“Meus ancestrais foram mortos por vocês! Eu sei, eu vejo. Nós sabemos. Nós lembramos! Desde o maldito dia em que as caravelas se desenharam no horizonte, a morte chegou com seus ancestrais. E depois trouxeram acorrentados milhares, escravizados, desterrados também. E assassinaram muitos. E mancharam de sangue este solo sagrado para nós. E fizeram sobre nossos túmulos suas lavouras, suas cidades, sua riqueza. Construíram uma pátria sobre estupro e assassinato, e ainda querem ter orgulho disso.”
Por Raial Orotu Puri* – Crônicas Indigenistas
Eu as vezes fico me perguntando se existiria uma correlação entre as pessoas que assistem alguns tipos de filmes e o modo como eles encaram a realidade que os cerca. Por exemplo, pessoas que se interessam muito por filmes de guerra, teriam esse interesse específico para suprir ou situar a violência do mundo no ambiente ficcional? E pensando assim, talvez ser fã de filmes sangrentos hiper-realistas – mas ainda assim irreais – seria só uma outra espécie de escapismo, de tentativa de colocar a brutalidade, a própria ou a dos outros, em uma situação controlada, visto que ela se limita ao tempo e ao ambiente da película e não extrapola para o plano do real (pelo menos em tese, e guardadas as devidas exceções sociopatas-inspiradas, o esquema funciona bem, e os aficionados em violência fictícia permanecem sendo pessoas normais e não necessariamente capazes de atos violentos reais simplesmente porque gostam de vê-los representados no cinema).
Pessoalizando um pouco o tema: eu sempre fui muito interessada na Segunda Guerra Mundial… li uma quantidade considerável de livros e assisti outros tantos filmes sobre o tema. E no meu caso, não tem nada a ver com qualquer tipo de interesse bélico, muito pelo contrário, aliás. Meu foco quase sempre foram as narrativas sobre as vítimas, embora também tenha dedicado alguma atenção sobre a análise psicológica dos algozes. E sou levada a pensar que isso também era uma tentativa minha inconsciente de expulsar do meu cotidiano certos níveis de crueldade cujas dimensões chegam ao insuportável.
Tentativa infrutífera no meu caso, é claro, posto que a verdade que eu conheço é muito diferente, e não existe qualquer possibilidade de conforto para ela: a crueldade de dimensão insuportável não está adstrita ao que houve na Segunda Guerra Mundial, e aquele não chegou a ser o único holocausto. Nem sequer o maior deles. Da mesma forma, aqueles ódios que se colocaram na história como os mais viscerais e terríveis estão aqui, bem perto, neste lado do trópico, a despeito de serem aqui tão fora de qualquer sentido. E minha proximidade com as vítimas é indissociável, e seria impossível ignorá-la, mesmo que eu quisesse.
Nada do que eu penso é necessariamente novo e todo mundo já conhece a quase cantilena onipresente em meus escritos, acerca do fato de sermos o que resta de cinco séculos de genocídio. De fato, nada de novo. Mas ainda assim, a capacidade de me espantar ainda me relembra a condição de ser vivente, pois a mim parece que a morte se aproximará no dia em que eu for tomada de apatia e indiferença. E é assim que me vejo outra vez nesse estado, à medida que, chegando pelas redes, se somam os relatos de ameaça e violência ocorridos no Rio de Janeiro, noticiados pelos parentes, muitos dos quais de meu povo.
É, como eu disse, tudo muito igual, e nem por isso irreal: muda o cenário, mas as vítimas potenciais são sempre as mesmas, assim como é invariável o ódio. Esse sentimento tão estranho, tão feroz e absurdo. O ódio que deseja o extermínio. Motivo? Nenhum que seja racional, é claro: a simples existência, a insuportável insistência em insistir dos diferentes. E só, em síntese.
Não raro, vem a ordem taxativa: “Volta pra aldeia!”. A alternativa para quem teima é uma só: ficar e morrer; ficar é morrer. É como assinar um termo autorizando a ser vítima de toda a violência e sadismo que eles quiserem nos causar. É ser culpado da própria morte, porque, afinal, eles avisaram. Irônicos eles, não? Ignoram com todas as forças os fatos óbvios de que a cidade chegou por cima da aldeia, que a aldeia foi queimada, destruída, e foram quase todos mortos. Que a morte não é ‘só’ física, é também étnica. Que quem sobreviveu viu seu mundo ser assassinado incontáveis vezes, que carrega em si as cicatrizes de tudo o que foi morto – seus parentes, as plantas, os rios, a natureza toda; que tem de suportar a dor de não ter para onde ir, de não ter mais quase nada de si mesmo e dos seus para se agarrar e seguir em frente.
E, apesar disso tudo, seguir em frente. E talvez isso seja a causa de tanto ódio… essa indesculpável capacidade de sobreviver e se reinventar. De dizer basta. De dizer chega. De dizer que não aceita mais ser morto, que só vai para onde seu desejo mandar, e se quiser, vai ficar sim. E de fazer da vida resistência e também denúncia. De usar sua voz estridente que imita o maracá, e gritar: Meus ancestrais foram mortos por vocês! Eu sei, eu vejo. Nós sabemos. Nós lembramos! Desde o maldito dia em que as caravelas se desenharam no horizonte, a morte chegou com seus ancestrais. E depois trouxeram acorrentados milhares, escravizados, desterrados também. E assassinaram muitos. E mancharam de sangue este solo sagrado para nós. E fizeram sobre nossos túmulos suas lavouras, suas cidades, sua riqueza. Construíram uma pátria sobre estupro e assassinato, e ainda querem ter orgulho disso. Desde sempre, chegaram querendo reivindicar direitos sobre uma terra que já tinha dono, e ainda hoje insistem nessa inversão de valores, de chamar de invasor aqueles que são originários, de aculturado aqueles que eles mesmos se encarregaram de bombardear com toda a massiva imposição cultural, religiosa e moral.
Se seu mundo é caduco, o nosso se lembra: Desde 12 de outubro de 1492 vocês estão nos matando, mas nós estamos vivos. Não queremos vingança, porque nossa própria vida é a vingança maior que temos. Estamos vivos. Temos memória. Resistimos e vamos continuar resistindo. Acostumem-se.
Não foram exatamente essas as suas palavras, tampouco era sobre isso a nossa conversa, eu sei. Mas, meu amigo de análises sempre tão acertadas também não errou nesta, que eu contemplo mais uma vez, enquanto escrevo sobre o caso das recentes pichações ameaçadores que tomaram as paredes do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e no Centro Acadêmico de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e que foram levadas a público pela página do coletivo “Ocupa IFCS”. Lá estão elas, as palavras de ódio, direcionadas às mesmas vítimas de todos os tempos: indígenas, negros, minorias, todos os que não estão em conformidade com o modelo esperado dos ‘homens de bem’. Nelas também a exaltação do ódio máximo, aquele mesmo de sempre, o culto dos grandes odiadores, Nazistas.
E, claro, não posso deixar de pensar na desagradável ironia desses fatos se passarem nos setores de Filosofia e Ciências Sociais. Filosofia, aquela, do amor à sabedoria, do pensamento livre, do debate apenas no nível das idéias. Aquele ramo de conhecimento tão radioso e brilhante que poderia apontar à humanidade a porta de saída para fora da caverna das imagens turvas, que poderia mostrar-lhes a beleza inigualável de Conhecer sem subterfúgios… mas não, lá está o selo macabro que veda qualquer escapatória, representada nos dois algarismos alinhados que formam o anagrama da cegueira total. O ódio concreto, do qual não se pode escapar.
Ciências Sociais, a que reúne as áreas de Sociologia, Ciência Política, Antropologia… as áreas onde, por excelência e por obviedade, inclusão e acessibilidade deveriam ser pedras de toque. Deveriam, mas não são. Como já aludi em texto anterior, aparentemente, parece que na cabeça de uma boa quantidade de acadêmicos dessas áreas, o diferente só é aceitável enquanto objeto de estudo, nunca como colega de Academia.
Nazistas na Universidade. Eu sei: só eu com os meus valores idiotas insisto em achar isso um paradoxo. Mas tenho de admitir derrotada a verdade: talvez porque por tanto tempo o conhecimento representou nesse país uma das mais severas barreiras para o acesso de quem nunca teve espaço algum. O outro nome para Universidade é Instituição de Ensino Superior… parece que eles supõem que o ‘superior’ aqui adjetiva uma casta acima das demais, e não um mero degrau a mais de uma escada. Talvez porque lá, eles sempre estiveram entrincheirados, vendo o mundo de cima, intocáveis por trás de suas paredes brancas de hipocrisia, e seu ideal ridículo de pureza. Lá, criam-se mais separados que em quaisquer outras esferas de poder e classe.
Mas isso acabou, não foi? Nós entramos! E a reação se fez sentir. Hostilidades. Piadas. Comentários depreciativos de professores e ‘colegas’ de turma. Pichações, ameaças, coerções, humilhações. Cada aluno indígena, negro, pobre, trans – seja cotista ou não – nesse país há de ter um pequeno ou grande repertório de narrativas dessas violências. Porque esperar que na UFRJ “a maior e melhor do país” fosse diferente? Afinal de contas, na opinião dos odiadores, o que faz daquela universidade ‘a maior e a melhor do país’ é justamente o fato de ser absolutamente hermética, preconceituosa, racista e intolerante. E é assim que eles pretendem que ela se mantenha. E estão dispostos a matar para que assim seja.
Nazistas no Brasil. Aí sim, eu posso encontrar eco na minha percepção de total incongruência, já que esta ideia é ridicularizada até por aqueles que são adorados pelos discípulos tupiniquins, os precursores do movimento de ódio na Europa, que mais de uma vez advertiram dessa verdade tão óbvia: senhores nazistas brasileiros, não importa quanto ódio vocês tenham, não importa que seus ancestrais tenham chegado aqui bem depois, não importa o seu avô alemão, a sua tia austríaca, a sua mãe italiana, nem o papai português, aos olhos do mundo vocês todos não passam de um bando de latinos! E isso, trocando em miúdos, quer dizer que se as teorias de supremacia e pureza da raça viessem a persistir e o mundo tétrico que vocês tanto desejam fosse real, vocês também seriam exterminados, lado a lado com tudo o que vocês têm negado e odiado ao longo de suas miseráveis existências.
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Link para a postagem do Ocupa ICSC de 20/06/2017:
https://www.facebook.com/OcupaIFCS/posts/1865175720411597
Notícia sobre o caso no site do Globo:
https://oglobo.globo.com/rio/estudantes-denunciam-pichacoes-nazistas-dentro-da-ufrj-21496377
Notícia sobre o assassinato de Diego em 2016:
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/07/aluno-da-ufrj-e-encontrado-morto-dentro-do-campus-do-fundao-rio.html
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Imagem: Elin Bogomolnik.
*Graduada em Direito e doutoranda em antropologia pela UFPR. Mora no Acre onde atua na Divisão Técnica do IPHAN/AC e na Assessoria Jurídica da Federação do Povo Huni Kuin do Acre (FEPHAC).