João Flores da Cunha – IHU On-Line
Nos últimos anos, diversos países da América Latina foram governados por partidos identificados com a esquerda – um ciclo político que usualmente é chamado de uma “onda progressista” na região. No entanto, Fabio Luis Barbosa dos Santos, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, defende, em entrevista concedida à IHU On-line por telefone, que “o qualificativo ‘progressista’, retrospectivamente, deve ser problematizado”. Para ele, “podemos interpretar os governos progressistas como funcionais à reprodução do neoliberalismo”.
Segundo Barbosa, os governos progressistas “se elegeram com uma retórica de enfrentar e superar o neoliberalismo, mas logo transformaram a sua perpetuação no poder como um fim em si. E, ao fazer isso, de um lado, abriram mão de atacar a raiz dos problemas e, de outro lado, entregaram-se às práticas da política convencional”, as quais “consolidam um distanciamento completo, um abismo entre o que acontece nos parlamentos e os anseios do conjunto da população”.
Uma vez no poder, esses governos realizaram composições com setores conservadores da sociedade e se dedicaram a um “melhorismo”, sem almejar mudanças estruturais. De acordo com o pesquisador, o “sentido das políticas aplicadas, que é dado fundamentalmente pelas políticas macroeconômicas neoliberais, não foi desafiado”, e “o sentido geral do movimento foi de continuidade”. Assim, o resultado desse processo foi um aprofundamento das “determinações estruturais do subdesenvolvimento, que são a desigualdade e a dependência”.
Sobre a situação do Brasil, Barbosa defende que a esquerda não pode se limitar à agenda do Fora Temer, pois “o banco de reservas do Temer está cheio”. Como horizonte para o campo progressista em um momento que entende como “dramático”, propõe “libertar a esquerda da lâmpada mágica do lulismo” no Brasil e “das diferentes expressões do reformismo conservador” na América Latina.
Fabio Luis Barbosa dos Santos é professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e pesquisador colaborador do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo – USP. Tem doutorado em História Econômica pela USP. É autor dos livros “Além do PT. A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana” e “Origens do pensamento e da política radical na América Latina”.
O pesquisador estará no IHU nesta quinta-feira, 11-5, onde irá ministrar a palestra “Impasses e possibilidades da esquerda na América Latina”, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU. A conferência integra o ciclo de eventos A reinvenção da política no Brasil contemporâneo – Limites e perspectivas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Parece haver um consenso entre analistas de que houve um ciclo de governos progressistas na América Latina, e que esse ciclo acabou. O senhor concorda com essa análise?
Fabio Luis Barbosa dos Santos – Sem dúvida, há um movimento – talvez não seja um ciclo, porque um ciclo dá a ideia de algo que retornará – que se esgota. Ele foi desencadeado pela eleição de Hugo Chávez em 1998, seguido por Néstor Kirchner e Lula, entre outros daquele conjunto de governos identificados de forma geral como uma onda progressista.
Eu entendo que o qualificativo “progressista”, retrospectivamente, deve ser problematizado. No caso brasileiro, eu e mais pessoas do campo crítico temos o entendimento de que o legado das gestões petistas é, no longo prazo, mais danoso do que benéfico – tanto do ponto de vista popular quanto do conjunto da esquerda. De um lado, não avançou na direção de mudanças estruturais e, de outro, contribuiu para apassivar, dividir e alienar o campo popular, ou seja, contribuiu para debilitar o campo popular. Então, nós nos debilitamos para enfrentar os ataques em curso contra o campo popular e contra os trabalhadores brasileiros, que têm ocorrido de maneira aberta, sem mediações. As gestões petistas faziam, de alguma maneira, essa mediação.
Essa referência ao caso brasileiro serve para dizer que eu não chamaria as gestões do PT de progressistas. Uma leitura análoga pode ser feita em relação a outros casos na América do Sul, sobretudo. Por exemplo, o da Bolívia, em que o governo de Evo Morales foi eleito depois de uma sequência de convulsões populares, que derrubaram dois presidentes entre 2000 e 2005; ou seja, trata-se de um país que vivia o que pode ser descrito como uma conjuntura revolucionária. Então, começou como um governo que se identificava como governo dos movimentos populares, fez uma constituição renovadora, um Estado plurinacional, incorporando a questão do Bem Viver. Houve a Constituinte, em que o país quase se dividiu, mas logo o governo se reelegeu, inclusive com maioria no parlamento. Diferentemente, portanto, da situação brasileira, Morales não dependia de composições parlamentares para propor mudanças.
No entanto, o que se observou foi que o governo avançou na direção oposta: foi compondo cada vez mais com os setores conservadores da sociedade boliviana. E uma das consequências disso é que ele foi se afastando de sua base popular. Isso culminou, em 2011, em conflitos, como o massacre de Chaparina. O resultado disso é que a parte mais combativa do movimento popular na Bolívia está hoje contra o governo.
É a mesma coisa no Equador. Cada situação tem sua particularidade, mas há um padrão que podemos observar: são governos que se elegeram com uma retórica de enfrentar e superar o neoliberalismo, mas que logo transformaram a sua perpetuação no poder como um fim em si. E, ao fazer isso, de um lado, abriram mão de atacar a raiz dos problemas e, de outro lado, entregaram-se às práticas da política convencional, como o marketing político, a política mercantil – aquela negociação do “toma lá, dá cá” –, uma série de práticas que consolidam um distanciamento completo, um abismo entre o que acontece nos parlamentos e os anseios do conjunto da população.
O caso da Venezuela
Nesse quadro geral, a exceção foi a Venezuela, onde houve uma tentativa de mudança. A singularidade do caso venezuelano foi que, à medida que as classes dominantes reagiram e confrontaram o bolivarianismo, o processo se radicalizou para a esquerda – em lugar de buscar uma composição. Após a tentativa de golpe, em 2002, a burguesia decretou um locaute, e o PIB do país caiu quase 20% em menos de um ano. O governo reagiu a isso com um expurgo na PDVSA, a petrolífera estatal, e foi se radicalizando.
Quando isso ocorreu, o contexto era de eleição do Lula e do Kirchner, e havia a expectativa de um apoio regional – que foi ambíguo. De um lado, o chanceler brasileiro, Celso Amorim, conversava com a Venezuela. De outro, a condição da conversa era que ela tinha de ser feita nos termos ditados pelo Brasil: que houvesse a aceitação da liderança regional brasileira, a qual estava assentada na conciliação, e não na radicalização. O Brasil sempre influenciou na direção da moderação do processo venezuelano.
Continuidade macroestrutural
Contas feitas, o alcance dessa chamada onda progressista foi a alternância política. Em todos os países da América do Sul, com exceção da Colômbia e do Peru, que tinham luta armada na década de 1990, houve alternância política. As forças tradicionais perderam. No caso da Venezuela, eram dois partidos que comandavam o país desde os anos 1950, e que sumiram. Na Bolívia, eram os indígenas fora da política – e hoje, se você entra no Parlamento boliviano, os indígenas estão lá. No Brasil, o PT se elegeu, e assim por diante.
O limite disso é que, em todos os casos, houve continuidade macroestrutural. Em nenhum dos casos, houve ruptura com o neoliberalismo. Ao contrário, houve um aprofundamento do neoliberalismo e das determinações estruturais do subdesenvolvimento, que são a desigualdade e a dependência. É nesse sentido que eu digo que a descrição de onda progressista, na perspectiva mais benevolente, serve para descrever essa alternância política, na qual figuras políticas identificadas com a esquerda assumiram governos.
Porém, ela não serve para descrever o sentido geral do movimento, que foi de continuidade. Quando se fala em “progressista”, supõe-se que houve uma reversão do movimento conservador. É muito mais uma questão de nuances, de ritmos e de tempos, do que do sentido das políticas aplicadas, que é dado fundamentalmente pelas políticas macroeconômicas neoliberais e que não foi desafiado.
Então, todos esses países continuam dependentes da exportação primária e dos Estados Unidos. A desigualdade estrutural permanece, embora tenha sido aliviada temporariamente – só que o foi em todos os países, não só os da onda progressista. Todo mundo se beneficiou do boom das commodities – na Colômbia e no Peru, a desigualdade também diminuiu.
O saldo disso, se o caso brasileiro servir de ilustração, será um balanço difícil para o campo popular, porque, retrospectivamente, podemos interpretar os governos progressistas como funcionais à reprodução do neoliberalismo. Todos eles se elegeram em um momento em que se tinha dificuldade de manter a ordem, o padrão de dominação – de forma mais clara nos casos de Argentina, Bolívia e Equador, em que vários presidentes foram derrubados, e de forma latente em outras situações, como a brasileira e a uruguaia.
Em todos os casos, os governos se elegeram em reação ao neoliberalismo. E, 15 anos depois, o que observamos é que eles foram funcionais à perpetuação do neoliberalismo. Então, a descrição de “progressista” pode ser invertida. É isso o que o pensamento crítico tem que problematizar neste momento, porque, da leitura do que se passou e do que estamos vivendo, depende a fundação da política futura.
Há um consenso, e nisso eu concordo, de que o movimento, ou ciclo, se você preferir, se esgota. Então, precisamos entender o que ele significou para ir além do que foi feito.
IHU On-Line – Em relação à continuidade macroestrutural que o senhor mencionou: as sociedades latino-americanas são marcadas pela desigualdade. Em sua visão, por que não foram feitas mudanças estruturais no período em que estes governos estiveram no poder?
Fabio Luis Barbosa dos Santos – Há várias situações. No caso brasileiro, havia uma aposta: o Brasil é tão desigual que seria possível melhorar alguma coisa sem mexer na estrutura dos problemas. Então, para dizer de modo sintético, apostou-se na reforma como um caminho para diminuir as contradições dessa sociedade apartada, que é o Brasil. Esse foi o fundamento do modo lulista de regulação do conflito social, que consistia, por um lado, em pequenos ganhos dos patamares inferiores da pirâmide social brasileira, seja por meio de renda condicionada com o Programa Bolsa Família, seja por uma discreta evolução do salário mínimo e, por outro lado, mantendo os negócios intocados – e quem sempre ganhou dinheiro no país continuou ganhando dinheiro como nunca.
Nesse acerto houve uma relativa pacificação social. Essa aposta funcionou bem no período de crescimento econômico e do boom das commodities, mas começou a ter problemas por conta da conjunção de escândalos políticos e da recessão econômica. Isso ficou claro em junho de 2013, quando esse modelo perdeu a sua funcionalidade e a sua margem de manobra de dar para os pobres sem tirar dos ricos. Num contexto de crise, perdeu-se o espaço para essa proposta.
Em resumo, a aposta brasileira foi resolver os problemas sem atacar a fonte dos problemas. Essa é uma situação. Em outros casos, como no venezuelano, houve a intenção, mas houve muitos limites, e o limite fundamental foi que não se conseguiu superar a dependência do rentismo petroleiro: a Venezuela depende 90% da exploração de petróleo. Houve tentativas de diversificação econômica, as quais foram modestas, mas o entorno regional não ajudou, muito menos a conjuntura mundial – e essa é uma sociedade marcada pelo rentismo, inclusive por parte do campo popular, com os movimentos sociais e sindicais. Nesse sentido, foi muito difícil atualizar um projeto de mudança nas circunstâncias em que ele se originou.
Nos casos boliviano e equatoriano, no meu modo de entender, o que ficou claro para eles é que foi feita uma opção por se perpetuar no poder e para isso é preciso compor com quem sempre foi o poder. Isso foi o que deu a tônica desse afastamento dos governos em relação ao campo popular. Tal afastamento levou esses governos a tomarem medidas repressivas e é importante que se diga isso, porque há muita ilusão em relação ao que é o governo Morales, com a questão do governo dos indígenas, amigo de Pachamama, pela legalização da folha de coca… Isso tudo é um marketing, que não tem correspondência com as práticas desse governo, o qual tem políticas repressivas contra os movimentos indígenas e depredadoras com o meio ambiente.
Havia uma expectativa geral em relação a esses governos, especialmente no caso brasileiro, de que era possível fazer mudanças importantes sem mexer nas estruturas. Essa leitura mostrou os seus limites, porque no Brasil ou mesmo na América Latina, há avanços no trabalho – até que isso não mexa nos interesses do capital. O problema é que há pouca possibilidade de o trabalho ceder em relação ao capital, a não ser em seu bem político mais precioso, que é a autonomia. Então, a situação brasileira mostra que a aposta não foi a de fazer mudanças estruturais, portanto esses governos não se preocuparam em construir correlações de forças para fazer tais mudanças. Isso não estava nem no horizonte. O governo achava que dava para fazer um “melhorismo” pelas bordas – mas o que estamos vendo agora é que esse “melhorismo” custou muito caro, porque custou a autonomia do campo popular e, nesse sentido, ficamos desarmados. Estamos agora numa situação como aquela do jogo entre Brasil e Alemanha: estamos levando cinco gols, um atrás do outro, e percebemos que o time do outro lado é muito mais forte do que o nosso. Não nos preparamos para esta situação, e o mais dramático é que insistimos em fazer este jogo sob a cartolagem do lulismo, quando na verdade precisamos de um outro time, de um outro sistema tático, de outras referências – e não pode ter cartola.
IHU On-Line – Quais são os impasses da esquerda latino-americana atualmente?
Fabio Luis Barbosa dos Santos – O primeiro impasse é fazer essas contas com a experiência recente, ou seja, que leitura será feita dessa chamada onda progressista. No caso brasileiro, há um discurso mais próximo do PT de que houve golpe movido por uma disputa de projeto, como se o sentido das políticas do governo Temer fosse diferente do das políticas do governo anterior.
Não estou dizendo que não houve golpe e que o governo Temer é melhor do que o anterior. O que estou dizendo é que o sentido das políticas é o mesmo: o congelamento dos gastos públicos por vinte anos é uma radicalização da lógica cultivada pelas gestões petistas. Então, o primeiro impasse é que leitura e compreensão temos sobre o que acabou de acontecer. Se você entende que foi um golpe motivado por uma disputa de projeto, então trata-se de remover o atual projeto e restituir a ordem petista.
Os críticos da ordem anterior precisam fazer a crítica radical do que foi aquele governo. Esse é o primeiro impasse importante, ou seja, precisamos acertar as contas com o passado recente, entender o que aconteceu. Todo mundo concorda que estamos vivendo uma derrota no campo popular, e uma derrota pode ser uma fonte de aprendizado – mas também pode ser apenas uma derrota. Fazer disso uma fonte de aprendizado exige, no caso brasileiro, fazer uma crítica radical do que significou a experiência petista no seu conjunto, ou seja, do PT dos anos 80 até o que o partido virou nos dias de hoje – é claro que tem muita gente boa dentro do PT, mas o sentido de atuação do partido é lamentável. Essa crítica é importante para ver para onde vamos.
Vou dar um exemplo da greve geral do último dia 28 de abril. O protesto do dia 28 foi comandado pelas organizações de sempre, e a manifestação foi centrada no “Fora Temer”. Todos os discursos, desde o MTST até o MST, passando por deputados petistas que se manifestaram, colocaram a crítica no governo Temer, mas ninguém faz a crítica da agenda do ajuste – porque ela foi incorporada e praticada pelo petismo. Falar em “Fora Temer” é um jeito de fazer mobilização e manifestação sem ferir a suscetibilidade petista. Veja, o problema não é o Temer – o banco de reservas do Temer está cheio, inclusive há um sindicalista, ex-presidente, esperando a sua hora de voltar. Nesse sentido, o primeiro passo é superar o PT, ou seja, é preciso se abrir para construir o novo. O PT ainda tem hegemonia sobre a esquerda, seja uma hegemonia para fora, porque o povo identifica a esquerda com o PT, seja para dentro, porque as grandes manifestações ficam circunscritas à pauta petista.
Um segundo impasse que eu destacaria é do ponto de vista do horizonte civilizatório. Todos os países latino-americanos dependem de exportação primária, a qual está associada à superexploração do trabalho – isso foi estudado no Brasil por Celso Furtado, Florestan Fernandes e diversos autores. Para se superar essa articulação, é preciso fazer a crítica ao extrativismo, que é esse modelo pautado na exportação primária. Por outro lado, a exportação primária está associada à modernização dos padrões de consumo. O resultado é que os valores de consumo dos brasileiros e dos latino-americanos estão em Miami – mas os nossos pés estão no Brasil e na América Latina. Há um descolamento entre as aspirações e os padrões de consumo de Miami e a base material, que são as nossas sociedades.
O impasse, portanto, é que devemos entender que é impossível conciliar modernização dos padrões de consumo e igualdade. Se a esquerda e o povo vão optar pela igualdade, nós temos que entender que o nosso horizonte não é ter Ipad para todo mundo, não é ter notebook para todo mundo, mas é todo mundo ter casa, sapato, acesso à cultura. A igualdade e o privilégio são incompatíveis, e isso exige que façamos uma crítica ao mito do crescimento econômico e uma crítica no terreno dos valores.
Entendo ainda que é preciso um outro horizonte civilizatório, porque o crescimento econômico na periferia está baseado na exportação, que está baseada na exploração do meio ambiente e na exploração do trabalho. Então, precisamos confrontar esse mito do crescimento econômico – cujo outro lado é o mito de que o consumo é a solução dos problemas sociais. Infelizmente, no caso brasileiro a lógica e a retórica do consumo foram adotadas pelas políticas dos governos do Partido dos Trabalhadores. Essa é uma proposta que aliena, porque trata direitos, como saúde e educação, como se fossem mercadorias.
Então, a bandeira da igualdade se confronta com os privilégios e com a mercadoria, com a saída privatista. Qual é o horizonte hoje do trabalhador que mora na periferia brasileira? É o de se perguntar como vai conseguir colocar seu filho numa escola particular, e não mais numa escola pública de qualidade. Esse é um horizonte particularista, mas a igualdade requer um horizonte universalista. Em resumo, precisamos recuperar a centralidade da igualdade e enfrentá-la como condição necessária para mudarmos o nosso país.
O terceiro impasse está ligado ao segundo: em relação à leitura que fizemos do que passou, em relação a essa discussão de horizonte civilizatório do qual estou falando, também temos que pensar a leitura política do que passou na chave dos limites para a mudança dentro da ordem. Qual foi a pauta petista? Modificar os problemas sem atacar a raiz dos problemas. Qual é o saldo disso? Qual foi o alcance dessa aposta? O PT conseguiu se manter no governo por um determinado tempo, mas sem fazer as mudanças. Se pensarmos no PT como um movimento mais amplo, do final dos anos 70 até agora, percebe-se que mais do que um esgotamento das forças progressistas no Brasil, há um esgotamento da hegemonia petista na esquerda, do PT como essa organização que cristalizou as aspirações da esquerda nesse período de forma muito inovadora, importante e valorosa nos seus primeiros anos, dos anos 70 até os 90, e depois de forma danosa.
Ao fazermos essa avaliação do petismo no conjunto, percebemos qual foi o alcance das estratégias desenhadas pelo PT, ou seja, que elas foram suficientes para se chegar à presidência e permanecer por três mandatos e meio. Qual foi o limite dessa estratégia? Que não se mudou nada – pelo contrário, estamos em um cenário de pioras profundas. Devemos lembrar que os governos petistas não desfizeram nada do que o governo FHC fez; ao contrário, fizeram uma espécie de “puxadinho”, construindo suas políticas em cima do que foi feito anteriormente. Qual é a lição que devemos tirar disso? Que houve limites nessa reforma dentro da ordem. O saldo é esse: o PT chegou à presidência, permaneceu na presidência, mas não mudou nada, e agora estamos retrocedendo barbaramente e isso terá um impacto pelo menos nos próximos cem anos.
O que percebemos é que, para mudar o Brasil e a América Latina, a briga é muito maior do que essa. O PT construiu as condições para chegar à presidência, isso é uma coisa; outra coisa é construir as condições e as correlações de forças para mudar o país. É uma briga muito maior. Portanto, esse é o impasse com que a esquerda se defronta neste momento: se vai querer casar por conveniência ou se vai querer casar por amor. Casar por conveniência é o quê? É fazer da política o seu meio de vida. O que é casar por amor? É se envolver com a política – eu falo política no sentido amplo da palavra – para mudar o Brasil e a América Latina. Esses precisam se preparar para uma briga muito maior, porque com os instrumentos construídos nesses anos passados – o principal deles é o PT, mas há a CUT e vários movimentos sociais –, eles tiveram esse alcance, esse limite.
Logo, para mudar as estruturas, é preciso instrumentos diferentes e adequados para uma briga muito maior. Reciclar o petismo e regenerar o partido é uma via que nos vai afundar ainda mais no atoleiro em que estamos.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Fabio Luis Barbosa dos Santos – Como já ficou claro, cada país tem sua circunstância. No Brasil, a burguesia tem uma agenda, a do ajuste estrutural. Ela tem organizações: parlamento, mídia, judiciário e a polícia. Tem um método: o terror do desemprego, para disciplinar o trabalhador, ou o terror da repressão, para disciplinar os insubordinados. E tem valores, que são os valores do neoliberalismo: a concorrência, o individualismo e o consumo.
A esquerda precisa construir uma política que seja não só diferente, mas oposta àquela praticada pelos braços esquerdo e direito do partido da ordem (já que o PT faz parte da ordem); precisa ser contra a agenda do ajuste. Não basta o Fora Temer, pois, como já disse, o banco de reservas do Temer está cheio. É preciso subordinar a riqueza e o trabalho aos anseios e às necessidades do conjunto da população, e não para pagar juros a banqueiros – porque o sentido fundamental de todas essas reformas é direcionar mais dinheiro para o pagamento dos juros da dívida pública. Então, precisamos ser contra o fundamento dessa discussão, que é a agenda do ajuste; precisamos ter um conjunto de organizações que combine a luta dentro da ordem com a luta contra a ordem. Precisamos de múltiplas organizações que façam isso neste momento, e para fazer isso será necessário ocupar não só a escola, como foi feito no ano passado, mas ocupar o Brasil – e essa prática tem que estar referida a outros valores. Os principais são a solidariedade e a igualdade substantiva – que é não só a igualdade econômica, mas também a igualdade de gênero, de cor e assim por diante.
Para quem identifica o PT com a esquerda, a “casa caiu”. Mas já dizia o Emicida, aquele rapper: “sobre chances, é bom vê-las. Às vezes, se perde o telhado para ganhar as estrelas”. Proponho deixarmos de olhar o telhado e voltarmos a nos guiar pelas estrelas. Toda crise é também uma oportunidade e temos que enxergar isso neste momento dramático que estamos vivendo. Libertar a esquerda da lâmpada mágica do lulismo. Ou, no caso latino-americano, das diferentes expressões do reformismo conservador.