KAMBÔ: Um caso de polícia?

Por: Jairo Lima – Crônicas Indigenistas

Na semana que passou estive às voltas com um caso bem interessante. Participei da análise de um processo envolvendo denúncias de lideranças indígenas quanto ao uso e propaganda indiscriminada das medicinas tradicionais indígenas, em especial o kambô, estrela entre as medicinas, que, juntamente com a ayahuasca e o rapé, formam a tríade de produtos de origem indígena mais buscados. Depois de mais de quinze anos o kambô volta ao foco das denúncias e incômodos dos povos indígenas.

Se no início dos anos 2000 os protagonistas das denúncias foram os Noke Koi (Katukina) e os Yawanawá, agora, em 2017 os mais incomodados são os Huni Kuin, pelos menos, parte das comunidades, que vêem com apreensão suas aldeias se tornando ponto de parada no controvertido circuito do turismo xamânico. Também vem se incomodando muito com seus jovens aprendizes da tradição sendo alçados à categoria de “pajés” – sem os serem – , para atender interesses de ‘parceiros’ como alguns centros de iluminação e cura espalhados mundo afora, ou mesmo, para atender o interesse dos ‘fomentadores da cultura’ que atuam como empresários, negociando rituais e vivências onde a base da coisa é o tripé sagrado que citei no parágrafo anterior.

Em 2004, depois de muito barulho e confusão feitos pelas lideranças indígenas Noke Koi e Yawanawá, em decorrência do grande número de ‘terapeutas’ e organizações não-indígenas que vinham propagandeando o produto e assediando as comunidades em busca do mesmo, a ANVISA publicou a Resolução 03, em abril deste mesmo ano, determinando a suspensão de qualquer propaganda sobre as virtudes curativas do kambô. A penalidade para os infratores, além da autuação, seria de uma multa que iria de R$ 2.000,00 a R$ 1.500.000,00.

A decisão de restringir sua propaganda seria uma primeira ação, e duraria enquanto fosse estudada e detalhada a substância, normatizando seu uso e descrevendo seus riscos e contra-indicações de uso. Em teoria, na época, esse processo de estudo começaria ainda neste ano de 2004. No entanto, esse estudo nunca ocorreu pois, por mais incrível que possa parecer, nenhum laboratório brasuca topou a empreitada. Teoricamente, os custos altíssimos do estudo desestimularam os possíveis interessados. Depois de um tempo o assunto esfriou, vindo a cair no freezer das boas intenções.

Por um tempo a coisa até acalmou, e, devido a pouca divulgação, somente os que tinham mais contato com as comunidades indígenas, ou com os centros de Daime, ou, ainda, que já a conhecessem é que ainda mantinham o ‘mercado’ aberto. A propaganda ia de boca em boca.

O tempo passou e novamente vê-se pipocar em todo lugar propagandas diversas, onde são oferecidos os diversos produtos tendo como matéria prima o kambô. São anúncios que oferecem desde a secreção para aplicação direta, condicionadas em um pequeno pedaço de madeira conhecido como ‘paleta’, até produtos que vão do rapé a produtos para pele que em sua mistura possuem o kambô (ou pelo menos é isso que diz a propaganda). Só não vi ainda supositório, o que é estranho, pois, alguns povos indígenas costumam aplicá-lo no ‘puiki’ dos cachorros quando estes estão doente.

E tudo isso vem ocorrendo ‘à luz do dia’, tanto nos sites especializados em terapias alternativas até mesmo nas diversas páginas existentes no Facebook, onde indígenas, pseudo-indígenas e terapeutas (dos sérios aos totalmente pirados) oferecem acesso tanto ao produto quanto a tratamentos utilizando o mesmo.

Agora o assunto voltou a estar sob foco novamente, o que, em minha opinião está mais do que na hora. Na verdade já passando da hora de haver uma regulamentação da coisa toda: do seu uso em terapias à sua comercialização. Cabe a ANVISA e demais órgão afins ao estudo e regulamentação de produtos terapêuticos mexerem-se um pouco e olharem para esta situação. Eu acho incrível como depois de tantos anos e com essa ‘infestação’ de curadores, terapeutas e o escambau a quatro, ainda não tenha sido notada por alguma autoridade ou órgão de controle nestes anos todos. Duvido muito que nestas instituições não tenha ao menos uns três servidores que participem de algum grupo ligado à espiritualidade e caminhos do sagrado, ou a grupos alternativos.

E porque regulamentar? Ora, porque é preciso resguardar tanto a integridade da saúde de quem recebe o tratamento com esta medicina, como, também o reconhecimento e proteção de quem o ministra.

É importante citar que os próprios indígenas, em suas viagens de intercâmbio e divulgação da cultura, tanto pelo Brasil quanto fora deste, costumam levar entre outras ‘medicinas’ esta secreção, que é utilizada nos rituais que participam. É importante citar que, no caso indígena, por ser esta uma medicina bastante conhecida e de uso tradicional, muito presente em sua cultura e, sendo estes, em sua maioria, conhecedores de sua prática, os riscos de sua utilização são bem menores. No entanto, estes também não estariam imunes a erros ou conseqüências prejudiciais com seu uso em pacientes ou pessoas que não se conhece seu histórico de saúde.

Eu fico ‘de cara’ ao ver grupos e indivíduos oferecendo terapias e tratamentos com esta medicina como se estivessem vendendo banana. Vejam bem, façam uma pesquisa e verão como são raros os casos onde, em rituais ou mesmo quando se cita a presença de um terapeuta ou ‘xamã’, são oferecidos atendimento e diagnóstico. A coisa já vai direto para a medicina, como se esta resolvesse problemas que vão da impotência sexual ao refluxo gástrico. Nada disso.

Outra coisa que não se adverte é sobre seu risco, pois, na verdade, mesmo que muito raramente, esta medicina pode causar problemas. Existem registros de mortes ocorridas em decorrência do seu uso, aplicado de maneira leviana, sem um cuidado em saber as condições de quem recebe e o que é pior, sem o devido preparo dos aplicadores, pois esta medicina é uma substância que atua também no sistema cardiovascular da pessoa e, por isso, merece atenção de quem a manipula.

Eu conheci curadores e pajés bem experientes que já me explicaram suas técnicas de atendimento antes de iniciarem o procedimento de aplicação, ou seja, o ‘diagnóstico’. Isso é ciência. Pode ser até que não seja indicado seu uso, ou seja, não se pode simplesmente ir fazendo ‘os três pontinhos’ e pimba! Isso é leviandade.

Além da questão física, tem ainda, o fator espiritual, pois todos os conhecimentos indígenas voltados às medicinas possuem a mística do equilíbrio entre o yuxin, yuxibu* e a natureza que os cerca. Por isso, assim como qualquer medicina – e nesse caso do kambô por suas características -, é preciso muito cuidado em sua utilização, sendo recomendável sua utilização em casos diagnosticados de ‘desequilíbrio’. Do contrário o tiro pode sair pela culatra e, em vez de ajudar, isso pode prejudicar a pessoa.

Claro que tem sempre aquelas pessoas mais ‘hardcore’, que não tão nem aí para esse papo de ‘equilíbrio’. Gostam de usar esta medicina pelo ‘barato’ que a sensação pode dar neles. Atitude que acho bem estranha, pois tem que ser muito fã dos diários do Marquês de Sade para sentir prazer com a sensação causada durante sua aplicação.

É por tudo isso que creio já estar passando do tempo de regulamentar essa medicina. É claro que neste processo teremos questões sérias a discutir, e não estou me referindo ao ‘detentor originário’ desse conhecimento que, como sabemos é indígena. Falo de questões mais complexas que permearão sua regulamentação: Seria sua aplicação uma prática ilegal da medicina? Seria seu transporte para fora da comunidade indígena ou do seu habitat natural categorizado como biopirataria? A restrição de uso seria só para não-índios? Sua utilização pode ser categorizada como crime? etc. Estas e outras questões igualmente complexas terão que ser conversadas. Até lá, creio que é preciso haver sim uma maior fiscalização sobre sua propaganda e também sobre sua utilização.

Por isso, na atual situação em que não há uma regulamentação, nem uma campanha de esclarecimentos e orientações por parte das instituições responsáveis pelo monitoramento e controle, não vejo como justa a criminalização de quem, no momento está a propagandear sobre seu uso, mesmo que misturado em outros produtos, apesar de achar que, quem o faz, não tomou conhecimento sobre esta restrição da ANVISA por displicência mesmo, pois, no mundo atual, poucas são as informações que não estão acessíveis na rede.

Quem lê minhas crônicas a respeito deste assunto sabe que não sou o mais entusiasta, nem me dignaria a fomentar o chamado turismo xamânico, nem mesmo me submeteria a tal. Mas respeito o direito daqueles que, de maneira séria e cuidadosa o fazem. Pessoalmente acho isso errado, e as comunidades onde atuo sabem dessa minha opinião.

Acredito que comprar/vender pacotes de viagem com intuito de vivenciar um momento junto com uma comunidade indígena é bem legal e uma experiência rica, tanto pelo contato com a natureza como, também, pelo contato com o cotidiano e filosofia de vida destes povos. No entanto, adquirir/vender pacotes de viagens com um roteiro parecido com uma festa have, oferecendo como destaque a participação em rituais com ‘uso de medicinas como kambô, ayahuasca e outras medicinas’… é, a meu ver, uma total bad trip.

É preciso mudar esta cultura de ser ver as aldeias indígenas do Acre somente como uma versão amazônica da “Terra do Nunca’, onde a diversão e a ‘viagem’ não tem fim. Isso é desmerecer as comunidades, sua filosofia de vida e o que estas têm de mais bonito. E esta beleza só pode ser entendida e notada se o intuito da convivência for pura e desprendida de ‘roteiros’.

Pois é… então, cara pálida cuida de apagar essas postagens com a Phyllomedusa** viu? Cuidado com os ‘zôme’, eles estão de olho…
Boa semana a tod@s…

* Duas partes do espírito que compõem o que podemos chamar de ‘alma’ ou ‘espírito’ do indivíduo, não sendo exclusivo ao ser humano, pois, assim como estes, os outros animais também os possuem.

** Phyllomedusa bicolor – nome científico da rã , de onde é extraida a secreção da ‘vacina do sapo’, o kambô.

Rã Phyllomedusa bicolor, o kambô – Imagem: divulgação

Comments (1)

  1. Caro Jairo, Em vários de seus blogs nos últimos anos você mencionou que várias mortes resultaram do uso do kambo. Estou investigando tais eventos em todo o mundo. Você pode me fornecer alguma informação, especialmente números, países e datas de tais mortes que você conhece na América do Sul? Alternativamente, você conhece algum indivíduo que eu poderia contatar sobre eles?
    Muito Obrigado.

    John Corkery

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

5 × two =