No Taqui Pra Ti
Arrumo gavetas cheias de papéis velhos, agora, em Niterói. Encontro um passaporte carimbado que me faz lembrar o verão de 1981 em Moscou. Foi lá, no banheiro do hotel Nikolskaya, perto da Praça Vermelha, que usei um sabonete russo nas abluções matinais. Quando lavei o rosto, o bairro de Aparecida invadiu o quarto com um estrondo de pororoca. É que o cheiro era o mesmo do sabonete da Santa Casa de Misericórdia, de Manaus, em cujo quarto eu, menino, dormi um par de meses, em 1957, acompanhando meu pai enfermo. Era o sabonete Gessy, aquele da Marta Rocha, a miss Brasil.
A sua voz de baiana arretada gravada nos jingles radiofônicos era confiável ainda que ninguém pudesse ver “a espuma rápida e abundante” do sabonete, por inexistir televisão em Manaus. Ela garantia, porém, que “suas bolhas mágicas removem resíduos cutâneos e desobstruem os poros sem prejudicar a pele”. Mas o que ela não sabia era que o seu cheiro armazenava lembranças capazes de transportar para tão longe casas, ruas, igreja, ponte e rios de Manaus, arrastando personagens, choro, riso e cenas do passado distante, com riqueza de detalhes.
Na Moscou de 1981 cabia a Manaus de 1957, ambas contidas na Niterói de 2017, uma dentro da outra, como aquelas bonecas russas, as matrioskas. De repente, eu revivi ali, no quarto de hotel, o drama do meu pai, no leito hospitalar, grávido, com cirrose hepática, como estou revivendo agora. Vejo a mesa de cabeceira com a bacia de estanho e uma jarra, a pia de louça com desenhos de flores da cor do céu, o espelho oval na parede de azulejos portugueses – tudo herança do ciclo da borracha. E me vejo saindo cedinho do hospital descendo a rua Dez de Julho para ir ajudar a missa, um coroinha com as narinas impregnadas da “fragrância natural de rosas primaveris” – como anunciava Marta Rocha na Rádio Baré.
Proust de Igarapé
Durante anos deixei de sentir aquele aroma, que foi adormecendo, inconsciente, na memória. Enxotado do mercado pela LEVER e a PALMOLIVE, o sabonete Gessy, com outro nome, se refugiou nos países do Leste Europeu, onde finalmente o encontramos, muitos anos depois, eu e a senhora minha mãe. Já era, então, um “sabonete comunista”.
Se me permitem, abro aqui parênteses para meter a mãe no meio e invocá-la como testemunha. O sonho de dona Elisa, confessado a seus 13 filhos, era visitar o Santuário de Lourdes. A vasta prole se cotizou e ela viajou a Paris, onde eu cursava o doutorado. Fomos acender velas na gruta e ver a fonte que jorra água. Não paramos aí. O meu sonho era outro. Acontece que , na volta do exílio, numa “cana”, em 1977, a Polícia Federal havia insistido em saber de minhas andanças por Moscou, onde eu nunca estivera. Fiz, então, uma promessa: se escapo desse sufoco, um dia, só de birra, hei de ir a Rússia. Fui. Com minha mãe, que compartilhou comigo as associações olfativas.
Ela foi se benzendo e rezando, mas foi. Solidária. Eu e ela levamos conosco pelas estepes russas o bairro de Aparecida e a Santa Casa, na memória ativada pelo sabonete, o único que reinava absoluto nos hotéis das cidades visitadas: Moscou, Leningrado, Vladimir e Suzdal na Rússia, Kiev na Ucrânia e Varsóvia, na Polônia. Parece que Gessy, “o pioneiro no ramo da higiene pessoal”, se tornara lá o tzar dos sabonetes, cujo aroma, num passe de mágica, transformava o rio Moscou no igarapé do Mestre Chico e a Ponte Borodinski, na centenária Ponte Metálica da Cachoeirinha.
O mundo inteiro cabe dentro da memória olfativa. Cada um de nós é um arquivo de odores, aromas, fragrâncias, que documentam a vida. O cérebro e o coração reconstroem narrativas acionados por cheiros: da pimenta murupi, da farofa de torresmo da vovó Marelisa e do tabaco de seu cachimbo, da terra molhada pela chuva, do café passado, do bife acebolado, do alho na frigideira, do taperebá – tudo isso desencadeia uma torrente de sentimentos. O cheiro de pão quente remete à padaria do Armando português, na Xavier de Mendonça, com seu forno à lenha. As broas da Marina encerram mil histórias que despertariam a inveja de Marcel Proust.
Madeleine arrependida
Proust escreve que, já adulto, num dia de inverno, sua mãe, vendo-o tiritar de frio, lhe ofereceu uma xícara de chá quente acompanhado de madeleines – aqueles bolinhos franceses em formato de concha. O sabor de um pedaço mergulhado no chá provocou lembranças calorosas de sua vida de menino, em Combray, e de sua tia Leonie, que costumava convidá-lo para lanchar. Mesmo quem não encarou os sete tomos de “Em busca do tempo perdido”, já ouviu falar da madeleine de Proust, que passou a designar qualquer fenômeno responsável por deslanchar reminiscências.
Essa é a origem da “teoria proustiana da memória” que discute como certos objetos, aromas, sabores provocam intensas recordações, que permitem ao sujeito dominar o tempo, superando as fronteiras entre passado e presente, embora para ele a subjetividade esteja aprisionada pelo passado, que é o tempo dominante da condição humana e é nele que permanece adormecida a memória. O ser humano é um poço até aqui de nostalgia.
Desculpem a petulância, mas me senti o próprio Proust de Igarapé, depois de encontrar numa gaveta a lembrança involuntária que me levou ao sabonete Gessy, o que me autoriza a discorrer sobre “a teoria da broa” ou da “bolacha de motor”. A madeleine – que a francesada me perdoe – é um bolinho mequetrefe feito com trigo, ovos, açúcar, manteiga derretida e raspas de limão. Simples assim. Na receita, nenhum ingrediente ativador da memória. Honestamente, eu sou mais a broa da Marina que seu filho Rubem Rola vendia pelos becos de Aparecida.
O segredo da broa – uma espécie de Madeleine arrependida – é a combinação equilibrada de goma de macaxeira, leite, açúcar e canela. Seu cheiro afrodisíaco evoca a Eugênia, namorada do meu primo Zé Cyrino, para quem a broa se entregava sem resistência, derretendo na boca. Por isso, o ex-governador Gilberto Mestrinho, quando mudou de dentadura, substituiu o pão pelas broas da Marina, que já morreu, mas é possível encontrar hoje algo similar, embora diferente, na feira de Aparecida, na banca bem em frente ao açougue do Luis Enrolão.
Não é só a broa. Nos barcos de recreio que ligam as cidades do Amazonas, em viagens regulares, os passageiros tomam o café da manhã com a outramadeleine caboca, a bolacha de água e sal, que ficou conhecida como “bolacha de motor”. Ao contrário da broa, ela é dura, mas ajuda a aproximar o passado, nos faz viajar através dos anos, nos faz sair em busca do tempo perdido. Convoca o passado, trazendo aquele tempo de volta. Com as histórias carregadas pelas madeleines arrependidas – a broa e a bolacha de motor – o Proust de igarapé aqui poderia escrever mais sete tomos, viajando na canoa do tempo.
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P.S. Para os meus colegas e alunos do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO), que me falam dessas coisas e só pensam nisso.
P.S. 2 – Acabo de ser notificado da morte de Afonso Celso de Maranhão Nina, meu professor de Química no Colégio Estadual do Amazonas, em 1964, e um dos fundadores da Universidade do Amazonas. Suas ideias conservadoras nos levaram a ter com ele embates, sempre resguardando o respeito mútuo. Um dia, como subreitor, se invocou porque eu dava aula de sandália. Tivemos um pequeno bate-boca. Era um homem íntegro, um administrador competente e ético, que amava a universidade e que dedicou toda sua vida à educação. A parte sadia da UFAM chora nesse momento do adeus. Era alguém que dizia, assinava, com papel timbrado ou não, e assumia lealmente o que pensava e fazia. Nesses tempos bicudos em que a UFAM entroniza gente de outra estirpe, com outros valores morais, ele faz uma falta danada.