Transformações no mundo do trabalho e suas implicações nas periferias urbanas. Entrevista especial com Gerardo Silva

Patricia Fachin – IHU On-Line

Para entender as mudanças que ocorrem nas periferias urbanas e metropolitanas hoje, é preciso também compreender as “transformações no mundo do trabalho”, diz o geógrafo e doutor em Sociologia Gerardo Silva à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele explica que o desenvolvimento das metrópoles esteve associado à industrialização, mas a crise do fordismo, ainda na década de 80, teve um impacto na “capacidade de significar a cidade”. “O impacto sobre as periferias metropolitanas desta mudança foi profundo uma vez que as estratégias de vida voltadas para o trabalho fabril – ou assalariado de um modo geral – desapareceram do horizonte”, diz. A consequência, avalia, é que “a possibilidade de construir um futuro baseado no trabalho estável dentro de alguma empresa é cada vez mais restrita, e, portanto, as estratégias dos trabalhadores nesses territórios periféricos estão se reconfigurando, tornando-se mais autônomas e empreendedoras (aliás, a recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre ‘Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo’ aponta algumas evidências nessa direção)”.

Hoje, diz, o trabalho é organizado “fora da fábrica”, na “metrópole”, porque “trata-se de um novo tipo de trabalho mais próximo dos processos de comunicação, inovação e criação. Um trabalho de tipo cognitivo, no qual o intelecto se torna a força produtiva por excelência. A questão é que o trabalho cognitivo ou do intelecto se nutre da vida urbana, da sua multiplicidade de experiências, da sua diversidade, dos seus lugares de encontro, das suas redes de relações, das universidades e centros de pesquisa, das manifestações culturais, inclusive e, sobretudo, das periferias”.

Gerardo Silva diz ainda que, “embora as mazelas” da vida social nas periferias “ainda permaneçam como um grande desafio para as políticas públicas”, as comunidades que vivem nesses territórios “têm se empoderado bastante e têm ganhado, sobretudo, o poder de expressar-se através da sua própria voz. Isto significa que se historicamente a periferia era vista como o lugar dos sem voz e das mediações demagógicas do sistema político, ou inclusive dos intelectuais e pesquisadores, hoje isso me parece que não funciona mais assim. As demandas e as agendas políticas das periferias estão sendo construídas pelos próprios atores que habitam esses territórios e que são capazes de dialogar, confrontar e, no limite, antagonizar com os poderes constituídos e com as formas tradicionais de planejamento de cunho tecnocrático, seja ele de direita ou de esquerda”, salienta.

Gerardo Silva possui graduação em Geografia pela Universidad Nacional de Mar del Plata, na Argentina, mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/UCAM. Atualmente é professor adjunto da área de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC – UFABC.

Gerardo Silva esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, participando do “5º Ciclo de estudos Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo. A centralidade das periferias brasileiras”, onde ministrou a palestra “Do morro ao asfalto. As novas centralidades da periferia e a metrópole policêntrica”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando se trata de discutir a situação das metrópoles e das periferias, quais são as principais questões que devem ser consideradas?

Gerardo Silva – Em termos gerais, as periferias são vistas cada vez mais como espaços de produção de cidadania. Embora as mazelas e as dificuldades da vida social nesses territórios ainda permaneçam como um grande desafio para as políticas públicas, elas têm se empoderado bastante e têm ganhado, sobretudo, o poder de expressar-se através da sua própria voz. Isto significa que se historicamente a periferia era vista como o lugar dos sem voz e das mediações demagógicas do sistema político, ou inclusive dos intelectuais e pesquisadores, hoje isso me parece que não funciona mais assim. As demandas e as agendas políticas das periferias estão sendo construídas pelos próprios atores que habitam esses territórios e que são capazes de dialogar, confrontar e, no limite, antagonizar com os poderes constituídos e com as formas tradicionais de planejamento de cunho tecnocrático, seja ele de direita ou de esquerda.

IHU On-Line – Qual é a centralidade que as periferias ocupam hoje nas cidades contemporâneas, se comparadas a outros momentos?

Gerardo Silva – O empoderamento é o que, a meu ver, faz a diferença. O empoderamento e o protagonismo. Houve um período da história das grandes metrópoles do país em que a periferia era enxergada (de maneira legítima provavelmente) como uma consequência do processo de urbanização e da migração do campo para a cidade, sobretudo para as grandes cidades. Nesse sentido, o principal problema (dos pesquisadores e dos formuladores de políticas urbanas) era sobre como fazer para integrar essas pessoas à vida urbana, isto é, como ampliar as condições de acesso à cidadania através da melhoria da habitação e do transporte principalmente. Era necessário, portanto, que o Estado interviesse pesadamente no desenvolvimento das cidades. Essas condições ainda permanecem, certamente. Porém agora as periferias exigem participar e serem escutadas nas suas demandas.

Finalizado o ciclo de expansão e crescimento rápido das grandes metrópoles, estabilizados os fatores que obrigavam permanentemente os territórios periféricos a se adaptarem a essa condição, o que veio a seguir foram reivindicações pelo direito à cidade de um modo mais abrangente que antigamente. A periferia tem agora sua própria agenda, sabe o que quer e batalha pelo seu reconhecimento.

IHU On-Line – As atuais transformações no mundo do trabalho têm modificado a vida nas cidades, nos seus diferentes espaços? Que implicações essas transformações têm gerado especificamente nas periferias?

Gerardo Silva – A compreensão das transformações no mundo do trabalho é essencial para entender as mudanças nas periferias urbanas e/ou metropolitanas hoje. A própria ideia de metrópole, no sentido contemporâneo, está associada à industrialização, ao crescimento das cidades sob impulso dos arranjos industriais da grande fábrica, geralmente instaladas nos arredores da cidade. No Brasil e na AméricaLatina em geral, essa relação entre desenvolvimento industrial e urbanização nunca foi muito equilibrada, pelo contrário. Houve industrialização, sim, porém limitada a algumas grandes metrópoles e com igualmente limitada capacidade de absorção de mão de obra ao longo do tempo (com exceção, talvez, do grande ABC paulista). Contudo, esse horizonte do desenvolvimento, que poderíamos chamar de “norma fordista”, permaneceu ativo como ordenador das ideias do planejamento urbano.

Desde a década de 1980, entretanto, a norma fordista entrou em crise e nunca mais recuperou sua capacidade de significar a cidade (a não ser na China, mas não estou muito certo se esse tipo de industrialismo pode ser chamado de fordista). O impacto sobre as periferias metropolitanas desta mudança foi profundo uma vez que as estratégias de vida voltadas para o trabalho fabril — ou assalariado de um modo geral — desapareceram do horizonte. Em outras palavras, a possibilidade de construir um futuro baseado no trabalho estável dentro de alguma empresa é cada vez mais restrita, e, portanto, as estratégias dos trabalhadores nesses territórios periféricos estão se reconfigurando, tornando-se mais autônomas e empreendedoras (aliás, a recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo sobre “Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo” aponta algumas evidências nessa direção).

IHU On-Line – Na última entrevista que nos concedeu, ao comentar as manifestações de 2013, o senhor disse que “o que está em jogo nas cidades é a dimensão produtiva da metrópole e não apenas uma simples melhoria do transporte público” ou de pautas similares. Pode nos explicar essa ideia? O que seria a dimensão produtiva da metrópole e que disputas existem em relação a esse aspecto?

Gerardo Silva – Em termos estritamente marxistas, fora do chão de fábrica (lugar de extração da mais-valia) não existe trabalho produtivo. Existiriam, sim, as chamadas “condições gerais de produção” (equipamentos, infraestruturas e serviços que tornam possível o ciclo produtivo da mercadoria) e os “espaços de reprodução” (consumo e reposição de energias da classe trabalhadora). Ou seja, a cidade se organiza em torno da fábrica (no caso, da grande fábrica) para tornar possível as relações sociais capitalistas. Trata-se de uma relação conflitiva, evidentemente, mas é essa a finalidade. O que acontece, porém, quando a manufatura deixa de ser o elo mais importante da cadeia de valor ou, dito de outra maneira, quando o chão de fábrica, outrora núcleo duro da acumulação capitalista, é jogado para o escanteio? O que garante ainda a produção de riqueza? Bom, eu acredito que o trabalho fora da fábrica, na metrópole. Trata-se de um novo tipo de trabalho mais próximo dos processos de comunicação, inovação e criação. Um trabalho de tipo cognitivo, no qual o intelecto (o “intelecto geral” que falava Marx nos Grundrisse) se torna a força produtiva por excelência.

A questão é que o trabalho cognitivo ou do intelecto se nutre da vida urbana, da sua multiplicidade de experiências, da sua diversidade, dos seus lugares de encontro, das suas redes de relações, das universidades e centros de pesquisa, das manifestações culturais, inclusive e, sobretudo, das periferias. É nesse sentido que falamos da dimensão produtiva da metrópole que, no limite, vem substituir o chão de fábrica.

IHU On-Line – Como se formula e executa, em geral, o planejamento e a gestão do território nas grandes cidades hoje? Nesse sentido, que aspectos deveriam ser considerados para um bom planejamento e gestão do território em uma cidade?

Gerardo Silva – Trata-se de um momento difícil para o planejamento das cidades. Não existem mais critérios unificadores de intervenção urbana através do planejamento. Por um lado, ainda temos os problemas clássicos de saneamento, habitação e transporte. Isso ainda é um problema nas nossas cidades. Por outro lado, entretanto, para além desses problemas clássicos, as agendas são conflitantes. Acredito que é preciso prestar mais atenção a essas agendas, aprender a lidar com elas. Como fazer emergir dos territórios, em particular dos territórios periféricos, demandas singularizadas e específicas que se correspondam com as novas formas de organização do trabalho na metrópole? Quem são os atores que estão operando essa reconfiguração das estratégias de que falávamos anteriormente? O que eles têm a dizer e a oferecer? Creio que seja praticamente impossível responder a essas perguntas com os velhos instrumentos de planejamento.

Talvez o que a metrópole esteja precisando seja de menos planejamento e mais diálogo entre os atores, mais canais de comunicação e de acordos, e não de consensos vindos de cima para baixo através de planos ou projetos elaborados por especialistas, sejam eles participativos ou não.

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