por Helô D’Angelo* – Feminismo na Prática
Belchior foi um grande artista, é verdade. Escreveu grandes sucessos, era inteligentíssimo, falava cinco idiomas, cursou medicina e filosofia e foi uma das maiores vozes da MPB. Figura misteriosa, desapareceu por anos e virou até meme nas redes sociais antes de morrer nesta madrugada (30), não se sabe ao certo de quê.
Mas existe um lado pouco comentado na vida do artista: Belchior era um pai ausente. E bota ausente nisso. Segundo uma grande reportagem da Época, publicada em 2013, o cantor tinha quatro filhos – dois de um primeiro casamento, uma de um caso extraconjugal com uma estudante do Ceará e outra, ainda, fruto de apenas uma noite com uma fã de São Carlos. Já nessa época, o artista era um marido ausente, passando às vezes dois meses direto sem parar em casa.
Quando desapareceu, em 2008, Belchior deixou as quatro crianças sem pai. Segundo a reportagem, o artista parou de pagar as pensões alimentícias (algumas delas no valor acumulado de 7 mil reais) e fugiu com uma amante, que mais tarde se tornaria sua esposa. Depois de algum tempo, ele passou a ser procurado pela polícia (já que, no Brasil, não pagar pensão alimentícia dá cadeia), mas nunca foi preso.
Mesmo assim, Belchior não perdeu seu posto de ídolo cult. Ao contrário: com seu sumiço, ganhou status de herói. Seus fãs idolatravam sua atitude de desapego material, admiravam sua capacidade de viver sem dinheiro e começaram a ver seu modo de vida como algo especial, uma espécie de fuga do capitalismo. Belchior, intelectual auto exilado – além de bonitão -, se tornou uma espécie de “mártir” da esquerda contemporânea. Só se lamentava, até a sua morte, o fato dele não lançar mais discos. Enquanto isso, as mulheres deixadas para trás com seus filhos para criar não mereciam (e ainda não merecem) a menor atenção.
Em nossa sociedade, os homens não são cobrados por seus crimes, pelo seu sexismo, pelos abusos que cometem.
A narrativa de Belchior não é incomum. Aliás, é uma história muito normal: o “grande homem” que comete uma série de atos machistas, mas que, devido à sua genialidade, é automaticamente perdoado sob a mentira de que a vida pessoal da pessoa não não tem nada a ver com sua trajetória como artista/ cientista/ político. Mas é lógico que tem a ver. Ninguém troca de cérebro quando vai pintar um quadro, compor uma canção, dirigir um filme ou comandar um país.
Dá para citar vários e vários exemplos: o escultor Auguste Rodin, que tomou crédito por várias obras de Camille Claudel e, depois, fez o que pôde para trancá-la em um manicômio, jamais teve a reputação manchada pelo caso; o diretor Woody Allen, que foi acusado de ter abusado sexualmente da enteada, filha de Mia Farrow, ainda criança, mas continua entre os maiores diretores de cinema de Hollywood; o pintor Diego Rivera, cujo relacionamento abusivo com Frida Kahlo quase matou a artista, mas segue sendo considerado um grande pintor; o ator Johnny Depp, que mesmo depois de agredir a esposa, Amber Heard, não parou de receber papeis importantes em filmes; Donald Trump, que acumula incontáveis denúncias de abuso sexual e, mesmo assim, foi eleito presidente dos Estados Unidos. E a lista continua, infinita.
A conclusão é simples: em nossa sociedade, os homens não são cobrados por seus crimes, pelo seu sexismo, pelos abusos que cometem. Dentro do patriarcado, se você for homem, sua genialidade, sua importância política ou mesmo sua fama serão sempre colocadas acima de suas falhas. Tudo pode ser perdoado, esquecido, relativizado se você for homem.
Com as mulheres, a coisa não é bem assim. Dá para perceber isso observando como a mídia trata a nossa relação com a maternidade: a cantora Maysa, por exemplo, era apresentada pela mídia como louca e “uma péssima mãe” por colocar sua carreira na frente do filho; Nina Simone era crucificada por ter uma relação conturbada com a filha (embora fosse claro que ela estava sendo explorada pelo marido e empresário); Cássia Eller tinha sua imagem pouco feminina explorada como algo exótico depois de dar à luz Chicão; até Beyoncè é taxada de má mãe por postar fotos da filha, Ivy Blue, nas redes sociais; Angelina Jolie tem filhos demais; artistas que não são mães têm filhos de menos.
Com as mulheres, a coisa não é bem assim. Dá para perceber isso observando como a mídia trata a nossa relação com a maternidade: a cantora Maysa, por exemplo, era apresentada pela mídia como louca e “uma péssima mãe” por colocar sua carreira na frente do filho.
Mulheres são socialmente obrigadas a ter filhos e, se não tivermos, somos postas como excêntricas ou “especiais” – ou então, como casos trágicos (vide Frida Kahlo). Somos obrigadas a parir e, automaticamente, a reconquistar o corpo perfeito. Somos acorrentadas à maternidade desde a concepção, já que o aborto é proibido e a contracepção é totalmente nossa responsabilidade, e em momento nenhum temos a liberdade que Belchior tinha, de fugir com o amante e, ainda assim, ser considerado o grande herói da esquerda – porque, se ousarmos fugir, sempre seremos as más mães, as putas, as malvadas, as desalmadas, como as mães que morrem nos contos de fada e desencadeiam todo o mal para os protagonistas. Porque os papeis de parideira e cuidadora são os únicos que podemos desempenhar dentro do patriarcado.
Já Rodin pode simplesmente trancafiar sua concorrente em um manicômio. Trump pode ignorar centenas de acusações de assédio sexual e milhares de mulheres que se manifestam contra ele. Woody Allen pode passar por cima de denúncias de pedofilia e ser indicado ao Oscar. E Belchior pode simplesmente abandonar a chatice que é lidar com quatro filhos e se tornar um grande herói na luta contra o capitalismo. Enquanto isso, nós, mulheres, seguimos sendo mães solo, tendo que implorar migalhas de nossos ex-companheiros, levando na cara acusações de extorsão simplesmente por cobrar a pensão.
Não há heroísmo reservado para as mulheres. E é por isso que ninguém liga se Belchior era pai ausente ou não.
*22 anos na cara e fazendo o que pode para viver do que ama: desenho e escrita. Saiba mais sobre ela em seu portfolio: helodangelo.wixsite.com/portfolio
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Foto: “Socorro” mesmo, fi.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.
Acho que esse pessoal não para pra pensar o quanto defendem o homem, e que ele não pensou nem um pouco nessas mulheres, a música dele pode não ser machista, mas ele era! E quantas de nós somos crucificadas pra sempre por agir como eles? Eles vivem errando e não aprendem e a se a gente erra a culpa é nossa e tudo tá acabado, pra eles sempre tem um motivo… texto cirúrgico!
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Excelente artigo acerca do machismo. Concordo com quase tudo, menos quando você diz que “Somos acorrentadas à maternidade desde a concepção, já que o aborto é proibido…” , isso porque, no meu modesto entendimento, se a mulher não pretende ser mãe, ela, obrigatoriamente, deve evitar uma gravidez e, se assim, proceder não há a necessidade de abortar, também porque não se pode colocar a responsabilidade por uma gravidez ” indesejada” em um ser que nada tem a ver com a inconsequência de quem quer que seja: pai ou mãe.
Oportunismo puro.
O oportunismo aparece quando pra se tratar da questão do “perdão aos erros masculinos” (e femininos? Elis foi uma mãe ausente, Maísa também, Madonna, Gretchen(?), Courtney Love, Vanusa……..), se pega carona com o artista que está em evidência (Belchior) ignorando o luto da família (para aqueles que Bel não foi ausente), fãs e todo o Estado do Ceará (visto a importância artística e cultural dele, este luto se espalha por todo meu estado SIM)…
A tão falada empatia não foi posta em prática.
Olá, Hêlo D’Angelo! Interessante o seu ponto de vista. Concordo: geralmente, os erros masculinos são perdoados e os nossos ficam marcados.
Só acho perigoso criticar um artista pela vida privada. Não é legal criticar a Nina Simone como artista, porque foi uma péssima mãe. Se vamos criticá-la, que seja pela obra. Ela permanece na cultura cult como uma diva do blues, bem como “Ain’t go no..” permanece um símbolo do movimento negro… Que continue assim!
Com o Woody Allen é diferente, porque o seu trabalho é autobiográfico e a crítica que vc fez está presente em muitos dos seus filmes e livros (não falo do suposto abuso sexual, mas dele ter se casado com a “filha adotiva da ex-mulher”, o que provavelmente é reflexo da forma como ele vê e aborda o sexo em sua arte – extremamente amoral). Atenção: adoro os filmes e não estou dizendo que a obra dele deve ser desconsiderada, mas que dá para usar fatos da vida privada do Woody Allen como um complemento para a análise de seus roteiros, contos etc.
Já como Belchior, por mais que seja autobiográfico, não conheço uma letra de música com uma mensagem machista (como Feijoada Completa do Chico e tantas outras do samba e do rock), talvez vamos encontrar em seus versos a vontade sumir e o eterno conflito no relacionamento entre pais e filhos. No fim, acho que o faltou nesse post uma referência ao trabalho do Belchior!
E, no final, “qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”