“A polícia chegou atirando”, dizem testemunhas que conseguiram fugir antes do massacre de 10 trabalhadores. Depoimentos contrariam versão de confronto da polícia
Os policias militares do Pará teriam rendido e torturado os trabalhadores rurais sem terra antes de disparar tiros fatais contra eles, relatam os sobreviventes do massacre que tirou a vida de dez pessoas no sudeste do Pará. O crime ocorreu no dia 24 de maio na fazenda Santa Lúcia, área de Pau D’Arco, então ocupada por posseiros.
A Repórter Brasil colheu o relato de dois deles e teve acesso ao depoimento de um terceiro. Todos deram depoimentos ao Ministério Público Federal, que já ouviu seis de quinze sobreviventes. Há dois considerados como desaparecidos.
“A gente ouviu alguns colegas chorando antes de morrer”, diz sobrevivente
As revelações não apenas contestam a versão da Polícia Civil e Militar, que declarou ter sido recebida na fazenda a tiros, como sugere que o crime envolveu tortura e crueldade.
A versão do confronto fora questionada desde o início porque os policiais não apresentavam ferimentos, enquanto os dez trabalhadores foram levados mortos ao hospital. A movimentação dos corpos foi apontada como adulteração do local do crime pela subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, que participou da perícia.
Os relatos são fortes.
Tudo começou quando o grupo de posseiros relata ter visto o comboio da polícia chegando, de longe, e correram para se esconder na mata fechada. Foi quando eles abriram uma lona preta para se proteger da chuva, que a polícia os teria surpreendido, aos gritos de: “É a polícia, porra. Quem correr, morre”.
Os sobreviventes fugiram sob fogo, alguns alvejados de raspão na cabeça ou pelas costas. “A polícia chegou atirando”, foi frase repetida por mais de um sobrevivente. Um deles diz ter ouvido: “pode matar. Corre atrás, não é pra deixar um vivo”.
“Eu fiquei perto, muito perto, vi o olhar de um companheiro que caiu quase por cima de mim quando levou o tiro. Era um olhar triste”, diz outra testemunha. A maioria dos sobreviventes não conseguiu ver o que aconteceu, apenas ouviu, pois tiveram que ficar escondidos. Foi o caso dos relatos seguintes:
“A gente ouviu alguns colegas chorando antes de morrer, dizendo ‘não faz isso, ninguém vai correr’”.
Segundo essa testemunha, depois de gritar e chutar cada trabalhador, a polícia atirava. Ritual repetido, na sequência, com a próxima vítima. O massacre teria durado cerca de duas horas.
“Barulho de paulada, porrada que a polícia dava. Depois matavam, um por um”, diz outro sobrevivente. “Eles humilhavam, xingavam”.
De acordo com os relatos, a maioria das vítimas tombou logo na chegada da polícia. Os que ficaram vivos teriam sido executados a queima roupa. A reportagem viu ao menos um corpo com perfuração na face.
Ao final da matança, dois sobreviventes relataram que a polícia saiu “gargalhando”, como se comemorasse uma vitória. E que os policiais fizeram varreduras com as viaturas pela fazenda, como que à caça de sobreviventes. A chuva pode ter salvado os que fugiam, dificultando o acesso de carro às áreas mais isoladas da fazenda.
“Eu fiquei andando perdido, sem força, as vezes de joelhos, sempre pedindo a Deus pra ajudar” diz testemunha que buscou socorro das 8 da manhã até quase o fim da tarde.
“A versão dessa pessoa é conflitiva com a versão da polícia, mas coaduna com o que a gente encontrou no local”, diz o procurador Igor Spíndola do Ministério Público Federal ao ouvir o primeiro depoimento. Ele estava na primeira perícia no local do crime e chama atenção para diversos elementos que contrariam a versão de que os trabalhadores reagiram. “Se você investiga o caso sem a versão da polícia, você conclui que não teve confronto. Que um lado chegou atirando”, diz o procurador.
Outra evidência apontada por ele que vai contra a versão da polícia é o local do crime. Os posseiros estavam escondidos em uma mata fechada, o que daria vantagem para eles. “Se essas pessoas quisessem atirar, elas teriam uma visão maior do que a polícia tinha. Mas não há sinal de nenhum policial ferido”.
A Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informou que um inquérito foi aberto para investigar o caso e que afastou 29 policiais envolvidos na ação. Os policiais militares que estavam na operação também foram ouvidos pelo Ministério Público Federal.