Repressão persiste após massacre de Quedas do Iguaçu

Em caso kafkiano, policiais que chacinaram sem-terras há exatamente um ano são libertados — enquanto lideranças do movimento são presas e criminalizadas, apesar das contundentes provas apresentadas

Por Rafaela Lima* – Outras Palavras

Em 7 de abril de 2016,  dois trabalhadores sem terra acampados no município de Quedas do Iguaçu, centro-sul do Paraná, foram assassinados por agentes da Polícia Militar no interior do acampamento em que moravam. Além deles, outros dois acampados foram baleados e ficaram gravemente feridos. Os trabalhadores e trabalhadoras se deslocavam em uma caminhonete por uma das estradas que corta o Acampamento dom Tomás Balduíno quando foram surpreendidos por equipe de policiais militares acompanhada de um dos seguranças da Araupel, empresa madeireira que explorou por décadas as terras hoje ocupadas pelo Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST).

As imagens da caminhonete alvejada, o número de disparos, a ausência de policiais feridos e de indícios da ocorrência de disparos por parte dos sem terra são suficientes para derrubar a versão apresentada pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Paraná, de que os policiais agiram em legítima defesa no intuito de se defenderem contra “injusta agressão perpetrada pelos acampados”.

No entanto, como é regra em casos que envolvem integrantes de movimentos sociais, de vítimas os sem terra passaram a ser tratados enquanto agressores. Os dois trabalhadores baleados pelos policiais, apesar de atingidos pelas costas, enquanto tentavam fugir dos disparos, e não estarem portando nenhuma arma, foram presos em flagrante por porte ilegal de arma de fogo e tentativa de homicídio qualificado. Como é, também, regra nesses casos, o fato de serem sem terras, acampados e integrarem um movimento social pesou negativamente na decisão da magistrada que decretou as prisões.

As prisões em flagrante foram convertidas em prisões preventivas, e, posteriormente foram revogadas e convertidas em medidas cautelares diversas da prisão. No entanto, concluídas as investigações, nenhum policial foi indiciado, pelo contrário, outras lideranças do movimento foram indiciadas e denunciadas pelo crime de resistência.

A impunidade não é exceção, mas regra em casos de violação de direitos humanos de integrantes de movimentos sociais. Antonio Tavares, Sebastião Camargo e Keno, são alguns exemplos de trabalhadores sem terra assassinados em razão de sua luta na defesa dos direitos humanos cujos algozes não foram, até o momento, responsabilizados civil e criminalmente.

Quando quem ocupa o banco dos réus não são agentes do estado, fazendeiros ou empresários – mas trabalhadores, defensores de direitos humanos – a situação muda de figura. Nesses casos, o princípio da presunção de inocência e o direito a responder processos criminais em liberdade sucumbem perante a “necessidade de preservação da ordem pública’’.

Perseguição e criminalização

Os doze meses que se seguiram ao trágico 7 de abril foram marcados pela repressão e criminalização das lutas sociais e dos defensores e defensoras de direitos humanos. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, o ano de 2016 foi o mais violento no campo desde 2003, com 60 homicídios motivados por conflitos pela terra. A quantidade de defensores e defensoras de direitos humanos presas é alarmante, merecendo destaque as prisões de integrantes do MST em Goiás, acusados de integrarem organização criminosa, e de Guilherme Boulos, liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, preso por desacato e obstrução à ordem judicial quando tentava dialogar com policiais durante uma reintegração de posse.

Exemplo emblemático do processo de criminalização dos movimentos sociais ocorre – não por coincidência – também no município de Quedas do Iguaçu. Em novembro de 2016 foi deflagrada a Operação Castra, ação da Polícia Civil que pretende “castrar’’ a atuação do MST na região. Até o momento, quatro integrantes do movimento, acampados e assentados na região foram presos preventivamente, acusados de integrarem organização criminosa. Também neste caso, a restrição de sua liberdade por meio da aplicação de prisão preventiva se fundamenta no fato de integrarem um movimento social o que, para a Polícia e para o Judiciário, é indício de que em liberdade poderiam colocar em risco a ordem pública.

A região onde ocorre a Operação Castra é marcada por conflitos fundiários envolvendo, de um lado, milhares de camponeses e camponesas sem terra, e de outro, a madeira Araupel. Os conflitos, que se estendem há décadas, tem origem na ocupação ilegal de terras na União pela multinacional. Durante todo esse período, o MST tem denunciado os inúmeros crimes ambientais cometidos pela empresa, que utiliza boa parte do território para o monocultivo de pinus e eucalipto. O movimento também cobra a destinação da área para a reforma agrária. Por se opor aos interesses da empresa, que detém grande capital financeiro e político na região, tem sido duramente reprimido e criminalizado.

As prisões de integrantes do movimento na região durante a Operação Castra têm a clara intenção de deslegitimar ou paralisar suas lutas, visto não cumprirem os requisitos exigidos pela legislação brasileira para a aplicação da medida cautelar.

O prognóstico é que o fenômeno da criminalização dos movimentos sociais se acentue no próximo período. Cabe a nós, sociedade civil organizada, pensar em formas de enfrentamento ao processo de criminalização pelo qual os defensores e defensoras de direitos humanos vem passando, para que os próximos 12 meses – e os outros tantos – sejam diferentes.

*Advogada popular da Terra de Direitos, organização de defesa de direitos humanos

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