Miséria punitiva: por que Luciana Genro está errada sobre a Lava Jato

Por Thiago Araujo e Lucas Sada, no Justificando

O presente artigo visa oferecer uma resposta às formulações pretensamente críticas de Luciana Genro, militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pós-graduada em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Relutamos em criticar um artigo que, marcado por flagrante incompetência teórica, deveria ser relegado ao ostracismo, mas tratando-se de uma representante de uma agremiação política fundada pelos saudosos Leandro Konder (1936-2014) e Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), nos parece imprescindível resgatar os fundamentos que outrora constituíram o núcleo-duro de um projeto verdadeiramente revolucionário.

Genro brinda o leitor com uma análise sobre a atual conjuntura política, circunscrita aos eventos decorrentes da “Operação Lava Jato”, que, segundo a própria autora, teve o condão de desmascarar “o conluio entre a casta política parasita e as grandes corporações capitalistas”. Ou seja, a aclamada Operação teria revelado o “segredo de polichinelo” de que o Estado Moderno se configura como “um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”[1]. Portanto, não deve causar espanto o fato de que a autora desconecta, de modo idealista, a democracia da infraestrutura produtiva que a erige: Genro denuncia a “política como um negócio” num mundo em que a forma-mercadoria dita os rumos da política.

Luciana Genro ataca “a esquerda que não é do PT” (todo o restante da esquerda) por não defender uma Operação que, aparentemente, expressa o resgate da ética na política institucional. Se um segmento da esquerda renegou o seu projeto revolucionário (?) a credibilidade nacional deveria ser resgatada pelo Poder Judiciário, que, como sabemos, é isento de quaisquer implicações político-ideológicas e se mantém neutro nos processos de resolução de conflitos macrossociais.

Se a autora compreendesse minimamente os efeitos deletérios causados pela referida Operação ao projeto de consolidação do Estado de Direito e, mais especificamente, às lutas da classe trabalhadora pela afirmação de suas garantias individuais, repensaria o termo utilizado para qualificar a pretensa neutralidade operacional. O “Capriles brasileiro” não foi capaz, ao contrário do original, de aceitar o resultado expresso nas urnas, costeando o Golpe de Estado que continuamente impõe retrocessos à classe trabalhadora. Quanto aos outros nomes citados, esses nem merecem resposta, passam muito bem, atacados, pero no mucho.

Ao abordar as relações existentes entre a “lava jato” e a “imprensa” (notadamente as Organizações Globo), a articulista parece crer que está tratando de agências estanques e incomunicáveis. Ora, Genro ignora o fato incontestável de que a “Grande Mídia” é parte integrante da Operação[2], posto que, conforme a teoria criminológica que julga dominar, a imprensa hegemônica se constitui como agência de comunicação social do Sistema Penal[3]. Ademais, não se pode ignorar que os processos de criminalização primária e secundária são diretamente condicionados pela mídia. Em um primeiro sentido, quando os grupos midiáticos atuam como empresários morais, criando a demanda pela criminalização de uma conduta ou pela perseguição efetiva de um determinado grupo ou indivíduo, valendo-se de seu poder de difusão para impor sua agenda à esfera pública. Em outro sentido, ocultando ou poupando suas próprias práticas ilícitas ou daqueles que, no momento, melhor sirvam aos seus interesses. Basta que se observe a duração, a ênfase e a espetacularização que caracterizam as denúncias de corrupção contra o ex-presidente Lula e compará-las com o tratamento dado aos membros do PSDB.

Neste sentido, o eventual leitor deve atentar para o fato de que a autora utiliza o termo “seletividade” de modo ambíguo, desconhecendo ou empregando erroneamente um conceito para construir uma Crítica crítica aos procedimentos por ela defendidos. A seletividade é intrínseca ao Sistema de Justiça Criminal, bastando analisar os dados concernentes à população carcerária. Deste modo, o mesmo não poderia deixar de ocorrer com uma Operação que, desde o início, não faz outra coisa que não maximizar o Direito Penal e Processual Penal, aplicando o método inquisitorial de modo evidente, castrando os direitos e garantias do acusado e asfixiando pretensões minimalistas. A seletividade (talvez “parcialidade” fosse mais adequado) atinente às críticas aos que estão implicados em todo este mastodôntico processo não deve ser desconsiderada, mas também não pode ser utilizada de modo oportunista. Nossa paladina da moral visa atacar o moralismo pretérito com um moralismo renovado. Apresentando-se claramente como alternativa a um capitalismo antiético, saúda inconstitucionalidades em defesa da Constituição. Se o “sistema” é a doença, o Direito (que parece ser exógeno) é a cura.

O direito não pode ser compreendido criticamente se for descolado das relações de produção que fundamentam a sociedade capitalista. Se a autora atentasse para as formulações de seu próprio orientador[4] e de outros estudiosos[5] do tema, perceberia a apatia pseudo-teórica que caracteriza sua análise conjuntural. Com o objetivo de formular uma Crítica crítica, Luciana Genro ignora os escritos de Engels[6] e Pashukanis[7], pensa representar a renovação do socialismo, mas oferece uma reciclagem do velho (e irrelevante) Anton Menger: provê um modelo ruinoso para emendar a “ruína do modelo”.

Ao compreender o direito penal enquanto forma-jurídica derivada da forma-mercadoria, percebemos que a maximização de seu raio de alcance sob o pretexto ideológico de democratização da punição, solapa ainda mais as poucas garantias democráticas conquistadas pelas lutas políticas. Se o direito penal é parte do aparato estatal que assegura a reprodução das relações de produção e forças produtivas, defender a sua ampliação é defender a extensão da barbárie. Os clientes preferenciais serão sempre os mesmos, não importando a espetacularização midiática acerca dos escândalos políticos ou as pílulas homeopáticas de sabedoria fornecidas por Genro.

Identificamos concretamente, em texto anterior, as nefastas consequências que a onda de criminalização iniciada pela Ação Penal 470 (“Mensalão”) [8] e aprofundada pela “Operação Lava Jato”, produziu para os miseráveis normalmente vitimados pelo Sistema Penal. Seja através da deturpação teórica de institutos jurídicos, realizada pelos Tribunais Superiores, seja através do incontrolável populismo penal do Poder Legislativo, que tem na pessoa do Juiz Sérgio Moro e em setores do Ministério Público Federal, verdadeiros lobistas da repressão[9], a relação dos explorados com a Justiça Criminal só tende a piorar. Dito de modo simples, “é impossível restringir direitos de um grupo socialmente privilegiado sem que isso repercuta negativamente sobre os mais vulneráveis ampliando ainda mais os instrumentos que produzem o superencarcaremento da população negra e pobre[10]”.

Se a criminologia crítica possui “várias vertentes”, a autora parece desconhecê-las por completo, alinhando-se, de modo estritamente adjetivo, à Criminologia Radical, citando Juarez Cirino do Santos. A criminologia de Cirino é radical justamente por “tomar a coisa pela raiz[10]”, direcionando as armas da crítica contra a forma-jurídica, desmistificando o direito e combatendo abertamente a ideologia punitivista. Cirino é claramente o mais brilhante criminólogo brasileiro e, ao contrário da superficialidade de Genro, é abertamente abolicionista. O trecho citado no texto é de “Criminologia Radical”, obra fundante da criminologia marxista brasileira e tese de doutoramento do autor (escrita entre 1979 e 1981). Por honestidade intelectual, Cirino acredita que a tese não deveria ser reformulada, vez que expressa o momento em que fora escrita. A criminologia marxista se adensou, desistindo da antiga formulação pinçada por Genro. Um simples contato com o autor que, diga-se, se avulta frequentemente como um dos maiores críticos da famigerada Operação, bastaria para sanar quaisquer dúvidas. Resta saber se Genro está enganada ou se está enganando.

Thiago Araujo é Professor de Direito Penal e Criminologia (UFRJ)

Lucas Sada é Advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH)

[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 42.

[2] Do ponto de vista operacional, quem destaca o papel central da imprensa em operações como a Lava Jato não somos nós, mas seu próprio chefe maior, o Juiz Federal, Sérgio Fernando Moro. Em artigo publicado no ano de 2004, Moro analisa de forma elogiosa a famosa Operação italiana conhecida “Mani Pulite” e indica a possibilidade de algo similar acontecer no Brasil – estava, portanto, profetizada pelo magistrado paranaense a Operação “Lava Jato”. No texto o autor identifica um “círculo virtuoso”, responsável pela “magnitude dos resultados obtidos”, que seria composto por prisões preventivas, confissões/delações e divulgação do conteúdo das investigações por meio da imprensa. Em outras palavras, no tripé que sustenta operações como a “Lava Jato”, a agência de comunicação social é, segundo seu “coordenador”, pilar central. Cf.: < http://s.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf > Acesso em: 23 de abril de 2017. Essa divulgação, mesmo que operada através de vazamentos ilegais, teria como efeitos desejados e legítimos: a) adesão da opinião pública ao modus operandi da Operação blindando o trabalho dos magistrados contra obstruções indevidas e b) o exercício de coação sobre os inestimados que estariam permanentemente “na defensiva” facilitando a ocorrência de delações e confissões.

[3] BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; et alii. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 45.

[4] Em especial: MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

[5] KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões: Dobra Universitário, 2014; KASHIURA Jr., Celso Naoto; AKAMINE JR., Oswaldo; MELO, Tarso.Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões: Dobra Universitário2015; LIMA, Martônio; BELLO, Enzo (org.). Direito e marxismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões: Dobra Universitário, 2014

[6] ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012.

[7] PASHUKANIS, E. B. The general theory of law and marxism. New Brunswick: Transaction Publishers, 2009.

[8] Para uma análise magistral do referido processo: BATISTA, Nilo. Crítica do Mensalão. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[9] Basta observer as pavorosas “10 Medidas Contra à Corrupção” apresentadas pelo Ministério Público Federal que tinham o Juiz Sérgio Moro como garoto-propaganda. Temporiamente derrotado na Câmara Federal, o pacote lesgislativo foi rechaçado por toda comunidade jurídica democrática, pois se aprovado causaria um dano incalculável em termos de superencarceramento. Por todos, destacamos a bilhante atuação da Defensoria Pública do Estado do de Janeiro e do Instituto Brasileiro de Cièncias Criminais (IBCCRIM) na luta contra esse delírio acustório cujas críticas podem ser encontradas respectivamente em <http://10medidasemxeque.rj.def.br/ e <https://www.ibccrim.org.br/boletim_sumario/318-277-Dezembro2015> Acesso em: 23 de abril de 2017.

[1o] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 151.

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