela oposição à dominação do outro, e na luta pela descolonização dos corpos, tendo como objetivo a liberdade e a real emancipação, nos parece que a discussão em torno deste momento fundamental de “democratizar a democracia” (para usar a expressão de Boaventura de Sousa Santos em seu livro mais recente A difícil democracia: reinventar as esquerdas) e construir alternativas sistêmicas passa necessariamente pelo feminismo negro.
Como vimos, a premissa da defesa de si como conectada à defesa do outro é constitutiva do feminismo negro. Neste sentido, a alteridade se coloca como elemento central para possibilitar uma reorganização radical da cidadania e dos direitos construídos sob premissas multiculturais. Ou seja, a constituição da existência de si passa pela existência do outro. Esse princípio do feminismo negro se configura já como anticapitalista e radicalmente democrático na medida em que nega relações de dominação sem apagar a autonomia e a existência do indivíduo e suas liberdades. E o faz no sentido de igualdade, coabitação e coexistência, se contrapondo fortemente ao individualismo próprio do capitalismo.
Aqui, cabe uma palavra sobre o conceito de “lugar de fala”. Muitas vezes confundido com a perspectiva individual do falante, na verdade, o termo diz respeito à perspectiva de um grupo social a partir de experiências historicamente compartilhadas e que produzem ação e conhecimento que devem ter tanta autoridade discursiva quanto o conhecimento produzido por qualquer outro grupo social (Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought, Routledge, 2000). Isso para afirmar que o conceito de “direitos individuais” do liberalismo burguês não é uma premissa de onde parte o pensamento feminista negro.
É por isso que a heterogeneidade, compreendida a partir do conceito da interseccionalidade, é outro princípio central que articula o pensamento feminista negro e as ideias democráticas. Afinal, queremos a democracia (na reconfiguração do conceito, sempre em constante movimento e disputa) como uma construção radical de participação, atuação e pluralidades, bem como abarcando a multiplicidade de vozes, representações e auto-representações.
Poderiam ser citados inúmeros outros exemplos para demonstrar que o pensamento feminista negro pode ser uma fonte para este momento de reorganização e de tão importante radicalização dos ideais democráticos. Mas finalizo com uma importante colocação. A construção de novas existências individuais e coletivas não é o ponto de diluição do contexto de luta histórico da classe trabalhadora como agente de transformação. Pelo contrário. Perceber e impulsionar estas novas existências, que questionam como indissociáveis as hegemonias capitalista, machista e racista, é compreender as mudanças no modelo de produção capitalista, inclusive nas suas relações. Estas mudanças não ocorreram apenas no campo econômico, mas também no campo simbólico.
A última pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo apontou como a ideologia liberal e neoliberal tem se impregnado nas subjetividades e constituição das existências dos indivíduos. Com a complexidade que o capitalismo tomou, um instrumental teórico que articule como indissociáveis as opressões de raça e classe, ao partir do pensamento feminista negro, sempre de olhar interseccional, oferece um enquadramento mais sofisticado para discutir estas existências e, portanto, garantir a multiplicidade de construções nas estruturas sociais e de embate sistêmico.
A igualdade como elemento para a uma democracia radical. O feminismo negro como o marco da imprescindibilidade da liberdade.
*Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política.