Temer usou a crise para sufocar Ministério da Cultura, diz ex-executivo, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

”A retomada do Ministério da Cultura foi uma farsa. Ele voltou a existir no papel, mas não voltou na vida real. Não adianta manter uma estrutura de ministério se não dá condições mínimas para ela funcionar.”

A avaliação é de João Brant, secretário executivo do Ministério da Cultura no segundo governo Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016. De acordo com ele, ”o governo Temer utilizou uma situação conjuntural de crise para sufocar o funcionamento do ministério de forma irreversível”. Ele, que é mestre regulação e políticas de comunicação pela London School of Economics, foi ouvido pelo blog e falou sobre a crise no setor.

Nesta sexta (16), o escritor e cineasta João Batista de Andrade, que comandava a pasta como ministro interino, pediu demissão. Afirmou que, com o corte orçamentário sofrido, o ministério que já era ”inviável” está sendo ”tratado de forma a inviabilizá-lo ainda mais.” Com isso, a Cultura está prestes a ter seu quarto ministro em pouco mais de um ano. A senadora Marta Suplicy (PMDB) teria sido convidada para voltar ao posto já ocupado por ela no primeiro governo Dilma Rousseff, mas recusou.

Os outros dois chefes da pasta saíram por conta da da instabilidade política. Marcelo Calero, após pedir demissão em novembro do ano passado, denunciou pressões do então ministro Geddel Vieira Lima para liberar a construção de um prédio, em Salvador, embargada pelo patrimônio histórico – o que levou à queda de Geddel. Roberto Freire saiu, em maio deste ano, após o escândalo com as delações dos donos da JBS envolvendo Michel Temer virem a público.

João Brant também reconhece que o governo Dilma Rousseff não priorizou a Cultura. ”Há muitos gestores de esquerda e de direita que veem o investimento em cultura como um desperdício de dinheiro público, como se fosse apenas aquele recurso que você põe para a ”bandinha” tocar em seu seminário. Para eles, portanto, o corte na Cultura é muito fácil de ser feito”

Segue a entrevista:

A área da Cultura, que quase perdeu o status de ministério no início do governo Temer, se prepara para ter seu quarto chefe em pouco mais de um ano. Ao que se deve essa instabilidade?

O governo Temer definitivamente não tem a Cultura como prioridade. E isso ficou claro desde o primeiro dia, quando fez a fusão da Cultura com a Educação e, depois, só voltou atrás por conta de uma pressão forte da área cultural. Contudo, a retomada do Ministério da Cultura foi uma farsa. Ele voltou a existir no papel, mas não voltou na vida real. Não adianta manter uma estrutura de ministério se não dá condições mínimas para ela funcionar.

Nesse período, houve uma reforma administrativa na pasta, o ministro Marcelo Calero fez o ministério perder 36% das suas funções comissionadas. Agora, em 30 de marco, houve um corte de 43% do orçamento da área. Diferentemente do ano passado, quando havia perspectiva de recomposição, hoje isso não está posto em cima da mesa.

Portanto, estamos vendo o esvaziamento completo de um ministério que poderia e deveria ter função estratégica no governo federal. Governar com o vento a favor é tranquilo, o difícil é governar com vento contra. O governo Temer utilizou uma situação conjuntural de crise para sufocar o funcionamento do ministério de forma irreversível.

Mas a ex-presidente Dilma Rousseff e sua equipe econômica também não priorizaram a Cultura em relação a outras áreas. A política tradicional vê investimentos culturais como contabilização de prejuízo?

É verdade. O governo Dilma não priorizou a Cultura. O primeiro mandato deixou isso muito claro quando diminuiu o orçamento discricionário, voltado para programas e investimentos, com exceção do audiovisual. E em seu segundo governo tivemos que passar por um corte muito violento, como todos os outros ministérios da área social, naquele ajuste fiscal de 2015. A situação em 2016 não se tornou melhor, inclusive por falta de visão de governo de como a cultura pode ter papel estratégico dentro de um programa de desenvolvimento que não seja puramente econômico e tradicional.

Há muitos gestores de esquerda e de direita que veem o investimento em cultura como um desperdício de dinheiro público, como se fosse apenas aquele recurso que você põe para a ”bandinha” tocar em seu seminário. Para eles, portanto, o corte na Cultura é muito fácil de ser feito.

Mas estamos falando numa área que representa a sustentação de muitos programas importantes. Estamos falando de toda a área de patrimônio histórico nacional; com as 27 superintendências do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], de toda a política nacional para as artes cênicas, dança, circo, música, pela Funarte; da sustentação da Biblioteca Nacional; da garantia para a Fundação Cultural Palmares investir no fortalecimento e manutenção da cultura negra; em 29 unidades de museus sob gestão federal e mais de 3 mil museus interligados em rede nacional; em pontos de cultura no Brasil inteiro; em uma política de audiovisual. Não dá para tratar como uma área pouco relevante em questão de governo.

Enquanto, há uma justificável necessidade alta de recursos para a saúde, com mais de R$ 100 bilhões por ano, para a Cultura deveria ser R$ 700 milhões e está em R$ 430 milhões. Não é possível comparar os gastos e as necessidades das duas areas. Mas os valores da Cultura não deveriam ser tão baixos, precisariam ser maiores para que o conjunto de programas da área cultural pudesse ser mantido com alguma dignidade.

Esse quadro de desprezo prolongado com a área traz quais consequências?

O esfacelamento das políticas culturais no país. Nós vamos assistir, possivelmente, a todos esses programas que vinham sendo construídos serem reduzidos a ponto de respirar por aparelhos. Essa situação é dramática e é de tal forma inconsequente que as políticas vão ser interrompidas sem serem encerradas.

Em um momento em que políticos se vendem como ”gestores”, para atrair a população descrente com a política tradicional, como enfrentar o discurso que afirma que o governo deveria ”privatizar” a cultura para empresas e a sociedade civil por serem mais ”eficientes”?

Infelizmente, parte da política cultural brasileira já é privatizada no momento em que você tem a maior parte dos investimentos de cultura hoje sendo feitos via lei Rouanet, que movimenta cerca de R$ 1,3 bilhão por ano. A partir de uma prévia autorização do Estado para captação de recursos, as empresas escolhem quais projetos vão ser financiados. Essa realidade já é maior que o investimento que o Estado faz diretamente. E, nesse ponto, o ministro João Batista de Andrade aponta que o esfacelamento do Fundo Nacional de Cultura [segundo Andrade, o fundo, que já teve R$ 500 milhões, hoje está sem recurso algum] é um indicador muito grave.

Por outro lado, precisamos enxergar que, diferentemente da Educação e da Saúde públicas, em que precisamos pensar que a realização do serviço precisa ser feito preferencialmente por atores públicos, no caso da Cultura é diferente. Cabe ao Estado viabilizar um conjunto de atividades e práticas culturais que façam o Brasil respirar sua própria diversidade. Que é a marca do país, mas que não se sustenta necessariamente sem um apoio estatal. Para que ela ganhe fôlego e corpo e atinja todo o território nacional, a presença do Estado como indutor e promotor é, muitas vezes, mais fundamental do que como realizador.

Recentemente, o secretário municipal de Cultura de São Paulo, André Sturm, ameaçou ”quebrar a cara” de um representante de um movimento cultural. Depois, ele se desculpou. A polarização política afetou a capacidade da administração pública entender a pluralidade de movimentos e organizações culturais e dialogar?

O episódio é muito grave porque significa que os gestores públicos não estão dando conta de lidar com a democracia. Democracia com tudo andando tranquilamente é fácil. Mas ela é, em si, um instrumento de resolução de conflitos com uma garantia de que, por um lado, prevaleça o interesse da maioria, mas que também seja preservada a dignidade da minoria. Caso contrário, não é democracia, é totalitarismo.

Sobre a discussão, acho que o secretário tinha razão na expectativa de formalização de um processo com os movimentos culturais. Nesse ponto, o movimento cultural tem que ter a maturidade de assumir as responsabilidades que vêm junto com a parceria que ele quer estabelecer com o poder público. Mas acho que o que o aconteceu revela uma incapacidade de perceber que o poder público ”deve” à sociedade. A sociedade espera, há muito tempo, uma política cultural consistente. Demorou muito tempo, por exemplo, para a área de Ermelino Matarazzo [bairro da Zona Leste da capital paulista, onde atua o movimento cultural envolvido na polêmica com o secretário] ter equipamento cultural. De repente, vemos – por conta de um diálogo um pouco truncado – uma atitude muito violenta e virulenta do secretário. Nesse momento, se rompe um laço de confiança, que também representava a confiança do Estado na realização daquelas atividades pela sociedade civil.

As práticas democráticas estão, nesse momento, em baixa por conta da corrosão do tecido social, mas também pelo fato do Estado não estar reconhecendo o seu papel de quem tem dívida com a sociedade.

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