O Brasil sob a ditadura financeira

A leitura deste texto consumirá, em média, nove minutos. Enquanto você o percorrer, o Estado brasileiro terá transferido aos banqueiros, mega-empresas e super-ricos, R$ 8,72 milhões — ou 776 anos de salário mínimo. Veja por quê

Por Paulo Kliass*, na Carta Maior/Outras Palavras

O Banco Central (BC) acaba de divulgar seu Relatório Mensal sobre a Política Fiscal do governo brasileiro. Dentre as inúmeras informações relativas ao desempenho da equipe econômica no campo da administração da questão fiscal, vale a pena destacar os números que retratam o comportamento das despesas financeiras da administração pública federal.

De acordo com o levantamento apresentado pelo BC, ao longo do mês de fevereiro, o valor referente ao total de juros pagos pelo governo atingiu o montante de R$ 30,7 bilhões. Isso significa que, no acumulado dos últimos 12 meses, a União transferiu ao setor financeiro um volume de R$ 388 bi, em razão dos compromissos assumidos com cada uma das muitas modalidades do extenso cardápio que compõe o estoque de títulos de nossa dívida pública.

É bem verdade que tais números foram reduzidos em comparação ao ocorrido em 2015 e 2016, quando as despesas financeiras chegaram a atingir o total de R$ 502 bi e R$ 408 bi, respectivamente. O problema, no entanto, refere-se ao fato de a economia brasileira estar imersa em uma recessão profunda, a maior e mais grave de nossa História. Assim, o levantamento histórico evidencia que a única variável que se manteve constante ao longo das últimas duas décadas na condução da política econômica foi o saldo positivo de transferência de recursos orçamentários para o cumprimento das obrigações financeiras do governo federal.

Um dos aspectos mais paradoxais desse fenômeno reside no tratamento absolutamente desigual que o comando da economia confere aos diferentes tipos de gasto público. O ministro da Fazenda e seus subordinados enchem a boca com muito orgulho para exibir as informações de um suposto “sucesso” obtido nos cortes de verbas e nos contingenciamentos das rubricas do Orçamento nas áreas sociais e nos investimentos a serem realizados pelo Estado. Esse tem sido um dos principais fundamentos da política macroeconômica desde a edição Plano Real em 1994. A garantia do compromisso assumido junto ao mercado financeiro é sempre considerada como variável “imexível” do modelo.

A tentativa de conferir ares de normalidade a tamanha excrescência em termos de implementação de políticas públicas recebeu o nome pomposo de “superávit primário”. Esse foi o artifício jurídico e conceitual utilizado pelos defensores dos interesses do sistema financeiro para justificar perante a sociedade o tratamento escandalosamente regressivo e injusto que passou a ser dado aos gastos de natureza financeira frente aos demais gastos do setor público. Assim, tal determinação passou mesmo a ser objeto de obrigação legal, segundo as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, a Lei Complementar nº 101/2000.

Ocorre que todo esse rigor e a consequente austeridade que passam a ser exigidos – até mesmo em termos de compromisso formal na condução da política fiscal – não se aplicam às despesas financeiras, aquelas derivadas do pagamento de juros da dívida pública. Ao se jactar do esforço hercúleo para assegurar a geração de um saldo superavitário nas contas primárias do governo, os responsáveis pela economia apenas se esquecem de confirmar ao restante da sociedade que nada mais patrocinam senão a transferência serena e tranquila de recursos públicos diretamente para os cofres do sistema financeiro. Pode até parecer estranho ou exagerado, mas é simples assim.

Essa abordagem ganhou tinturas de santidade, a ponto de ser qualificada como heresia qualquer tentativa de sequer cogitar a respeito de alguma condução heterodoxa ou alternativa nesse domínio. A consolidação de tal hegemonia chegou a obter ares de unanimidade a partir de 2002, quando o então candidato Lula anunciou a famosa “Carta ao povo brasileiro” durante a sua campanha às eleições presidenciais. A partir da leitura do documento, é possível confirmar a opção pela manutenção do “status quo” em termos da política econômica comandada pelo financismo:

(…) “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.” (…)

(…) “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.’ (…) [grifo nosso]

A preservação intocável desse regime é um dos principais fatores que ajudam a explicar a hipertrofia do financismo em nossa sociedade. Não por acaso, os bancos fazem parte do seleto grupo de empresas que não foram afetadas pela crise que o Brasil atravessa há mais de dos anos. O setor real da economia vem experimentando o drama social e econômico da recessão, do desemprego e das falências, ao passo que a banca continua a exibir seus balanços periódicos com lucros bilionários de forma sequencial e ininterrupta. O atual governo pós-golpeachment avançou ainda mais, introduzindo a obrigação de se respeitar o dogma do superávit primário na própria Constituição, a partir da Emenda Constitucional n° 95/2016.

O discurso oficial que alardeia o catastrofismo fiscal está na base de medidas como a referida emenda, que congelou as despesas sociais pelo prazo de vinte anos. Essa mesma narrativa do suposto estágio do pré-caos chantageia a sociedade e exige ainda mais sacrifícios da maioria do povo com a contra-reforma previdenciária e a contra-reforma trabalhista. A postura dramática oficial chega a números de um contingenciamento de várias dezenas de bilhões de reais contas do orçamento federal e impõe ainda mais cortes em áreas onde as despesas seriam parte da solução para a crise atual.

O único setor que não é chamado a colaborar para superar o momento difícil que o País atravessa é justamente o financismo. Afinal, a permanência longeva da ditadura do superávit primário manteve intocáveis os privilégios desse ramo da economia. De acordo com informações da própria Secretaria do Tesouro Nacional, ao longo das últimas duas décadas, o total de despesas com pagamento de juros promoveu a drenagem de R$ 4,3 trilhões a valores atuais dos cofres da União para o coração do sistema financeiro. Se o ponto de corte for o início de 2003, o total ainda assim é impressionante: foram R$ 3,5 tri ao longo do período. Mas esse tipo de recurso não é objeto de contingenciamento. Pelo contrário, todas as outras áreas são chamadas a cortar na própria carne para que sobrem recursos para o superávit primário.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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