Aproximadamente 22% das Unidades de Conservação da Caatinga sofreram degradação ambiental em 15 anos. Entrevista especial com Neison Cabral Ferreira Freire

Patricia Fachin – IHU On-Line

O resultado do monitoramento e da análise de 14 Unidades de Conservação localizadas no bioma Caatinga, que correspondem a 1% da ocupação do território, não é muito animador, porque “nos últimos 15 anos houve uma degradação ambiental de graus variados” em todas as unidades estudadas, diz o pesquisador Neison Cabral Ferreira Freire à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele informa, algumas unidades atingiram 40% de degradação em uma década e meia, e outras atingiram 10%. “Se eu posso falar de uma média entre elas, diria que 22% dessas áreas de Unidades de Conservação sofreram degradação ambiental”, resume.

Coordenador da pesquisa “Mapeamento e análise espectro-temporal das Unidades de Conservação das Caatingas”, que deu origem ao Atlas das Caatingas, Freire pontua que nas 14 Unidades de Conservação estudadas “as ameaças mais comuns estão relacionadas ao desmatamento, ao corte seletivo e ilegal de madeira, à caça predatória e também a problemas de gestão relacionados à redução de quadros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, que é o órgão federal ligado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável pela gestão dessas unidades”. Ele diz ainda que as imagens de satélites analisadas e as visitas de campo nas unidades demonstram que houve uma “perda de biodiversidade com relação ao porte da Caatinga: existiam áreas de Caatinga arbórea, com árvores de até 15 metros, e hoje ela se reduz a uma Caatinga arbustiva, herbácea ou de solo exposto”.

Neison Cabral Ferreira Freire é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula, Rio de Janeiro, especialista em Geoprocessamento pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Ciências Geodésicas e Tecnologias da Geoinformação pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, doutor em Geografia também pela UFPE.

Freire foi consultor nas áreas de Desenvolvimento Regional para o Ministério da Integração Nacional e Zoneamento Ecológico-Econômico para o Ministério do Meio Ambiente. É pesquisador convidado do Programa de Investigación en Recursos Naturales y Ambiente – PIRNA da Universidad de Buenos Aires. Foi pesquisador visitante do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA no Programa de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional – PNPD entre 2011 e 2013.

É professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento do Nordeste da UFPE e professor da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales – FLACSO, com sede na Argentina. É pesquisador na Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, em Recife-PE, onde supervisiona o Centro Integrado de Estudos Georreferenciados para a Pesquisa Social Mário Lacerda de Melo – CIEG e exerce o Cargo de Diretor Substituto de Pesquisas Sociais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais constatações do Atlas das Caatingas em relação ao que já se conhecia do bioma até então? Como esse estudo foi realizado?

Neison Cabral Ferreira Freire – O estudo foi realizado durante três anos, entre dezembro de 2013 e dezembro de 2016, e teve como objetivo mapear e analisar, por meio de imagens de satélites e pesquisas de campo, o estado de conservação da biodiversidade das 14 Unidades de Conservação de Proteção Integral do bioma Caatinga. Esse bioma ocupa aproximadamente 80% da área do Nordeste e abrange ainda parte do Norte de Minas Gerais, tem aproximadamente 844 mil quilômetros quadrados, e apenas 1% do bioma está nessa categoria de Unidades de Proteção Integral, que são as mais protegidas pelo Sistema de Unidades de Conservação do Ministério do Meio Ambiente.

Inicialmente fizemos um mapeamento em laboratório comparando dados das Unidades de Conservação em 2000, 2002, período da criação do Sistema de Unidades de Conservação, até a data mais recente. Fizemos uma validação de campo através de expedições de campo, onde nós, pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco e professores da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, em acordo e cooperação técnica, realizamos o trabalho de campo, o qual tinha como objetivo verificar se aquelas mudanças que tínhamos detectado nas imagens de satélite de fato ocorreram e quais eram os motivos. Para isso, entrevistamos todos os gestores das Unidades de Conservação, brigadistas e moradores da região para entender a dinâmica que aconteceu nessas áreas. De modo geral posso afirmar que, de fato, ao longo dos últimos 15 anos houve uma degradação ambiental de grau variado, mas todas essas Unidades de Conservação sofreram algum grau de degradação ambiental. Isso também ocasionou conflitos socioambientais com as populações que moram na volta dessas unidades ou ainda com populações tradicionais, indígenas e quilombolas, que ainda habitam essas áreas. Diagnosticamos também conflitos com fazendeiros e pequenos proprietários de terras que estão no entorno das unidades ou que têm propriedades dentro dessas unidades.

O resultado dessa pesquisa é que precisamos observar e compreender melhor a importância de conservar essas joias da natureza, porque o bioma Caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro. Além disso, nessa área moram 22 milhões de brasileiros, que apresentam altos índices de vulnerabilidade social, porque o entorno dessas unidades é formado por municípios pobres, os quais poderiam ter melhores condições se houvesse uma gestão mais apropriada dessas Unidades de Conservação.

Nesta pesquisa analisamos 14 Unidades de Conservação que representam apenas 1% do bioma Caatinga. Nossa próxima pesquisa, que se chama “Mudanças Climáticas na Caatinga”, será um projeto mais ambicioso e vamos analisar os outros 99% do território, em parceria com uma universidade francesa.

IHU On-Line – O Atlas utiliza o nome “Caatingas”, no plural. Por quê?

Neison Cabral Ferreira Freire – Muito boa pergunta. Não podemos falar que existe apenas uma Caatinga, mas Caatingas no plural, porque cada uma tem sua particularidade, suas experiências de gestão e diferentes graus de participação da comunidade em relação à conservação da biodiversidade e manejo da sua potencialidade para o ecoturismo.

IHU On-Line – De modo geral, qual a situação das Unidades de Conservação mapeadas pelo Atlas? Em que aspectos elas apresentam os mesmos problemas e problemas diferentes?

Neison Cabral Ferreira Freire – De um modo geral diria que as ameaças mais comuns estão relacionadas ao desmatamento, ao corte seletivo e ilegal de madeira, à caça predatória e também a problemas de gestão relacionados à redução de quadros do Instituto Chico Mendes de Conservação da BiodiversidadeICMBio, que é o órgão federal ligado ao Ministério do Meio Ambiente, responsável pela gestão dessas unidades. Existe um quadro de funcionários bastante reduzido, embora eles sejam muito competentes nas suas profissões, mas em algumas áreas enormes, como no Parque Nacional da Serra das Confusões, no Piauí, que é a maior das Unidades de Conservação, existe um único gestor. Faltam ainda profissionais específicos, como veterinários, geólogos, botânicos, sociólogos, antropólogos para lidarem com conflitos variados. Há ainda uma redução muito forte no número de brigadistas, que são equipes contratadas junto à população local para combater os incêndios frequentes de causa natural ou antrópica. Esses brigadistas também fazem um trabalho importante de educação ambiental junto às escolas públicas que visitam essas unidades. Esses são os problemas mais comuns presentes em todas as unidades.

Há um grau variado de problemas específicos em cada Unidade de Conservação. Há conflitos com populações tradicionais, especialmente no Parque do Catimbau, em Pernambuco, com as populações indígenas que habitam essa área do parque. Também existem problemas com populações tradicionais de fundo de pasto, no Raso da Catarina, onde fazem isso há mais de 200 anos, ou seja, muito antes de haver discussão sobre a preservação do meio ambiente.

Na porção leste da Chapada da Diamantina existe um problema com o turismo sem planejamento, e já existem três favelas na cidade de Lençóis. Existe também uma especulação imobiliária muito forte, que faz com que surjam mapeamentos com fragmentação do território numa região em que há fragilidade ambiental e problemas de saneamento. Do outro lado da Chapada tem o problema do agronegócio, onde há grandes plantações de batata, morango, pimentão em que se usam agrotóxicos, que acabam causando impacto nas Unidades de Conservação. Algumas unidades são beneficiadas pela geografia, como é o próprio caso da Chapada, porque a área limite dela é justamente onde é mais alta, que são aqueles paredões, e o acesso ali é mais difícil, embora haja muita pressão dos criadores de gado para retomar a criação de gado na região das Gerais, onde há uma vegetação típica por causa da seca prolongada na região. Esses produtores têm pressionado o ICMBio para permitir que duas ou três mil cabeças de gado subam a região das Gerais, para que o gado possa se alimentar, mas isso causaria um impacto ambiental tremendo.

Existem problemas com as cavernas no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Itacarambi, no Norte de Minas Gerais. Os problemas existentes ali têm a ver com as fazendas de eucalipto, o qual consome muita água, e por isso é feito bombeamento de água do subsolo, do lençol freático. Enquanto isso, nós andamos no leito seco do rio Peruaçu, que é um dos principais contribuintes do submédio do rio São Francisco. Isso gera um problema de rebaixamento do lençol freático e acaba prejudicando os pequenos proprietários que estão na área de amortecimento do parque, na região de Itacarambi, onde já não existe a cultura de vazante.

Por conta disso, os moradores têm constatado que não tem mais pesca no rio São Francisco, e é possível atravessar o rio com água pela cintura. Então, está havendo uma simplificação da rede de drenagem na Bacia do rio Peruaçu, e do mesmo modo o rio Bandeiras também tem muitos problemas ocasionados pelo agronegócio, justamente por conta das fazendas cujos proprietários não são nem da região. As culturas que são plantadas na Caatinga não têm sustentabilidade ambiental própria ao ecossistema da região.

No caso do Parque Nacional da Serra de Itabaiana, que fica a 60 quilômetros de Aracaju, o problema é de ordem antropológica. A região é de transição entre a Mata Atlântica e a Caatinga, e é uma região que há 200 anos tem plantação de cana-de-açúcar; e o porto de Laranjeiras, por exemplo, era um porto de escravos.

As manifestações religiosas dessa população de origem africana ocorrem dentro das Unidades de Conservação, e isso gera um problema de conflito socioambiental por conta dos restos de alimentos que são deixados depois da realização dessas manifestações. A fauna é basicamente formada por lagartos, os quais se alimentam de alimentos que não fazem parte da dieta deles, e isso os prejudica. Além disso, o lixo deixado depois dessas manifestações religiosas não tem como ser recolhido. Mas o maior problema são as velas acesas, que ocasionam incêndios na unidade. Em uma única semana em que visitamos essa unidade, percebemos três focos de incêndios, os quais não têm como apagar justamente pela falta de brigadistas.

IHU On-Line – O que as diferentes entrevistas que a pesquisa realizou revelam sobre o modo como a população dessas unidades percebe a Caatinga? Que tipo de entendimento as diferentes pessoas que vivem na região têm em relação à Caatinga?

Neison Cabral Ferreira Freire – Do ponto de vista dos gestores do ICMBio, eles têm um profundo conhecimento das suas limitações, dos problemas, do estado atual das Unidades de Conservação, e uma incapacidade de reagir diante de tantas pressões que vêm de vários lados, seja do agronegócio, seja dos conflitos locais. Em relação às populações tradicionais e os moradores do entorno, eles têm uma percepção de que não há uma devida divulgação dessas unidades junto às escolas e à própria comunidade em relação à importância de conservá-las e conhecê-las. Tampouco se sabe sobre qual potencial elas poderiam ter justamente para que elas pudessem ter um aproveitamento em termos não só científicos, mas voltados ao ecoturismo: as unidades que possuem plano de manejo e que não estão em categorias de estação ecológica ou reserva biológica têm visitação permitida, desde que isso seja estruturado, mas isso ainda ocorre de maneira muito tímida. A mais estruturada é a unidade do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, por conta dos achados arqueológicos que existem lá. A percepção da população é que eles não conhecem o patrimônio que têm.

IHU On-Line – Qual diria que é, em geral, o grau de degradação das unidades estudadas?

Neison Cabral Ferreira Freire – Como disse, esse grau varia bastante. Algumas unidades atingiram 40% de degradação em 15 anos, e outras atingiram 10%. Se eu posso falar de uma média entre elas, diria que 22% dessas áreas de Unidades de Conservação sofreram degradação ambiental. Por exemplo, não trabalhamos com a fauna, mas com a flora, e fizemos uma correlação com as imagens de satélites. Assim, quando analisamos temporalmente essas imagens, percebemos uma perda de biodiversidade com relação ao porte da Caatinga: existiam áreas de Caatinga arbórea, com árvores de até 15 metros, e hoje ela se reduz a uma Caatinga arbustiva, herbácea ou de solo exposto. Isso se dá, basicamente, pelo corte seletivo e ilegal da madeira. Há também um avanço de áreas antropizadas por falta de fiscalização e de demarcação dessas áreas – todas as Unidades de Conservação são demarcadas por decretos ou leis da União, mas fisicamente nem todas elas têm os marcos delimitados. Então, o gestor não consegue, de fato, saber onde começa e onde termina a área protegida. Isso gera vários problemas, mas no geral é esse o quadro.

IHU On-Line – O senhor comentou da necessidade de haver um manejo adequado dessas unidades. O que seria, na sua avaliação, uma gestão adequada das Unidades de Conservação?

Neison Cabral Ferreira Freire – Nós sugerimos que de imediato fossem feitos novos concursos públicos para que os quadros de funcionários dessas unidades chegassem a um grau mínimo satisfatório para que fosse possível dar conta do desafio que é fazer uma gestão nessas áreas enormes, que muitas vezes abrangem estados diferentes.

Outro problema diz respeito aos recursos financeiros dessas unidades, porque muitas delas não têm recursos para consertar um carro e uma bomba d’água.

Outras têm oito viaturas no sistema do Ministério do Meio Ambiente, mas apenas uma está funcionando, ou seja, existem muitas deficiências. Quando comparamos essa situação à de outros países – não vou nem me reportar aos países desenvolvidos -, como o Chile e a Argentina, embora eles tenham uma política menor de áreas protegidas, elas são mais eficientes do que as brasileiras. Precisamos ter uma decisão política no nível federal. Inclusive, gostaria de deixar claro que os problemas não são locais, mas federais, porque se trata da pouca ou nenhuma atenção que o governo federal dá a essas Unidades de Conservação no bioma Caatinga.

IHU On-Line – Uma das propostas discutidas no Congresso hoje é a redução de Unidades de Conservação. Qual seria o impacto da redução de Unidades de Conservação na Caatinga?

Neison Cabral Ferreira Freire – Estamos falando de um bioma que é o mais degradado e o menos estudado. Existem potencialidades com relação a recursos genéticos e fitoterápicos dentro da Caatinga que ainda não estão devidamente mapeados. Se estamos falando de Unidades de Conservação que deveriam ser as mais protegidas, enquanto estão praticamente abandonadas, fazer uma redução dessas áreas é um retrocesso dentro de uma política global de mudanças climáticas, de conservação da biodiversidade, dos impactos que as atividades humanas têm feito sobre o planeta. Então, reduzir essas áreas é um contrassenso e não é uma boa herança que vamos deixar para as futuras gerações.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?

Neison Cabral Ferreira Freire – Gostaria de dizer que essa pesquisa, chamada “Mapeamento e análise espectro-temporal das Unidades de Conservação das Caatingas”, tem como resultado o Atlas das Caatingas, que está disponível para download no site da Fundação Joaquim Nabuco, mas também estamos finalizando a edição do livro “O Atlas das Caatingas”. No site também tem um link para um vídeo-documentário que elaboramos a partir dessas entrevistas que realizamos na região, e fomos nós pesquisadores que colhemos as imagens e as entrevistas. Esse documentário é como se fosse uma viagem a essas unidades, muitas das quais não têm acesso ao público. Esse vídeo se chama “Caatingas em risco”, tem uma hora de duração e está disponível no site. Também enviamos aos chefes das unidades mais remotas, onde não há assistência nenhuma, cartas e imagens de satélites de todas as unidades, ou seja, é uma forma de devolvermos para a sociedade os conhecimentos que foram gerados na Fundação Joaquim Nabuco e na Universidade Federal de Campina Grande.

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