No Taqui Pra Ti
“A ciência precisa de uma dose de anarquismo teórico, porque
regras excessivamente rígidas impedem seu desenvolvimento”.
(Paul Feyerabend – “Contra o Método” – UNESP, 2011)
Meus camaradinhas, ninguém me contou. Eu vi. Nesta quinta-feira (01) à tarde, Exu baixou na Uerj. Eu estava lá e ouvi o som dos tambores e o arfar do sopro dos encantados. Vi o senhor dos caminhos chutar o pau da barraca, escoltado por mandingueiros, macumbeiros, jongueiros, capoeiras, poetas feiticeiros e rezadeiras, com a benção de todos os orixás. Se a mídia não ignorasse a universidade, teria enviado repórteres, locutores de rádio, câmeras e tv para cobrir fato tão relevante não só para os iniciados no baticundum, mas para toda a sociedade brasileira. Se não o fez, faço-o eu, dando notícia aqui neste Diário do Amazonas.
O que é que Exu foi fazer na Uerj, cujos professores e funcionários estão com os salários atrasados? (Gargalha). Sua presença se deu na oferenda de um ebó epistemológico em forma de tese – “Exu e a pedagogia das encruzilhadas” – defendida por Luiz Rufino Rodrigues Jr. diante de um auditório lotado com gente sentada no chão, sob o olhar amoroso do seu Luiz e da dona Maria. Um senhor acontecimento.
Fiquei tão encantado com a leitura das quase 300 páginas, que sai, eufórico, nas últimas semanas, anunciando a boa nova para os mais de 200 alunos das seis disciplinas que estou dando nesse semestre na Uerj e na Unirio. A empolgação foi tal que não me contive e – juro – falei da tese com deus e o mundo e até com o porteiro do meu edifício, que me olhou como se eu fosse um profeta. Podem perguntar dele.
O encanto da tese
O que me encantou foi a originalidade. O autor fez o que faz um bom pesquisador: dialogou com os phds – os phodões nacionais e estrangeiros que teorizaram sobre o tema e estudaram a questão. Para não arrombar portas já abertas, passou pente fino em todos eles e os submeteu ao crivo da crítica. Mas foi muito além. Cruzou a produção acadêmica com narrativas míticas (itãs), louvações (orikis), pontos cantados, rezas, máximas filosóficas, versos, saberes transmitidos por tambores nos terreiros de candomblé, umbanda, macumba, jongo, rodas de capoeira, esquinas, ruas, feiras, mercados, bares e “no bate-perna e emenda-conversa com sujeitos comuns”.
Uma vez que a ciência sempre teve um tanto de macumba e que a macumba vem carregada de saberes, Rufino percebeu a presença dessas forças exusíacas no pensamento dos autores que leu. É dessa forma que Exu baixa em Fanon e faz de Bakhtin seu cavalo de santo, sem o qual o filósofo russo jamais pensaria a cultura popular na Idade Média (Gargalha). Walter Benjamin “pega um santo”, ou melhor, “abholen heiliger”? As palavras feiticeiras, a ginga de jogador e o conhecimento do riscado desses teóricos permitem que Rufino construa sua rede conceitual, forjando uma tese em encruzilhadas.
Mas a originalidade não reside apenas nos procedimentos metodológicos que conferem rigor à abordagem do autor. Ele inova também na forma revolucionária de expor, com um texto refinado, de qualidade literária, cuja leitura nos faz perder o fôlego. Um dos pontos altos da tese é a linguagem, que traduz a cosmologia dos terreiros para a escrita e faz isso com muita força, rompendo com o academicismo por vezes enfadonho (gargalha). A tese, cujos capítulos estão divididos em cinco esquinas e na saideira, é realmente um ebó, com estrutura tecida nos rituais dos terreiros.
Mas afinal o que vem a ser essa pedagogia das encruzilhadas, que vai dar o que falar? Exu já foi estudado por várias disciplinas – antropologia, história, psicologia, estudos culturais – mas não tem sido abordado sistematicamente no campo da educação. O que Exu tem a ver com a educação? Saberemos melhor se os cursos de pedagogia introduzirem no seus currículos a disciplina Pedagogia da Encruzilhada.
Exu, o pedagogo
Rufino parte do fato que o colonialismo, com sua pedagogia racista, destroçou os corpos de negros e índios, nos desmantelando enquanto seres, submetidos a uma política de subordinação, encarceramento e morte. Impôs o conhecimento ocidental – que é particular – como se fosse universal, legitimado por “uma ciência que se reivindica como única e come na mesma cumbuca que o colonialismo”. Discriminou assim todo e qualquer outro saber, satanizando os rituais e as formas em que eles circulavam com o objetivo expresso de apagá-los. Cometeu, dessa forma, um epistemicídio e um glotocídio, detonando línguas e saberes que nelas circulavam.
Os países da América deixaram de ser colônias no séc. XIX, mas o colonialismo nos legou a herança da colonialidade, que é mais profunda e duradoura, atravessa as repúblicas, suas legislações e suas políticas educativas, persistindo até os dias atuais com a manutenção de desigualdades e injustiças. A colonialidade se apodera de nossos corações e mentes e – nos diz Rufino – emerge como o carrego colonial que nos espreita, ofusca e desencanta.
Uma das consequências de olhar Exu como capiroto é a blindagem cognitiva que nos aterroriza desde a infância, nos cega e nos impede de acessar os saberes ancestrais capazes de melhorar nossa qualidade de vida, o que é um enorme “desperdício de experiências”. Aconteceu também com os índios, que tiveram satanizados suas divindades, seus heróis civilizadores, como Jurupari e Anhanga, cujos saberes foram decepados e jogados na lata do lixo pelo fundamentalismo do colonizador.
Mas se a colonialidade persiste nas bancadas evangélica e ruralista do parlamento e na “escola sem partido”, a resistência a ela também continua, firme e forte, em todas as frentes de luta, forjando nossa capacidade de resiliência e transgressão, na guerrilha epistemológica contra o racismo e contra a injustiça cognitiva. Esse combate abre a esperança de recuperarmos os diferentes saberes, subterrâneos e clandestinos, convivendo com suas lógicas diversas, como um compromisso em defesa da vida em sua integralidade. É nesse processo denominado de decolonialidade que entra Exu, aquele que é a potência que destrói para construir.
Transgressão abençoada
A pedagogia da encruzilhada – nos anuncia Rufino com ousadia – se sustenta justamente na figura de Exu, o transgressor, que com suas estripulias e traquinagens, chuta o pau da barraca da colonialidade no combate ao racismo e ao epistemicídio. Ele é a energia que dá suporte à transgressão, questiona os limites da racionalidade moderna e reconhece os saberes ancestrais discriminados.
Exu, meus camaradinhas, não mira a superação de nada, mas sim a esculhambação, como ato de resistência e de transgressão. Presente nas práticas culturais afro-brasileiras, Exu é a decolonialidade, a potência decolonial em estado bruto. Ele sacaneia a lógica do colonialismo e sua pretensão universalista, bagunça o monologismo e o unilinguismo, engole tudo de um jeito para regurgitar de outro, reinventa e ressignifica, produzindo um saber que não tem qualquer pretensão de revelar a verdade única, mas aposta sobretudo na diversidade, na convivência, na tolerância.
A encruzilhada, que constitui um campo de possibilidades e de incursão para todas as formas de conhecimento, é uma operação de transgressão dos parâmetros da colonialidade, o lugar onde se destroem as certezas, o espaço das frestas e das brechas, nos diz Luiz Rufino. E como Exú está presente em todos os atos da vida natural e social, a sua epistemologia é complexa e a sua pedagogia também o é. Ele não é dono de uma verdade, porque assim seria o colapso de um sistema pautado por narrativas que guardam versões. O que ele nos oferece é a noção de alternativas.
Essa é a pedagogia da encruzilhada fundamentada no rolê epistemológico, no ebó epistêmico, no cruzo, no jogo de corpo, na ginga, no drible e na negaça, noções empregadas por Rufino a partir das leituras que fez de livros e dos saberes adquiridos nos terreiros.
Na minha arguição na banca, citei artigo de Marilena Chauí que critica tanto o professor autoritário – o dono do saber, como o populista – que faz demagogia barata em sala de aula. Para ela, o ideal de professor é aquele capaz de morrer, como o grão de trigo, para que o aluno deixe de ser aluno e possa, enfim, germinar. O ebó em forma de tese do Rufino, que foi meu aluno na graduação e, agora, me ensina o que eu não sabia, me deu a sensação de que morri, junto com todos os membros da banca, de quem ele foi aluno e que contribuíram muito mais do que eu para sua formação. Três dias depois ressuscito com esta resenha.
P.S. – A saideira vai em forma de cinco notinhas:
1 – Luiz Rufino Rodrigues Junior: “Exu e a pedagogia das encruzilhadas”. (01/06). Tese para obter título de doutor no Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED) da UERJ. Banca: Mailsa Passos (bendita orientadora), Luiz Antônio Simas (UFRJ), Júlio César Tavares (UFF), Adriana Facina (UFRJ), Stella Guedes Caputo (Uerj) e José R. Bessa (Uerj-Unirio).
2 – Agradeço às duas macumbeiras do Laboratório de Oralidade do PPGMS da Unirio, Mãe Wal e Ana da Neuza, pela leitura compartilhada da tese.
3 – Jurupari ensaiou uma visita à Uerj no dia anterior (31/05), com o exame de qualificação do doutorando Ênio Oliveira, que prepara tese no Programa de Pós-Graduação em História sobre os índios Puri do vale do Paraíba. Da banca presidida pelo orientador Marco Morel, fizeram parte Vânia Moreira (UFRRJ) e este locutor que vos fala.
4 – Suspeito que os professores indígenas, que em muitas de suas escolas já estão usando a pedagogia das encruzilhadas, vão gostar das duas teses. O reitor da Uerj, Ruy Garcia Marques e a vice-reitora Maria Georgina Muniz deviam receber Exu e Jurupari em seu gabinete.
5 – No dia em que Exu baixou na UERJ, o Programa de Estudos e Pesquisas das Religiões (PROEPER) organizou um ato em defesa da Uerj, no hall dos elevadores, coordenado por Emilio Galland Mira y Lopez, ao qual já não tive pernas para comparecer.