Lanceiros Negros: o estado contra o social

A desocupação violenta do prédio público onde moravam 70 famílias no centro de Porto Alegre deixa evidente a falta de políticas para moradia e inclinação ao autoritarismo

Por Clarinha Glock – Extra Classe

Está no Estatuto da Cidade e está na Constituição Federal: moradia é direito de todos, e a cidade deve ser usufruída por todos. No entanto, as cenas de guerra que ocorreram no Centro de Porto Alegre no dia 14 de junho de 2017, durante a expulsão de 70 famílias da Ocupação Lanceiros Negros de um prédio público, indicam que não basta ter leis.  A violência e a desumanidade na ação de reintegração de posse refletem um contexto de abandono de políticas públicas de participação popular e de incremento de técnicas de repressão dos tempos da ditadura militar.

“Com muita luta se construiu alguns espaços. Só em Porto Alegre há mais 40 mil imóveis vazios que poderiam ser utilizados para moradia. Mas o Conselho Estadual das Cidades, que teria o papel de estar dialogando, não se reúne há mais de ano”, reclamou Ceniriani Vargas da Silva, 29 anos, do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM). Ela estava em frente ao Palácio Piratini, na sexta-feira seguinte ao despejo da Lanceiros Negros, para apoiar representantes da Câmara, Legislativo e integrantes de movimentos sociais que tentaram entregar um documento ao governador do Estado, José Ivo Sartori, pedindo a demissão imediata do secretário estadual de Segurança Cezar Schirmer, em função da truculência da ação da Brigada Militar (BM). O grupo foi recebido pelo secretário adjunto. Ninguém da imprensa pôde acompanhar o encontro. O secretário continua no cargo.

As pessoas que participam das ocupações assumem para si a tarefa que não vem sendo cumprida pelo Estado, de dar o valor social a imóveis, analisa Lucimar Siqueira, pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre. Ela explica: entre os ocupantes do prédio da Ocupação Lanceiros Negros havia indígenas que não tinham onde morar enquanto estavam na cidade vendendo seu artesanato, crianças, e outras pessoas que viviam em áreas de risco ameaçadas de morte a cada enchente e que encontraram no edifício público, até então fechado durante 10 anos, um abrigo seguro, perto de escolas e trabalho.

“Esta desocupação está inserida num campo vasto de retrocessos, em que direitos que foram a duras penas inscritos na Constituição e na legislação são absolutamente desprezados e não implementados. Isso se verifica especialmente no campo dos conflitos urbanos”, diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), que entre 2008 e 2014 foi Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. “É visível o quanto, por exemplo, o conceito de função social das cidades e das propriedades, que está na Constituição de 1988 e que tinha por trás dele uma utopia de planejamento de cidade, foi completamente ignorado pelas políticas urbanas na última década”, analisa.

Nos anos 90, Porto Alegre experimentou e inovou na ideia de gestão democrática da cidade, não só com princípios, mas com práticas das lutas de vilas e favelas para permanecerem, recorda. “Desde a histórica luta da implantação da Vila Planetário, que conseguiu romper barreiras e resistências, até a experiência histórica do Orçamento Participativo”, descreve. “O caminho (contra esta situação) chama-se resistência”, acredita a professora. “As pessoas vão acabar se dando conta de que o produto destas ações são cidades cada vez mais excludentes e antidemocráticas, cidades não para viver, mas para os negócios”.

Segundo Raquel Rolnik, nos anos 90 houve um período importante de inovações em políticas urbanas e habitacionais, mas esse ciclo se esgotou com a penetração de um ideário neoliberal de cidades, que prevê parcerias público/privadas, e a geração de um complexo imobiliário e financeiro – setor totalmente dominado pelas finanças com necessidade de rentabilidade e juros.  Agora se inicia um novo ciclo de lutas, anuncia. “2013 foi um momento em que isso apareceu bastante, com a luta em torno do direito às cidades, e pautas como a mobilidade, a apropriação e ocupação do espaço público, o público como bem comum, e outras que continuam, como a questão da moradia, tema não enfrentado pra valer”, reconhece Raquel.

O último levantamento do déficit habitacional em Porto Alegre data de 2009, feito pelo Plano Municipal de Habitação. Não houve novo estudo.  “A estimativa é de que o déficit habitacional em Porto Alegre seja de 48 mil unidades habitacionais”, informa a assessoria do Demhab. Em 2015, as estimativas já estavam em 70 mil famílias sem casas, informa Nana Sanches, da coordenação nacional do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). “E há estudos que relacionam as taxas de desemprego às ocupações”, acrescenta. Quando o desemprego aumenta, as pessoas vão morar em ocupações ou lugares mais precários. “O Fórum Estadual de Reforma Urbana calcula que 500 mil pessoas vivam em ocupações em Porto Alegre, sem luz, sem água, sem regularização fundiária”, afirma.

Políticas públicas para moradia existem, enfatiza Lucimar. Porto Alegre tem um Plano de Habitação de Interesse Social que prevê planejamento, instrumentos para regularização fundiária, urbanização, e no qual o programa Minha Casa, Minha Vida estava inserido.  O problema é que, na hora da implementação, os pobres são quase sempre jogados para a periferia. A exceção está nas Vilas Tronco e Cruzeiro, em que os movimentos sociais conseguiram manter uma reserva de terra para reassentar as famílias. No entanto, até hoje não foram construídas as casas para estas pessoas. Isso acontece, explica Lucimar, porque as construtoras se recusam a construir para pobres. Quando abre uma concorrência, o Poder Público alega que não apareceram candidatos. “É um conjunto de processos que provocam a desigualdade” conclui.

Lucimar adverte ainda sobre a ameaça da Medida Provisória 759, que modificou as diretrizes legais sobre a regularização de terras urbanas e rurais no País. “A MP joga para o mercado as propriedades. Qualquer empreendedor pode comprar uma vasta área sem ter onde colocar as pessoas que ali habitavam”, critica.

Nesse cenário de desrespeitos às leis, é preocupante também o papel da Brigada Militar (BM) como protagonista da violência estatal, observa Julia Barros Schirmer, representante da sociedade civil no Conselho Estadual contra Tortura. Julia salienta que há um pacto de silêncio entre as instituições que permite à BM continuar intocável. “Não há controle externo da polícia no Rio Grande do Sul”, afirma. O Comitê constata, através de relatos e registros, como alguns padrões de violência da BM se repetem nas desocupações e reintegrações, seja com o Movimento dos Sem-Terra, dos Quilombolas, ou dos Sem-Teto. Ou ainda em outras manifestações. No episódio da derrubada do boneco Tatu Bola, em 2013, véspera da Copa do Mundo, assim como nas manifestações contra o Mundial de Futebol em Porto Alegre, no ano seguinte, houve denúncias de que soldados da BM usaram gás pimenta muito próximo do rosto de manifestantes – o que é proibido por leis internacionais.

“Na desocupação da Secretaria da Fazenda que havia sido tomada por estudantes secundaristas que defendiam melhorias nas escolas, em 2016, houve casos em que o gás pimenta foi introduzido na boca das pessoas. E há registros de que jovens foram agarradas pelas mamas por policiais, o que, além de cruel, é tortura com recorte de discriminação de gênero”, diz Julia, que conclui: mais do que incapacidade de mediação e diálogo, parece haver um treinamento voltado para o ódio. E não só da BM. Segundo Julia, foram relatadas situações em que as pessoas agredidas foram registrar ocorrência em uma delegacia e não conseguiram fazer o registro, sendo novamente vitimizadas. Ou, no Departamento Médico Legal, mulheres foram atendidas por homens. São situações que vão contra o Protocolo de Istambul, manual internacional que permite identificar tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Este protocolo foi ratificado pelo Brasil, mas ações como as da BM vem se repetindo por todo o país.

Os casos estão sendo relatados, com ampla documentação, para serem encaminhados na forma de denúncia aos organismos nacionais e internacionais de direitos humanos.  O relatório sobre a truculência ocorrida na desocupação da Secretaria da Fazenda será apresentado à população no próximo dia 26 de junho pelo Comitê contra a Tortura. “Necessitamos criar um protocolo com a BM e outros órgãos sobre como atuar em reintegrações de posse”, defende Julia. Há pelo menos 28 mandados de reintegrações de posses a serem realizadas na Capital, e não houve até agora uma reflexão crítica sobre o abuso de poder por parte das instituições.

Agende-se (atividades relacionadas ao tema)

 

23 de junho, sexta-feira, no Clube de Cultura (Ramiro Barcellos, 1853, Porto Alegre):

  • 18 horas – Nada de silêncio, ódio deve ser denunciado – debate sobre o Projeto de Lei PL 7582/2014 sobre Crimes de Ódio, de autoria da deputada Maria do Rosário, e relatos de violações de direitos humanos
  • 19 horas – A violência das políticas higienistas. Discussão sobre as intolerâncias em relação aos moradores de rua, o direito democrático à cidade e à convivência
  • Exposição “Silêncios”

 

26 de junho, segunda-feira, 10h, no auditório da PRR 4ª Região Porto Alegre (Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 800):

Reunião Pública do Comitê Estadual contra a Tortura do RS para apresentar o Relatório da Desocupação da Secretaria da Fazenda

Foto: Clarinha Glock. Pelotão de Choque da BM protege prédio desocupado no centro da cidade.

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