Por frei Gilvander Luís Moreira[1]
Em junho de 2013, nos primeiros dias dos justos e necessários protestos na capital de São Paulo, do Movimento Passe Livre, a TV gLobo e a mídia em geral rotularam inúmeras vezes os manifestantes de vândalos, Black bloc e arruaceiros, atitude criminalizadora. Dia 15 de maio de 2017, em Brasília, as forças policiais do Estado brasileiro reprimiu, com requintes de crueldade, mais de 200 mil pessoas que protestavam legitimamente contra os desmontes das leis trabalhistas e previdenciárias, exigiam Fora Temer e cobraram Diretas já. A frase inicial nos jornais televisivos era: “A manifestação começou pacífica, mas terminou em violência”. E a partir daí mostravam cenas selecionadas para induzir o povo a pensar que de fato se tratava de ações de violentos.
Em junho de 2013, quando as manifestações se espalharam pelo país, a mídia começou a fazer uma distinção: “O movimento é pacífico, mas tem uns vândalos no meio que promovem quebradeira”. Os donos do poder midiático, principal “partido” no Brasil, querem domesticar a classe trabalhadora e o campesinato, além de manietar as manifestações somente a “paz e amor”, o que não estremecerá o status quo podre do sistema capitalista, ora vigente no Brasil. É hora de resgatarmos a história a partir dos oprimidos e fazermos algumas reflexões.
Quem eram os Povos Vândalos? “Os Vândalos eram um povo germânico oriental que penetrou no Império Romano durante o século V e criou um estado no norte da África ocupando a cidade de Cartago, antiga cidade fenícia que fora ocupada pelos romanos desde o fim das Guerras Púnicas. A localização de Cartago às margens do Mediterrâneo era estratégica para os Vândalos. Ali centralizaram seu Estado, e logo após se estabelecerem, saquearam Roma no ano de 455”[2].
“Ao longo da marcha para o oeste, os Vândalos atingiram a margem do Danúbio e alcançaram o rio Reno, onde entraram em combate com os francos. Aproximadamente vinte mil vândalos morreram no choque entre esses dois povos, sendo que os francos só foram derrotados quando os alanos entraram no combate para auxiliar os vândalos. Em ações ousadas, os Vândalos saquearam Roma durante duas semanas no ano de 455 e foram capazes de resistir ainda a uma frota enviada pelo Império Romano para combatê-los”[3].
Portanto, a história demonstra que os Vândalos eram um povo digno que lutou aguerridamente contra o imperialismo romano. Logo, não é justo criminalizar os Vândalos e acusá-los de violentos. Eles lutavam por direitos.
Ontem, o império romano. Hoje, o império do capital, liderado pelos capitalistas. Assim como os Vândalos lutavam contra a opressão do Império Romano, hoje milhões de brasileiros, nas ruas, lutam não apenas por migalhas, mas por direitos. Vândalos, hoje, são os que revelam a infinita indignação que toma conta do povo diante da superexploração da dignidade humana e de toda a biodiversidade e diante de um Estado cúmplice do sistema do capital e dos capitalistas. Em junho de 2013, a revolta iniciou com a luta por transporte público de qualidade e foi somada a inúmeras pautas populares pelas ruas do Brasil. A luta segue e irá muito longe. Não se encerrará sem a superação do modelo econômico e político que desgoverna o Brasil e esfola a classe trabalhadora, a classe camponesa, a mãe terra, a irmã água e toda a biodiversidade.
Quem são os violentos hoje no Brasil? Nunca devemos esquecer o alerta de Bertold Brecht que diz: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”. Rotular é tentar invisibilizar e mais: rotular e criminalizar são retóricas do poder. É preciso sempre buscar as causas profundas que geram os conflitos. Em uma sociedade que a corrupção é apenas a ponta do iceberg da superexploração que o capitalismo e os capitalistas, com as empresas cada vez maiores e transnacionais perpetram contra o povo, tendo um Estado cúmplice da classe dominante violentos são:
- Os políticos, salvo raras exceções, que não representam o povo, mas, via de regra, defendem interesses de grandes empresas e latifundiários;
- Os juízes do Poder Judiciário que não respeitam os princípios constitucionais de respeito à dignidade humana, republicanismo, função social da propriedade, criminalizam os movimentos sociais populares e absolutizam o direito a propriedade para apenas alguns. Julgam como se ainda estivéssemos sob os ditames da Constituição de 1924, a que prescrevia direito absoluto a propriedade;
- Os administradores públicos, promotores e juízes que abarrotam as prisões, verdadeiros campos de concentração, jogando lá somente os pobres, negros e jovens;
- Os grandes empresários que lucram, roubam e saqueiam a classe trabalhadora pagando míseros salários e, com intensificação do trabalho e do produtivismo, arrebentam com a saúde dos trabalhadores, empurrando-os para a via crucis do SUS que é mantido, de propósito, na UTI para que grandes empresas dos planos de saúde acumulem um exagero de capital;
- As grandes mineradoras que, como em Conceição do Mato Dentro, MG, causam uma devastação socioambiental sem precedentes na história. Com coração de pedra, vão dizimando as nascentes de água e deixando para trás terra arrasada: crateras e um rastro de destruição;
- Os grandes empresários do transporte público privatizado que lucram bilhões carregando o povo trabalhador como se esse fosse gado para ser transportado em condições indignas e por preço que esfola o povo diariamente;
- os banqueiros que cometem cotidianamente o pecado da usura e especulando com o dinheiro do povo engordam seu poder econômico à custa de muito sangue humano;
- Os latifundiários que não cumprem a função social da propriedade e seqüestram a terra em poucas mãos gananciosas expulsando milhões de camponeses para as periferias das cidades;
- Os dirigentes da classe dominante que há séculos vêm pisando, humilhando e violentando a classe trabalhadora e a classe camponesa. Eis um exemplo: na época da escravidão formal, um cortador de cana cortava de três a quatro toneladas de cana por dia. Hoje, um bóia-fria dos canaviais paulistas corta de doze a quatorze toneladas por dia. Por isso, de 2004 a 2006, mais de vinte trabalhadores morreram por exaustão no trabalho.
É contra esses violentos que a classe trabalhadora e camponesa se rebelam e estarão nas ruas até que seus direitos sejam conquistados e efetivados. A luta é por justiça social, por justiça agrária, por justiça ambiental e por direitos humanos. Feliz quem dela participar e também contribuir para que espertalhões de plantão não venham golpear o povo já tão oprimido, mas que está se levantando.
Resistir não é violência, é legítima defesa. Diante de qualquer tirania e de um Estado violentador, cúmplice do sistema capitalista que sempre tritura vidas e pratica injustiças, é dever ético das pessoas resistir contras as opressões perpetradas contra os/as trabalhadores/ras e camponeses/sas. O Evangelho de Lucas, em Lc 22,35-38, sugere desobediência civil – econômica, política e religiosa -, ao propor: “quem não tiver espada, venda o manto e compre uma” (Lucas 22,36). Em uma sociedade estruturalmente desigual, esse é o “outro caminho” proposto pelo Evangelho de Mateus (Mateus 1,12) a ser seguido por nós, discípulos e discípulas de Jesus, o rebelde de Nazaré.
Os quatro evangelhos da Bíblia[4] relatam que Jesus, próximo à maior festa judaico-cristã, a Páscoa, impulsionado por uma ira santa, ocupou o templo de Jerusalém -, o que, metaforicamente, representaria hoje, o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o conglomerado da mídia brasileira – e expulsou os promotores de injustiça e de violência que lá se encontravam. Como todo profeta, ao descobrir que a instituição tinha transformado o templo em uma espécie de Banco Central do país + bancos + bolsa de valores, Jesus fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e bois, destinados aos sacrifícios. Derramou pelo chão as moedas dos cambistas e virou suas mesas. Aos que vendiam pombas (eram os que diretamente negociavam com os mais pobres porque os pobres só conseguiam comprar pombos e não bois), Jesus ordenou: “Tirem estas coisas daqui e não façam da casa do meu Pai uma casa de negócio” (João 2,16). Portanto, importante ter bem claro quem gera violência e quem a combate neste país.
Belo Horizonte, MG, Brasil, 03 de junho de 2017.
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[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, SAB e Movimentos Populares Urbanos de luta por moradia; e-mail: [email protected]; www.freigilvander.blogspot.com.br; www.gilvander.org.br; www.twitter.com/gilvanderluis; Facebook: Gilvander Moreira III
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%A2ndalos , acesso em 21/6/2013.
[3] Antônio Gasparetto Júnior. In: http://www.infoescola.com/povos-germanicos/vandalos, acesso em 21/6/2013.
[4] Mateus 21,12-13; Marcos 11,15-19; Lucas 19,45-46 e João 2,13-17.