Uma ética do escracho

Por Luis Felipe Miguel, no Justificando

A denúncia da jornalista Míriam Leitão, de que teria sido hostilizada por militantes petistas num voo comercial, sacudiu as redes sociais e a “blogosfera” progressista. A nova presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, apressou-se em lançar uma nota com um pedido de desculpas, embora sem deixar de anotar que a principal responsável pela ampliação da incivilidade política no país era a mídia empresarial. Em seguida, surgiram evidências cada vez mais fortes de que o episódio havia sido muitíssimo exagerado por Leitão, incluindo o testemunho de outros passageiros do mesmo voo, o que levou Hoffmann a lançar uma nova nota, dirigida à militância petista, meio que pedindo desculpas pelas desculpas anteriores.

Nisso, porém, muita gente já estava desinteressada da veracidade ou não do relato da jornalista da Rede Globo. Era o momento para mais um exercício de autocrítica alheia, no qual a esquerda é tão eficiente: “nós” éramos bárbaros, violentos, incapazes da convivência democrática, desrespeitosos com as opiniões divergentes. Falou-se em “totalitarismo”. Evocou-se Rosa Luxemburgo e sua bela frase sobre a liberdade de quem pensa diferente, esquecendo, porém, que a revolucionária polonesa-alemã estava disposta a derrubar o capitalismo pela força das armas, se preciso fosse.

Em alguns destes discursos, o escracho foi condenado como uma prática inaceitável em qualquer circunstância. Mesmo contra torturadores, contra assassinos. Manifestações na porta da residência de políticos logo foram anexadas ao rol dos excessos indesculpáveis. Evocava-se, ainda que nem sempre de forma explícita, uma linha divisória entre público e privado que não poderia jamais ser ultrapassada. A passageira do avião não é a arauta do golpe e do retrocesso nos direitos, a jornalista que burla seu público com uma representação desonesta da realidade; é apenas uma mulher a caminho de casa. O idoso de pijama em sua sala de estar é só isso, um idoso de pijama, não o general reformado que vive impune e feliz apesar das atrocidades que comandou e cometeu na última ditadura.

O fundamento dessas posturas é uma visão asséptica e cerebral da política. Como se a questão fosse apenas esgrimir argumentos e esperar que os melhores triunfem – a “troca de razões” dos habermasianos. É uma percepção pré-maquiaveliana, que não entende que, antes de razões, estão em jogo interesses. Que não entende o conflito como motor da política, muito menos que, nesse conflito, ter razão não significa vencer. Que as nossas razões, por mais poderosas que sejam, podem ser sistematicamente sufocadas pelo controle que nossos adversários têm dos meios materiais de difusão das representações do mundo social. O escracho aparece, aqui, como uma forma de romper essa barreira.

Há muito, também, de autocontemplação narcísica, própria de quem se enamora da própria razão e se vê acima das paixões. E de quem busca encarnar o conjunto das virtudes convencionais, incluída aí a polidez e a urbanidade, algo que chamei, em outro texto, de “bom mocismo” da esquerda. O que trai, uma vez mais, uma leitura da atividade política que é anterior a Maquiavel, avaliando-a pelos critérios da moral privada.

Por fim, há um componente de classe que ajuda a entender porque a mal-explicada agressão a Míriam Leitão despertou, em muitos segmentos da esquerda universitária, mais revolta do que as violências perpetradas cotidianamente contra a maioria da população. E não estou falando só da “violência estrutural”, difusa, sem alvo individual definido.

Se o caso de Leitão levou a tanta indignação, o que fazer, por exemplo, com Rafael Braga? A jornalista teria sido vítima de cantorias constrangedoras durante duas horas de voo. Braga foi condenado a mais de 11 anos de privação da liberdade sem que houvesse qualquer prova contra ele. Mas talvez seja mais fácil se colocar na pele de uma passageira bem-situada num voo comercial, uma situação que muitos vivenciamos a toda hora, do que de um jovem negro e periférico encarcerado.

O reverso dessas posições também esteve presente no debate, na forma de uma visão festiva, em que o escracho era aplaudido pelo simples fato de ser escracho. O escracho quase como imperativo categórico: temos que escrachar todo golpista que passar pela nossa frente. Caminhando nessa linha, chegamos à apologia da externalização agressiva de qualquer discordância política. Contra essas duas visões polares, acho necessário discutir uma ética do escracho, entendendo que – como qualquer outro item de qualquer repertório de táticas políticas – ele deve ser avaliado à luz das suas implicações, das circunstâncias específicas em que se insere e dos resultados que alcança.

O escrache surgiu, ainda nos anos 1990, como forma de denunciar a impunidade dos oficiais militares responsáveis pela violação dos direitos humanos na ditadura argentina, que o governo Carlos Menem havia anistiado (em outra expressiva manifestação da parceria entre ultraliberalismo econômico e autoritarismo político). Os escraches revelavam que determinadas pessoas, intocadas pelo aparato judicial, eram culpadas de crimes graves. Expunham os torturadores e assassinos, mas também – e sobretudo – a omissão do Estado.

Há, portanto, um sentido de denúncia. Sem isso, o escracho não se diferencia de uma agressão gratuita. Os ataques da direita a Chico Buarque, Letícia Sabatella ou Dilma Rousseff, para ficar em casos que os condoídos de Leitão evocaram muitas vezes, foram simples agressões. Compará-los aos escrachos chega a ser ofensivo. Penso em outro exemplo: outro dia, a escritora Ana Maria Machado publicou um artigo repulsivo, defendendo o fim dos direitos sociais e contra as eleições diretas. Isso a “credencia” a sofrer um escracho? Creio que não. Seu texto merece repúdio, sem dúvida, mas está amplamente protegido por aquilo que se chama – em francês, para ficar elegante – le droit de parler merde.

Falei em torturadores e assassinos; depois, em Ana Maria Machado, uma escritora que abraçou o ideário da direita. Míriam Leitão não está num caso nem no outro. É uma peça de uma engrenagem, sem por isso ser uma vítima. É uma jornalista a serviço do atraso, bem remunerada para cumprir seu papel. Há algo a ser desvelado, o fato de que ela se apresenta como analista imparcial quando na verdade serve a interesses bem precisos, o fato de que ela manipula deliberadamente as informações que transmite. Não creio que quem não pratica ou ordena diretamente a violência física está isento de responsabilidade – empresários, juízes, jornalistas. A questão a saber, então, é se alguém como ela mereceria ser alvo de uma ação tão grave quanto um escracho.

O objetivo do escracho é denunciar e disputar a construção de sentidos no espaço público (por isso, aliás, a denúncia de Leitão se dirige a um contrassenso, um “escracho secreto”, que não teria sido publicizado por seu realizadores). Se é assim, ele não se justifica como mera manifestação de ressentimentos e de mágoas ou como punição “pelas próprias mãos” a determinados indivíduos. É uma arma política, não uma válvula de escape (e muito menos um instrumento de autopromoção dos “denunciadores”). Por isso, é importante que não se banalize, mantendo seu impacto quando ocorre. É importante que, diante do público, a seriedade dos malfeitos de seu alvo fique bem evidenciada. É importante que seu resultado seja um desmascaramento, não a produção de uma “vítima”.

O caso de Leitão não serve para avançar na discussão, uma vez que, nele, não ocorreu efetivamente um escracho. Mas a polêmica que esse factoide gerou mostra que necessário refletir sobre a questão. Condenar qualquer forma mais ofensiva de ação política, a priori, apenas por sê-lo, é ingênuo e paralisante. Aplaudi-la também a priori, por demonstrar uma indignação que vale por si mesma, sem pensar em seus efeitos, é igualmente inócuo. Entre os dois extremos simplificadores está o caminho mais difícil, mas imprescindível, que é fazer política.

Luis Felipe Miguel é doutor em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)

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