Cai, não cai… mas, afinal, o que deve cair?

A presente crise não clama por mais democracia representativa, mas indica seu mais evidente limite, o que exige urgentemente uma nova forma política. Há uma alternativa que se abre na medida em que a crise política se converte em crise do Estado.

Por Mauro Luis Iasi, no blog da Boitempo

“O Direito à revolução é o único direito histórico real,
o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos”.
Friedrich Engels (1895)

“Tudo pode acontecer, inclusive nada”
Barão de Itararé

O usurpador balança e se vê na ponta da prancha do navio pirata que pensava comandar. Cobra lealdade de seus colegas saqueadores e usurpadores e tem dificuldade em manter ao seu lado até mesmo o papagaio que vivia pousado em seu ombro. A luta intestina entre os segmentos que levaram a cabo a interrupção do mandato presidencial eleito em 2014 chega ao ponto de fritura e ameaça a estabilidade necessária para implementar as reformas contra os trabalhadores.

A democracia representativa faliu, mas não pelos motivos que a teoria política clássica pensava. Montesquieu, por exemplo, buscava o equilíbrio e a moderação e pensava que a principal causa das instabilidades e da corrupção da República era a ambição do povo em tomar decisões e resoluções ativas. O povo, segundo o ilustre Baron de La Brède et de Montesquieu, deveria contentar-se a apenas indicar seus representantes e nada mais, deixando inteiramente a cargo deles a elaboração das leis e sua implementação ao executivo, bem como o ato de julgar a quem lhe cabe. Mas, por que?

Segundo nosso versado Barão, em qualquer Estado há pessoas eminentes, bem nascidas, detentoras de propriedades e de riquezas… E não seria razoável esperar delas que vivam entre o povo apenas com o direito a um voto como todo mundo. Essa liberdade seria sua escravidão e eles não teriam nenhum interesse em obedecer as leis, “porque a maioria das decisões seria contra eles” (Montesquieu, O espírito das leis, Livro 11: “Capítulo VI: Da Constituição da Inglaterra”).

A solução imaginada é que no Estado exista um “corpo que tenha o direito de refrear as iniciativas do povo”, assim como esse povo teria o direito de refrear as ambições deste corpo. Assim se concebe o jogo de forças entre o executivo que governa, mas não pode fazer a lei, e o legislativo que faz a lei mas não pode aplicá-la. Tal engenharia política, à época de Montesquieu e Locke, se materializava em duas casas distintas – uma dos nobres, outra do povo – nas quais fosse possível produzir deliberações fundadas nos pontos de vista distintos de cada classe. O executivo deveria levar em conta os dois interesses e não somente o de um ou o de outro e, em caso de dúvida, o julgamento caberia a um terceiro poder, o de julgar. Esse, por sua natureza deveria ser “nulo”, isto é, não poderia expressar nem uma vontade nem outra, mas somente a Lei. Em casos de impasse, o Rei representaria o interesse geral, acima dos interesses particulares, como um moderador. E, assim, tudo aconteceria no melhor dos mundos e da melhor forma possível.

No entanto, continua Montesquieu, “poderia acontecer que algum cidadão, nos negócios públicos, violasse os direitos do povo, e cometesse crimes que os magistrados estabelecidos não soubessem ou não quisessem punir”. Ora, nestes casos quem poderia acusar e julgar o malfeitor? Os juízes poderiam acusar, pois expressariam o direito do povo de acusar o mal feito, mas não julgar, porque “os grandes estão sempre expostos à inveja; e se fossem julgados pelo povo, poderiam correr perigo”. Eis que surge uma ideia incrível: eles teriam o direito, como qualquer um em um Estado livre, de serem julgados por seus iguais – e eles não são iguais ao povo. (Em outro momento, poderemos voltar a falar da igualdade para Montesquieu; por enquanto, nos basta afirmar que, para ele, o verdadeiro espírito da igualdade, a igualdade perante a lei, está distante da “igualdade extrema”, como o céu da terra).

Dessa forma, os “nobres” não podem ser julgados pelos tribunais ordinários da nação, mas por aquela parte do corpo legislativo composta por nobres, ou seja, seus iguais. É disso que se trata quando falamos de foro privilegiado nos dias de hoje, trata-se de um privilégio de ser julgado por seus pares, no caso presente, pelos colegas políticos e pelas instancias superiores do judiciário.

A democracia se corrompe, na concepção do barão proto-burguês, quando não apenas o princípio da igualdade se perde, mas, principalmente, quando impera o espírito da “igualdade extrema” que é assim descrita pelo pensador em questão: “cada um quer ser igual aos que escolheu para comandá-lo; porque, nesse caso, o povo, não podendo suportar o próprio poder em quem confia, quer fazer tudo por si mesmo, deliberar em lugar do senado, executar em lugar dos magistrados e despojar todos os juízes” (Montesquieu, O espírito das leis, Livro 8: Da corrupção do princípio da Democracia). Assim, não poderia haver mais virtude na democracia.

Ora, ora, ora, meu bom Barão. Não foi qualquer cidadão que violou os direitos do povo e cometeu crimes, foi o usurpador que ocupou o lugar da Presidente eleita. A particularidade da situação que se expressa em uma crise política que se avizinha de uma crise de Estado, se dá pelo fato que, além dos magistrados não demonstrarem muita vontade em punir, existe o grande problema do que colocar no lugar do delinquente a ser deposto. As alternativas apresentadas são: assume o presidente da Câmara, que teria trinta dias para chamar uma eleição indireta, deliberada pelo Congresso, de um novo mandatário a ser escolhido em 90 dias; eleições diretas antecipadas; ou uma espécie de governo provisório no qual a presidente do STF, Carmen Lúcia, no caso, estaria à frente (indicada pelo Congresso ou por um outro meio qualquer). Também se cogita a figura execrável do senhor Nelson Jobim, que sintetiza em si as três dimensões do parlamentar, ministro do executivo e membro do STJ.

O problema, como querem alguns, não pode se resumir ao que estabelece a Constituição, não apenas pela tensa relação entre o legal e o legítimo, mas pela natureza do fato que se busca enfrentar. O problema para as classes dominantes e setores de classe em franca disputa pelo controle do governo é o da estabilidade que é essencial para a imposição das reformas contra os trabalhadores, notadamente a reforma trabalhista e da previdência, mas não só. A questão é que a saída constitucional (afastamento e eleição indireta pelo Congresso) parece não levar à estabilidade necessária. Isto é, a crise se alastraria até 2018.

Diante da decisão momentânea do usurpador não renunciar, outro problema se coloca. Um processo de impedimento se alastraria por um tempo considerável (a presidente eleita em 2014 teve o seu processo de impedimento aberto na Câmara dos Deputados em 2 de dezembro de 2015, foi afastada em 12 de maio de 2016 e cassada só em 31 de agosto de 2016). Uma eleição indireta ou direta teria que se dar com um intervalo de tempo que poderia variar de 90 dias até algo próximo de 150 dias. Nos parece muito tempo para um vácuo de poder na temperatura de crise política atual.

Tudo indica que se gesta uma alternativa que responda a essa variante, o tempo. No entanto, ao lado disso se apresenta o fato que a alternativa que resolva esse vetor inviabilize outro vetor essencial: a legitimidade necessária para enfrentar a instabilidade. Neste ponto, as coisas se complicam, porque todas as alternativas são problemáticas para os setores dominantes em disputa.

O presidente da Câmara, que assumiria para convocar as eleições, está envolvido na mesma denúncia que atingiu o usurpador. E pior: o Congresso que elegeria o presidente interino, em sua maioria, também está chafurdado na mesma lama que emporcalha os dois primeiros. Afastar um presidente por um crime de corrupção passiva (entre outros) e dar aos políticos envolvidos no mesmo crime o direito de nomear um sucessor é, para dizer o mínimo, complicado.

O teor da denúncia atinge 1829 candidatos e 28 partidos – dos 32 partidos registrados no TSE em 2014, somente quatro não estão envolvidos: o PCB, PSOL, PSTU e PCO. Isso significa que, dos 28 partidos com representação no Congresso, 27 estão envolvidos. Em um pais sério, as eleições de 2014 deveriam ser anuladas e os atos tomados pelos governantes e parlamentares desde então considerados nulos. Como, então, atribuir a esse Congresso o direito de indicar um sucessor para o usurpador?

Ainda que não questione a legitimidade de quem clama pela antecipação das eleições, existe um problema de fundo ignorado. Todas as distorções presentes no pleito passado estão inalteradas e, em certo sentido, agravadas pela mini reforma política imposta. Desde o financiamento privado de campanha, passando pelo poder dos meios de comunicação e a ingerência dos grandes interesses econômicos, até as máquinas partidárias e o uso do poder público (municipal, estadual e federal).

Do ponto de vista das classes dominantes, a antecipação abriria um cenário de agravamento da instabilidade – ainda que, no médio prazo, esse poderia ser o caminho para legitimar as medidas que agora se impõem com as ditas reformas. Para as classes dominantes e seus aparelhos (entre eles a Rede Globo), o central é garantir as reformas, nem que para isso seja preciso rifar o usurpador que eles tanto apoiaram.

Desta maneira, não me parece que as classes dominantes estejam, pelo menos agora, em um beco sem saída. Há pelo menos duas saídas para o atual beco.

Quando olhamos o quadro como um todo (a questão da legitimidade e a urgência do tempo), nos parece que a ordem prepara uma solução pelo alto. De certa maneira, antecipamos esta possibilidade na coluna “O caminho da ditadura”, publicada aqui no Blog da Boitempo em 24/11/2016, quando analisávamos a crise e as alternativas postas que poderiam colocar em risco a ordem em um cenário no qual ainda prevalecia a luta interna entre os setores vitoriosos do golpe. Naquela oportunidade, ponderávamos que os militares não expressariam, como em 1964, esta personificação do Estado colocando-se acima dos segmentos em disputa, mas sim outra instância do Estado burguês. Dizíamos:

“Os indícios apontam para outro sujeito, que busca se credenciar como forma universal, acima das disputas particulares, em nome da substância do capital e da ordem: o Judiciário. O direito reivindicaria sua natureza não como instrumento do Estado, mas como ele próprio Estado. Não apenas como uma relação entre o direito público e fato político, mas o próprio direito como fato político. Caso isso se confirme estaríamos de forma límpida no campo do estado de exceção transformado em regra, chancelada por quem de direito”.

O fato das denúncias aparentemente pouparem o judiciário (o que é de certa forma estranho) acabou preservando essa esfera. E digo que é estranho pois se acompanharmos a operação Mãos Limpas, da Itália, por exemplo, veremos que o judiciário era um alvo estratégico das organizações criminosas envolvidas. O judiciário pode legitimar a alternativa indireta pelo Congresso ou assumir diretamente a condução de um governo interino até 2018. Carmen Lúcia pode estar seduzida por esta alternativa, mas seus pares hesitam em assumir diretamente o ônus de “perder” a suposta imparcialidade. Essa é uma das saídas. O ônus a pagar é o custo de uma imposição pelo alto e a necessidade de enfrentar as resistências que se farão presentes – e aqui não podemos rejeitar o cenário, nem um pouco absurdo, de uma tentativa de cancelamento das eleições de 2018.

De qualquer maneira, em meio a tanta incerteza, aparece uma quase unanimidade: Henrique Meirelles, o escudeiro maior das reformas antipopulares em favor do capital, seguiria no comando da economia.

Isso quer dizer que as facções da burguesia divergem sobre quem deve assumir o governo, mas não sobre o que fazer com ele. Esse campo enfraquece a bandeira das eleições diretas uma vez que a candidatura Lula não se posiciona inequivocamente sobre essa questão, ainda que tudo indique que a pretensão de remendar o pacto entre as classes aponte na direção de manter Meirelles (que já foi seu ministro) ou quem mantenha o que ele faz hoje. Esta, infelizmente, pode ser a outra saída, mas insegura que a primeira, mas pode ser aquela que resolveria, aparentemente, o problema da legitimidade com um ônus menor.

Entretanto, o gênio da extrema direita colocada para fora da garrafa como meio de operar o golpe contra o governo passado é um problema nesse cenário. O pais está dividido e só se agravará a fissura no cenário de um retorno de Lula, com ou sem a intenção de repactuar com as classes dominantes.

O paradoxo, para a esquerda, consiste no seguinte problema. Os trabalhadores só têm um único caminho: a resistência contra as reformas. E o campo para isso, como se demonstrou no dia 28 de abril, é a Greve Geral e a luta nas ruas. Entretanto, ainda que valorosa e necessária, a ação de resistência pode contribuir com duas estratégias que em última instância são contrárias aos interesses dos trabalhadores: de um lado, favorecer a insolvência do governo usurpador (o que é muito bom) e propiciar a saída por cima promovida pela ordem (o que é muito ruim); por outro, criar as condições para, antecipando ou não as eleições, viabilizar a alternativa de Lula, que aponta para a tentativa de remendar o pacto social que um dia promoveu (o que não é nada bom).

Nossa alternativa deve ser criar as condições para barrar as reformas, seja por qual meio venham a se impor. Nosso dever é afirmar que a presente crise não clama por mais democracia representativa, mas indica seu mais evidente limite, o que exige urgentemente uma nova forma política. Existe uma terceira alternativa que se inscreve na medida em que a crise política se converte em crise do Estado. Mas quem a apresentou, interessantemente, a colocava como um perigo terrível a ser evitado. Sim, é aquela apresentada por Montesquieu em 1748: cada um querer ser igual ao que escolheu e comandá-lo; deliberar em lugar do Senado, executar em lugar dos governos e despojar todos os juízes. Enfim, governar a si mesmo. Chamamos isso de Poder Popular. O Barão pira… existem outros que se inquietam.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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