Casé Angatu* – Outras Palavras
“Somos geniosos
Mas temos bom coração
Somos guerreiros
E por nossas terras vamos lutar
Espalhar nossa semente
A Aldeia germinar”
O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga a Fundação Nacional do Índio e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (CPI da Funai/Incra), a ser votado nesta terça, 16 de maio, pede o indiciamento de quase cem pessoas por supostos crimes praticados em processos de demarcação de terras indígenas, de quilombolas e em assentamentos rurais destinados à reforma agrária. Entre eles, estão o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo e de 15 antropólogos, além de dirigentes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e do Centro de Trabalho Indigenista (CTI).
Apresentado pelo deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), criminaliza ainda servidores da Funai e do Incra, antropólogos e dirigentes de organizações não governamentais (ONGs), acusados de participar de fraudes em processos de demarcação no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, em Mato Grosso, em Mato Grosso do Sul e na Bahia. O relator pede a revisão desses processos e sugere que se apresente um projeto de lei pelo qual só será considerada terra indígena a área que estava ocupada por índios no dia da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.
A CPI para investigar a Funai e o Incra foi criada por deputados ruralistas que alegam discordar da forma como a Funai realiza seus estudos. Pretende julgar, no âmbito político-ideológico, relatórios que obedecem ao que “determina a Constituição Federal de 1988” e que foram realizados como “peças técnicas, compostas por estudos multidisciplinares de natureza etno-histórica, documental, ambiental, cartográfica e fundiária.”(1)
Em resposta à instalação da CPI, a Funai afirmou em nota: “O que se observa é que parlamentares buscam sobrepor argumentos políticos, ideológicos e baseados em interesses pessoais ao que determinam os ordenamentos legais que regulam a demarcação de territórios indígenas e quilombolas no país. Ainda, buscam desqualificar o trabalho técnico de antropólogos, historiadores, biólogos e outros profissionais, que cumprem com critérios científicos em seus relatórios.” Afirma também que a Comissão significa “um ataque ordenado aos povos indígenas e quilombolas encabeçado por determinados setores da sociedade e do Legislativo”, com o objetivo de tornar os territórios indígenas e quilombolas vulneráveis aos interesses econômicos dominantes. “Uma vez que as terras indígenas representam, em grande parte, as áreas mais preservadas do país, são inúmeras as pressões para tornar sua exploração viável.” (2)
A legalidade de sua criação foi também questionada pela Comissão de Assuntos Indígenas e seu Comitê Quilombos da ABA- Associação Brasileira de Antropologia: “Fruto de requerimento datado de 16 de abril de 2015, apresentado pelos deputados federais Alceu Moreira (PMDB-RS), Luis Carlos Heinze (PP-RS), Nilson Leitão (PSDB-MT), Valdir Colatto (PMDB-SC) e Marcos Montes (PSD-MG), a CPI foi instalada, como se sabe, a contrapelo da legalidade, por não atender aos requisitos mínimos de um procedimento dessa natureza, como o mandato de segurança interposto junto ao STF pela Deputada Federal do PT do DF Érika Kokay, em 9 de novembro de 2015, bem o demonstra”. (3)
Em Território Tupinambá
A CPI chegou à região do município de Ilheús (BA), no nosso Território Indígena Tupinambá de Olivença, entre 29/06/2016 e 02/07/2016. Quando esta CPI faz uma diligência numa área cujo Relatório foi publicado no Diário Oficial da União em abril de 2009 e não ouve o corpo técnico que realizou a análise, na nossa compreensão, pré-julga o estudo realizado e atua com parcialidade. Pelos vídeos que estamos assistindo das reuniões desta CPI, mesmo quando ouve o corpo técnico, a forma de ouvir é inquisitorial.
Pelos textos, imagens e vídeos que acompanhamos na estadia da Comissão na nossa região, e lendo agora o seu “relatório”: só um lado do conflito foi ouvido com atenção. Por exemplo, uma de nossas Caciques indiciadas pela inquisitorial e ruralista CPI sequer foi ouvida, bem como outros indiciados e citados. Mesmo os que foram ouvidos têm suas falas cortadas por comentários, no relatório, numa tentativa de desabonar o que se dizia. Como é possível indiciar e citar pessoas que não são ouvidas? Como é possível indiciar e citar pessoas cujas as falas são recortadas por comentários que acusam?
Ao assinalar que os Relatórios Demarcatórios feitos pela Funai podem ser revistos e seu técnicos criminalizados, essa Comissão aumenta a situação de conflito não só em nosso território como também em diferentes lugares do país. No caso do Território Tupinambá, a solução é a Demarcação Já. Todos os trâmites para que a demarcação do Território Tupinambá ocorra já foram percorridos e voltar atrás seria aumentar o conflito, não solucioná-lo. A CPI insufla a esperança dos contrários à demarcação de que ela não irá ocorrer. A solução é a demarcação e o governo, bem como a justiça, atender aos interesses, inclusive econômicos, dos que se sentem prejudicados.
A presença desta Comissão na área do Território Indígena Tupinambá, em decorrência de sua parcialidade, incentiva os contrários à demarcação, aumenta o preconceito contra o Povo Tupinambá e o discurso de ódio contra os Índios aqui onde moramos. O vídeo do deputado ruralista Luis Carlos Heinze (PP/RS), 1º vice-presidente e um dos mais atuantes nesta comissão, mostra-o incentivando o conflito aqui na região. (4)
O caminho para solucionar os conflitos nos Territórios Indígenas, como o Território Tupinambá, é Demarcação Já!, garantias aos Territórios já demarcados, fim da criminalização dos povos indígenas e dos que realizam estudos para relatórios demarcatórios, Não à PEC 215, Não à Portaria 303 da AGU e fim ao sucateamento da Funai.
Sucateamento da Funai
O pastor Antônio Toninho Costa (Pastor Toninho Costa) foi nomeado presidente da Funai – Fundação Nacional do Índio nomeado em janeiro de 2017 e exonerado em dia 5 de maio, aparentemente por ser incompetente para realizar aquilo que deveria fazer: sucatear a Funai. Saiu acusando o ministro Osmar Serraglio de representar os interesses dos ruralistas na pasta da Justiça, à qual a Funal está subordinada.
Para substituí-lo foi nomeado o general do exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, ex-Diretor de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável – diretoria estratégica para autorizar e negar projetos do PAC, usinas hidroelétricas e exploração do solo em áreas indígenas. Segundo a Carta Capital e revista Forum, o general foi outra indicação feita pelo Partido Social Cristão (PSC).
Assim, tanto o exonerado pastor Antônio Toninho Costa como o general do exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, novos mandatários da Funai, foram indicações realizadas por um partido presidido pelo pastor Everaldo Nascimento, conhecido por sua bancada fundamentalista, ruralista, evangélica, conservadora e truculenta (é o Partido de Jair Bolsonaro). Veja aqui as bandeiras desse partido.
A não ser que me engane muito: o novo indicado irá agir atendendo aos interesses fundamentalistas, ruralistas, evangélicos, conservadores e truculentos. Como sempre digo conforme o ditado popular: “nada é tão ruim que não possa piorar”. Porém, pergunto: o que esperar de um governo golpista, conservador e truculento?
O que esperar de um governo que libera o exército para atuar nas masmorras do Estado e nada faz para alterar o código penal que penaliza pobres? Por isto reafirmo: o silêncio de muitos apoiadores e militantes da luta indígena em relação aos massacres nos presídios é chocar o ovo da serpente.
Com esta nova direção a Funai, já sucateada, será um órgão para: impedir demarcações; rever demarcações já realizadas; modificar o processo demarcatório no sentido da PEC 215 (que manda para o congresso a decisão sobre demarcações); criminalizar indígenas; criminalizar os autores de laudos demarcatórios; liberar terras indígenas para a exploração do agronegócio, madeireiras, usinas e outros interesses econômicos; permitir a evangelização de Parentes.
Ao mesmo tempo, essa nomeação demonstra o quanto nós Indígenas não devemos acreditar no estado brasileiro, sua justiça e mesmo na constituição de 1988 – indiferente de governo. Nossos direitos e as demarcações territoriais ficam a gosto da vontade política (ou má vontade política). Melhor seria: fica ao gosto dos interesses políticos e econômicos dos mandatários do estado, da justiça brasileira e de seus apoiadores. Reafirmo que nestes 517 anos nunca existiram garantias legais perenes ao nosso direito originário e congênito à terra. Os interesses políticos e econômicos sempre serão os verdadeiros mandatários.
Por isto também não podemos ficar calados quando ocorrem os massacres nas masmorras brasileiras. O povo preso em sua maioria é fruto destes 517 anos de dominação. Lá, nas masmorras brasileiras, também estão descendentes de mais de cinco séculos de exploração e negação de direitos.
Nossa luta, a luta dos povos índígenas, não é isolada de outras lutas sociais por direitos e autonomia, apesar de nossas reivindicações especificas. É a luta por um outro mundo possível do qual carregamos, por sermos indígenas, em nosso corpo, forma de ser e anga (alma), a esperança que nos inspira nestes novos/velhos momentos truculentos que se aproximam…
NOTAS
(1) Nota da FUNAI sobre a CPI”. In: FUNAI. http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/3523-nota-da-funai-sobre-cpi, 12/11/2015
(2) Idem
(3) “Nota da ABA à Câmara dos Deputados sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito instalada para investigar a atuação da FUNAI e do Incra”. In: http://comissaoproindio.blogspot.com.br/2015/11/nota-aba-camara-dos-deputados-sobre.html, 17/11/2015.
(4) ANGATU, Casé. “Ruralista incita o acirramento da violência contra o povo Tupinambá de Olivença (Ilhéus/ Bahia) e revela plano para impedir as demarcações dos territórios indígenas na região e em todo o país”. In: Índios Online. http://www.indiosonline.net/ruralista-incita-o-acirramento-da-violencia-contra-o-povo-tupinamba-de-olivenca-ilheusbahia-ameaca-a-demarcacao-do-terrirorio-indigena-na-regiao-e-em-todo-pais-o-fundamentalismo-ruralista-e-um-in/, 02/06/2016.
*Ativista da luta indígena, historiador, doutor pela FAU-USP e professor na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC-BA.