Por Raial Orotu Puri, Crônicas Indigenistas
Talvez esta crônica não acrescente nada de muito novo para quem a for ler. E talvez esse seja um péssimo jeito de começar um texto, já avisando de antemão de que ele tende a ser repetitivo… Mas, ocorre que algumas proposições parecem requerer um nível mais intenso de defesa argumentativa, para que se assentem como um elemento concreto, mesmo que, não raro, esse conceito seja absolutamente óbvio, e praticamente inegável.
A existência do meu povo é, por exemplo, uma dessas ideias. Interessante, não? Aliás, digo isso, não apenas tomando os Puri em isolado, mas pensando na resistência indígena em geral, e na negação perene imposta à possibilidade de uma existência indígena contemporânea, seja ela mantida sobre valores culturais considerados como ‘tradicionais’ – a vida em uma aldeia, a utilização de vestimentas e adornos atendendo às mesmas estilísticas de outrora, etc. – ou seja ela passada em um contexto mais aproximado daquela dos padrões ocidentais. E acho que convém repetir isso, até mesmo para ressaltar o quanto é absurdo que ainda existam, e persistam, reflexões e defesas de uma não-existência dos povos originários na atualidade.
É do mesmo modo bastante absurdo constatar o quanto a presença indígena nas cidades e no mundo contemporâneo seja por tantas vezes hostilizado e tratado como uma desconformidade, um incômodo, uma invasão. Sim, eu também já falei disso… Mas é as circunstâncias têm feito de mim um ser repetitivo: Há sem dúvida algo de errado, uma inversão radical dos polos, quando uma cidade, ou um citadino se mostra incomodado com a presença dos povos originários, perceba-se (Quem é que chegou primeiro, não é mesmo?). Assim como há uma contradição que beira o mau-caratismo nas argumentações do tipo ‘não é índio mais/perdeu a cultura’, como se a gente perdesse a cultura porque foi descuidado enquanto caminhava apressado por uma rua, e houvesse derrubado a cultura e continuado a seguir distraidamente o caminho…
Horas depois o sujeito distraído apalpa os bolsos e ‘Minha nossa, cadê minha cultura?!’ ‘Ah, não acredito, é a segunda vez este ano…’ ‘Putz, agora vou ter de enfrentar fila no Instituto de Identificação para tirar outra cultura…’ Fala sério, né gente?! E sei que estou sendo irônica, mas é que se as pessoas realmente escutassem o que elas dizem quando fazem suas ilações sobre os povos originários, se raciocinassem sobre o que de fato estão falando, é assim que soaria. Cito, para ilustrar, um exemplo do ATL: circulou muito pelas redes uma foto de dois Kuikuro paramentados dos pés à cabeça sacando dinheiro num caixa eletrônico em um intervalo das manifestações. O que eu vi ali? Dois Kuikuro sacando dinheiro. O que muitos veriam ali? Dois Kuikuro sacando dinheiro. Mas o que foi que muitos viram e comentaram da cena? Bom, acho que aqueles que estão lendo podem perfeitamente imaginar… E sim, o pior que você puder imaginar chega bem perto dos comentários.
Acontece que não é assim. Ok? Cultura, identidade, autorreconhecimento é algo muito mais concreto, persistente e indissociável da personalidade. Não se dilui com o uso de roupas e bens de consumo ocidentais, não desaparece no concreto da cidade, não deixa de ser apenas porque precisa ser reelaborada. Pelo contrário, dizem alguns especialistas, é justamente nas situações de tensão – e vai por mim, ambiente urbano é bem tenso para quem é outsider – que esses elementos podem se evidenciar com mais forma e força.
E digo tudo isso para dizer que sim, os indígenas estão na cidade. Estão e, se quiserem, vieram para ficar. E, nas cidades reivindicam o direito de ser tal qual se percebem e se concebem. Nela também constroem possibilidades de existência, dela também vivem, nela também consomem, e nelas também se consomem. Não porque seja ideal, almejado, ou idílico. Há os que foram impelidos, os que se viram na necessidade, os que não veem a hora de voltar para a Aldeia. Mas há também muitos que simplesmente não têm uma Aldeia para onde voltar – excetuada talvez aquela que o aguarda nas dimensões além do mundo material. Muitos foram empurrados para lá, muitos não tiveram opção, muitos sequer conheceram uma alternativa.
Portanto, há indígenas nas cidades. Estão lá. E, ainda que possuam sua diversidade e diferença, ainda assim interagem com o espaço citadino da mesma forma que os seus demais habitantes, que, por sinal, também não formam uma concentração de iguais. E eis que essas diversidades e diferenças todas se abrem para se conhecer melhor – e, quem sabe, se respeitar mais a partir daí – através de uma bela proposta museológica na cidade do Rio de Janeiro.
Na terça-feira 16 de maio foi inaugurada a exposição “Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena”, no Museu de Arte do Rio de Janeiro, contando com mostras dos povos Puri, Pataxó, Guarani, bem como das diferentes etnias que habitam a Aldeia Vertical (parte das quais são também os antigos moradores da Aldeia Maracanã; uma história tão incrível que, sozinha, já mereceria ser objeto de uma crônica…Mas talvez não seja essa). A exposição ficará disponível para a visitação por nove meses, e foi pensada com bastante liberdade por cada um dos grupos retratados, com o objetivo de ser capaz de mostrar algo que satisfizesse, principalmente aqueles que estão nela representados.
E quero destacar de antemão esse ‘detalhe’, nada pequeno, e também bem pouco detalhe: esses grandes templos das culturas pretéritas, os museus, costumam cristalizar a existência das culturas em um certo passado, perpassado por certos ideários de tradição e fixidez que, conforme – muito – bem abordado pela Crônica do Jairo Lima nesta semana, não se coadunam com o dinamismo de culturas vivas. Nesse sentido, a iniciativa do MAR de não apenas apresentar o que existe dos Puri nos livros, mas também convidá-los para uma curadoria participativa, na qual indicariam aquilo que pretendiam que fosse mostrado de si mesmos é uma positiva quebra desse paradigma tradicional.
“Veja bem”… não estou aqui querendo desacreditar da importância que os Museus têm, nem de seu papel na difusão e na guarda do patrimônio histórico e cultural. Embora seja claro que existem sim algumas péssimas experiências a reportar, mundo afora, acerca da experiência de visitar um museu, sobretudo quando você faz parte da cultura ali retratada como ‘exótica’ àquela que é a ‘dona do local’, também acredito que este tipo de espaço pode ser capaz de estabelecer diálogos e pontes entre mundos diversos, e que através dele é possível falar sobre a diversidade humana, e a beleza que existe e é possível de ser encontrada na diferença.
Eu, que já trabalhei em um museu, no qual realizei certamente uma parte significativa dos melhores e mais prazerosos trabalhos de minha vida, não estaria jamais entre os inquisidores inflexíveis dos espaços museais. No entanto, penso que é preciso sempre manter um olhar crítico acerca daquilo que existe de defeito entre as qualidades possíveis de se atribuir a um espaço de memória. E, a crítica aqui reside justamente nesse arquétipo da memória, tal qual ela é pensada no contexto ocidental, onde existe algo que constitui um passado, que fica necessariamente para trás do que está no presente, e precisa por isso ser registrado, guardado, etiquetado e rememorado em um formato bastante fechado e patronizado.
É óbvio que esse resultado não é proposital. Não é a colocação em prática de um plano maligno. É só a aplicação de um modelo, que tende a colocar em termos de ‘linhas do tempo’, ‘percurso expositivo’, ‘ordem cronológica’ uma sucessão de fatos que, talvez, no curso em que realmente ocorrem não estariam de fato tão bem separados e compartimentados assim.
E entre as culturas indígenas, não é assim? Ora vejam só: Não, não é necessariamente assim. Pelo menos não de todo. Pelo menos não muito. Talvez porque a memória ancestral dos povos originários não tenha sido escrita em livros, ela também não se faz tão petrificada e estática que não possa estar viva. Pelo contrário, o passado está próximo e é tão mutável quando são os corpos. Tão vivo quanto estão vivos estes que hoje caminham sobre a terra neste tempo.
Eis que por isso seria um tanto quanto desconfortável uma exposição que falasse dos Puri dos livros de história. Porque nos livros de história, nós morremos. Mesmo que isso tenha sido uma mentira, é isso que os papéis dizem, e é bem difícil lutar contra essa inimiga chamada ‘história oficial’. Isso porque essa senhora é alimentada e armada por uma série de forças, tais como o preconceito, a dominação, a negação, a tentativa de assimilação, o etnocídio. Como já disse outras vezes, fomos declarados extintos há mais de um século. Não porque tivéssemos deixado de existir, mas pelo fato de que esta medida era relevante para atender à intenção de usurpação de nossos territórios ancestrais.
Como também cabe lembrar, não temos ainda um território reconhecido, até porque ainda nos encontramos travando uma etapa anterior na luta, reivindicando o reconhecimento identitário. E sei que esse papo de ‘reconhecimento’ pode soar cansativo para quem nunca precisou provar que existe. Desculpem, para nós também é bastante cansativo. Acreditem!
Vale também lembrar que esses ‘privilégios’ de ter sua identidade e existência contemporânea negada não são um legado exclusivamente Puri: Tupinambá, Gamela, Xakriabá, Guarani, e tantos, tantos outros povos, apenas para citar os casos mais recentes – ou permanentes, ou evidentes – de negação de identidade. E é importante que ninguém se esquive do fato de que os processos de negação são extremamente violentos. Ninguém pode ser já tão esquecido que não possa se recordar do ataque contra os Gamela, há cerca de 15 dias atrás, onde o ponto mais repisado pela ‘opinião pública’ não era a selvageria dos ataques, a omissão conivente e coautora da polícia, ou o envolvimento ativo de um parlamentar. Não! Quando um delegado de polícia tenta explicar o inexplicável sobre a não intervenção no ataque alegando que ‘não se tem certeza de que sejam mesmo índios’, e quando um Ministro da Justiça-pra-quem? faz uma declaração pública que contém a palavra ‘supostos’ precedendo o termo indígenas, e ainda quando pessoas têm a leviandade de tentar minimizar a selvageria baseando-se no fato de que membros não chegaram a ser arrancados totalmente do corpo, acredito que não seja necessário dizer muito mais sobre o tipo de horror que começa com a negação de identidade, e alcança, por fim, a negação da própria humanidade.
Pois bem, voltemos à proposta de Exposição do MAR. Como contei aos bocadinhos ao longo de alguns de meus textos, eu participei um pouco e à distância do grupo de planejamento desta mostra. Para tanto, me fiz de ‘arquiteta súbita’, desenhando alguns esquemas de planta-baixa com a disposição dos elementos que iriam compor a parte Puri da exposição. Dei pitacos, sugestões, participei de votações de conteúdo, enviei material e botei legendas em uma série de vídeos que compõe o canal de nosso movimento no Youtube. Essas poucas atividades, escolhidas dentre as que eu poderia conciliar com essa coisa lendária que dizem que existe, mas eu duvido, chamada ‘tempo livre’ foram a parte do sanná (caminho) que eu pude percorrer com meus parentes nesse momento em que me encontro fisicamente tão longe deles e das terras que consideramos ancestrais (fisicamente… só fisicamente!), em torno desse objetivo, de reunir muito mais do que ‘nossa história pretérita’, mas de nos mostrarmos presentes e vivos.
Já comentei também em uma crônica anterior que os Puri são alkeh poteh¸ poeira das estrelas, bem como filhos do assassinato de uma Árvore Ancestral que explodiu em diamantes e se espalhou pela terra. E, bem, quando ocorre um evento tão drástico como uma explosão na história ancestral de um povo, nunca se sabe o quanto esse povo pode se espalhar não é mesmo? (Até no Acre, tem Puri, vejam só!) E não posso me furtar a mergulhar na profundidade de uma compreensão cosmológica que fala de poeira, explosões, fogo e estrelas. Astrofísica pura, percebem? Conforme cientificamente argumenta-se, a poeira cósmica é resultando da morte de planetas e estrelas, e é também o componente para o nascimento de novos astros, quando são atraídos pela forte gravidade que transforma a dispersão em aglutinação, tornando-se novamente um núcleo sólido que viverá por tanto tempo quanto for destinado. Esse é um processo que não tem fim ou início, visto que morte e vida se refazem e desfazem na eternidade.
É um postulado científico, oriundo da ciência ocidental, esse conjunto de teorias que tende, eu não ignoro, a refutar visões de mundo como as de meu povo, porque essas não são necessariamente comprováveis por seus testes e fórmulas. Verdade. Mas é verdade também que para não quedar-se preocupado com um problema que não existe, basta que a ciência ameríndia seja encarada em sua totalidade, sem comparações desnecessárias. E aí é que está a chave: uma visão de mundo, uma cosmologia, uma ciência própria não é feita para ser comparável ou comprovável por padrões que não os seus próprios. E, a despeito disso, me vejo emprestando um esquema dessa ciência raion (não-índio) para falar de conceitos da cosmologia Puri… Pois é, sei que parece algo contraditório. Mas, antes de tudo, devo dizer que uma das coisas que as concepções indígenas têm a ensinar é que não existe nada de errado na contradição. E, depois disso, eu só quero dizer que, na minha opinião, uma das coisas mais bacanas que Lévi-Strauss já disse é que a ciência é o grande mito da cultura ocidental, e sendo que a cultura, a história e a ciência ameríndia é sempre tratada como mitologia, eu nada mais estou fazendo do que comparar e aproximar mitologias… Tá bom? Então tá bom.
Enfim… Talvez algum dia apareça um astrofísico que refute e apresente uma nova conclusão sobre a poeira cósmica, já que a ciência, como toda boa mitologia, também é uma sucessão de morte e vida de teorias. Mas ainda assim, na vigência deste postulado, creio que é belo de pensar que esse a natureza cósmica que foi contemplada nos astros anima um povo que já foi carne, sangue e terra, e antes disso fogo e rocha, e que, mesmo quando desfeito, pode se refazer, e está aqui vivo.
Porque da estrelas, e da poeira delas, também se fazem os caminhos.
E é assim que, mesmo que tenhamo-nos espalhado, mesmo que tenhamos sido varridos das páginas oficiais, ainda e apesar de, existe algo de ancestral que chama de volta, que nos faz um grupo, um povo, uma unidade. Talvez uma unidade não tão convencional como aquela que esperam as pessoas acostumadas aos modelos e conformidades que foram transmitidos pelos livros e os museus… talvez não haja mais uma aldeia tradicional para se voltar cantando o “Ho bugure” ao fim da luta. Talvez não haja hoje, e não sei se haverá de novo no futuro.
Talvez a reunião seja feita através de um app de comunicação que transmite a todos ao mesmo tempo um canto em nossa língua. Talvez a conversa na língua precise ser muito entrecortada da língua das luzes invasora e imposta, que roubou muito da nossa comunicação. Talvez, para os que necessitam aprender do zero, seja sempre um exercício carregado de frustração e pesar. Talvez aliás, frustração seja um significante a mais do verbo existir. Porque as lacunas, os vazios, os hiatos, os ‘eu não sei’ são agora uma presença constante. E sim, o que temos é pouco, se precisarmos fazer comparações. Mas o que temos também é muito, quando a opção seria o nada, quando a alternativa seria assumir um não-ser que nos é imposto pelos e odiosos ditos ‘não é mais índio’, ‘não existe mais’, ‘está extinto’.
O problema, senhoras e senhores, é que há alguns anos atrás eu descobri que o ‘não é mais índio’ significa não é mais nada. E, não ser nada, é uma aridez impossível. É morte certa.
E nós escolhemos viver. E insistimos nisso, com toda a teima e tenacidade que faz de nós, originários, o povo mais condenado e resistente em toda a terra. Povo que se adapta, se reinventa, revive, fecunda terras áridas e avisa sempre: não vamos desistir, inclusive porque essa palavra não está em nosso vocabulário. Pelo contrário, pó de estrelas, cerne de diamantes, crias das explosões e do fogo, se refazendo de si mesmos, renascidos e sempre vivos.
Motivos para desistir, eu sei que há sim. Vários. Externos e internos…
Há quinze dias eu chorei um texto sobre o ataque ao povo Gamela, e naquele dia, eu confesso, vacilei… Não seria simplesmente mais fácil esquecer? Desistir, fazer de conta que foi tudo um pesadelo, do qual posso acordar? Mas não é simples assim. Não é simples como trocar de roupa. Não existe nenhuma chance de esquecer, ignorar ou fazer de conta que não é comigo. Porque é sim, é totalmente comigo. E talvez seja isso que escapa à percepção daqueles que acreditam que identidade é algo tão frívolo como uma roupa que você veste, mas pode desvestir, jogar fora e trocar por outra. Eu já disse isso, de outra maneira, mas cabe repetir, uma vez mais: a diferença entre assistir o documentário Martírio e vive-lo é colossal, e desde o momento em que você passa a viver deste lado, não tem volta. Mas não tenham pena de mim, ou de nós… Não é o Martírio que me desespera. O que me desespera é o ódio à diferença, e a indiferença à dor. Inclusive porque, não fosse por causa dessas coisas, o martírio em si não existiria. Ou, dito de outra forma: não existe nada de errado em ser indígena; o que existe de errado é ser odiado por ser indígena. Dá para entender?
E cá estamos… Como participes da curadoria que nos apresenta tal qual somos hoje, em um dos museus mais importantes do Rio de Janeiro, o mesmo estado em que viveram alguns de nossos ancestrais, e onde outrora se encontravam algumas das terras que foram usurpadas. Nesse sentido – talvez em todos os sentidos – não é realmente pouca coisa a possibilidade de figurar nessa exposição que fala sobre nossas existências plurais e contemporâneas, sobre o que “fazemos hoje do que fizeram conosco”, para ser um pouco Sartreriana. E o resultado, acreditem, é muito bonito de se ver!