O papel da mídia na dominação: o caso Gilmar Mendes

Por Márcio Sotelo Felippe, no Justificando

Havia uma polêmica jurídica no julgamento pelo TSE da representação “para encher o saco do PT” (Neves, Aécio, 2017) contra a chapa Dilma –Temer. Poderiam ser apreciadas provas não constantes da peça inicial?

Bons juristas se dividiram. Gilmar Mendes também se dividiu, mas ele consigo mesmo, sem qualquer problema com a lógica e a vergonha. Pensa que sim e pensa que não.

Desconhecerá o ministro a segunda lei da lógica? Aquela que estabelece o princípio da não contradição, que diz que é impossível algo ser e não ser ao mesmo tempo? Em se tratando de Dilma ele entendeu que sim: novas provas poderiam ser apreciadas no julgamento se a representação era para cassar a sua presidência. Já no caso de Temer entendeu que não, novas provas não deviam ser apreciadas se a representação visava cassar a sua presidência. Algum lógico perplexo poderia perguntar: mas a chapa impugnada não é a mesma? O processo não é o mesmo?

Essas e outras aberrações do ministro, a inacreditável desfaçatez com que atua partidariamente, sem qualquer pudor, são mais do que suficientes para o seu impeachment nos termos do art. 39, no. 5, da Lei do Impeachment:  “proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções”.

Nas condições de completa anomalia jurídica, política, ética, institucional em que mergulhamos pela irresponsabilidade e selvageria da elite brasileira isto não acontecerá. O ministro seguirá zombando de todos os brasileiros que prezam um mínimo de decência.

E seguirá impávido porque o ministro sabe que uma estrutura de poder e dominação o protege, estrutura da qual a mídia é parte essencial. Sem limites perante o absurdo. Todos os órgãos da grande imprensa apresentam os fatos convencendo seus leitores de que não estamos no reino de Alice no país das maravilhas. Mas o que acontece aqui somente lá, sob o domínio da rainha doida, poderia acontecer.

Gilmar Mendes é um interessante estudo de caso sobre os padrões de manipulação na grande imprensa. Vejamos como um importante colunista dessa imprensa comenta, especificamente, a contradição do ministro apontada no início do artigo: “o julgamento no TSE pode não resolver a crise política, mas nos ilumina em relação aos percalços da natureza humana”.[1]

Eureca! Veja, prezado leitor, que se trata, na verdade, de uma questão da natureza humana. Deixemos de lado qualquer juízo moral ou jurídico sobre o indivíduo Gilmar. O que ele faz é produto da inexorável natureza humana e todos nós a compartilhamos. Não procedemos como ele porque não estamos sujeitos às contingências de sua existência. Assim, digamos, fôssemos de família fazendeira em Mato Grosso, simpatizássemos com o PSDB e tivéssemos nos especializado em Direito Constitucional alemão estaríamos por aí sendo ministros descaradamente partidários.

A expressão que utilizei acima, “padrões de manipulação na grande imprensa”, é, na verdade, o título de um clássico escrito pelo jornalista Perseu Abramo. Tomo uma passagem: “A realidade é apresentada ao leitor não como uma realidade, com suas estruturas e interconexões, sua dinâmica e seus movimentos e processos próprios, suas causas, suas condições e suas consequências.”[2].Vejamos. Por que Gilmar Mendes age como age? Não se pode mostrar a rede real de conexões, interesses, jogo de forças que explicam sua conduta.

No entanto, em algum momento é preciso dizer alguma coisa porque o velamento do real pode vir a comprometer definitivamente a legitimidade do órgão e do personagem que desempenha o papel que interessa; então algo é dito, mas sempre mistificando, passando longe de estruturas e conexões, dinâmica, causas, condições, consequências, usando os termos de Abramo. Assim, o engenho do articulista providencia uma solução: invoca a natureza humana e Gilmar Mendes está absolvido. As coisas são como são, a vida é assim mesmo. A mentira, o cinismo, o despudor são naturalizados e, afinal de contas, somos todos humanos, não é?

O mesmo articulista defendeu o impeachment de Dilma como alternativa ao assassinato político: “[o impeachment] tem a vantagem de ser uma saída prevista pela Constituição e muito mais civilizada que o assassinato[3]. O mecanismo de manipulação do real era aí chegar ao extremo da menção ao assassinato político para passar ao leitor a ideia de um estado de coisas absolutamente insustentável, gravíssimo, intolerável, quando, na verdade, tudo não passava de uma reles manobra de partidos e forças sociais que haviam perdido a eleição e queriam derrubar a presidenta eleita por 54 milhões de brasileiros. Poderia entender o contexto de uma tal frase sobre Hitler, mas contra os erros de Dilma Roussef? O articulista não chega a tanto no caso de Michel Temer, flagrado em uma conversa só equivalente à de dois capi da máfia. Não é preciso jogar tão pesado como contra Dilma. Ela precisava ser odiada à morte.

É um padrão e por isso os exemplos podem ser colhidos às mancheias, Globo, Estadão, Veja, etc. A dominação precisa do ocultamento do real e do racional, em grande parte por meio da imprensa. Hitler convenceu parte da sociedade alemã de que havia uma conspiração entre as altas finanças internacionais controladas pelos judeus e os bolcheviques para dominar o mundo, o que somente poderia convencer um esquizofrênico diagnosticado. Mas não precisamos ir tão longe. Milhões de brasileiros saíram às ruas para depor uma presidenta em nome do combate à corrupção sob a batuta do mais notório corrupto da República, Eduardo Cunha, que aparecia nas capas de revistas heroicamente como “O senhor impeachment” (Época) ou “O político mais poderoso do Brasil” (Veja).

É tudo tão absurdo e desconexo que vem à mente a frase escrita por Shakespeare: somos feitos da matéria dos sonhos. Pesadelos também são sonhos.

Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.

[1] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2017/06/1891478-um-julgamento-didatico.shtml

[2] http://jornalggn.com.br/noticia/os-padroes-de-manipulacao-da-midia

[3] http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/04/1757510-heranca-dilapidada.shtml

Gilmar Mendes e Temer. Foto: Anderson Riedel / VPR

 

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