Um Lima Barreto triste, visionário e ambivalente, por Lilia Moritz Schwarcz

Biografia do autor, homenageado na próxima Flip, levou mais de dez anos de pesquisas

Por Leonardo Cazes, em O Globo

RIO – No retrato da sua turma na Escola Politécnica, Afonso Henriques de Lima Barreto, ainda adolescente, não encara a câmera e mantém um olhar fixo para o lado. A fotografia — encontrada pela historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz no acervo do biógrafo do escritor, Francisco de Assis Barbosa — é síntese do deslocamento de Lima Barreto ao longo de toda vida. Negro, nascido exatos sete anos antes da abolição, de pai tipógrafo e mãe professora, o escritor teve acesso a uma educação formal para poucos.

Ao mesmo tempo, viveu a ascensão do racismo científico, que vinculava raça e degeneração. Apesar das críticas a esses pensadores, que constavam na sua biblioteca, o escritor viu o pai enlouquecer e “confirmar” as teorias que tanto combatia. Ele próprio seguiu o mesmo caminho, derrotado pelo alcoolismo e carregando em si as contradições de seu tempo. Para Lilia, foi “triste e visionário”, tal como ela coloca no título de sua biografia, lançada após mais de dez anos de pesquisas. Ao GLOBO, a autora destaca as contradições do autor, que será homenageado na 15º Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). A obra será lançada no dia 10 de julho, às 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo.

Lima Barreto já tinha uma notável biografia, de 1952, escrita por Francisco de Assis Barbosa. Por que fazer outra?

Não há só uma biografia fundamental do Lima, mas vários livros fundamentais. Não se trata de suplantar a biografia do Assis Barbosa. Eu quis fazer as perguntas que ele não fez, não porque não quis, mas porque não eram questões no tempo dele. Por que, num momento em que a questão racial no Brasil era quase um interdito, o Lima fez uma literatura afirmadamente negra? No livro todo, tento mostrar como ele usa a cor. A questão da raça é fundamental para o Lima numa época em que temas como pan-africanismo ou associativismo negro não eram temas da agenda brasileira. Esta biografia é uma volta ao escritor por uma janela diferente, do nosso tempo.

Lima leu os teóricos do racismo científico. Deve ter sido uma fonte de muita angústia para ele, não?

Sim. Todo o meu primeiro capítulo é para mostrar que esse Brasil pós-abolição era muito complexo. Os pais do Lima são descendentes de escravizados, de famílias que só conhecem a ascendência feminina, o que é também uma história brasileira. Os pais do Lima comungam um projeto de que a verdadeira libertação se faz pela educação. O pai é tipógrafo, a mãe é diretora de escola. O Lima era um leitor voraz. Fiquei muito impressionada em como ele lê essas teorias de que não comunga. Imagine o que significou para alguém como ele o conhecimento das políticas de hereditariedade, a angústia que ele sentia. Sobretudo na internação de 1919, quando ele reconhece que tem uma hereditariedade degenerada. O Lima questiona essas teorias na sua época, mas ele também as teme profundamente.

Amália Augusta, mãe de Lima Barreto, era descendente de escravos, formou-se professora e foi diretora de escola. Foto: Reprodução de Lúcia Mindlin / Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
João Henriques, pai de Lima Barreto, também era descendente de escravos e ganhou a vida como tipógrafo, contando com o auxílio do Visconde de Ouro Preto. Foto: Reprodução de Lúcia Mindlin / Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Você destaca bastante, no livro, a ambivalência de Lima Barreto. Era o seu objetivo?

Biografia não é uma avenida corrida, é cheia de bifurcação, contornos, idas e voltas. Procurei trazer um Lima complexo, com as suas ambiguidades, um Lima mais humano. Ele é contra a Academia Brasileira de Letras, mas quer entrar nela. É profundamente impactado pelos subúrbios, mas se diferencia, destaca que tem uma educação diferenciada do resto dos moradores. É muito bonito, ele está sempre deslocado. No Centro, ele é do subúrbio, no subúrbio ele é de outro subúrbio. Lima critica os bovarismos, mas é um leitor dos russos, evoca Dostoiévski o tempo todo. Por isso inscrevi essa ambiguidade no título do livro, ao combinar duas palavras que, dariam em casamento litigioso.

O livro cruza o tempo todo vida e obra. Você já sabia que Lima era tão autobiográfico?

Eu tinha uma hipótese e fui ver, mas não imaginava que daria tão certo. Num discurso que não proferiu, mas publicou, ele diz: “eu professo uma literatura militante”. Militante para ele era falar das mazelas do seu mundo. Como tudo na sua vida, ele faz uma literatura à contramão. Hoje, não há problema nenhum em dizer que o seu projeto literário é pautado na sua experiência. Mas naquele momento não foram poucos os que chamaram Lima de um autor sem imaginação. Ele também construiu uma persona literária “desagradável” porque não se conformava, denunciava qualquer instituição. No seu projeto literário, cada personagem é uma face de Lima, de Isaías Caminha até Clara dos Anjos. E tento provar que Lima Barreto vai virando seus próprios personagens.

As imagens são uma fonte importante. Nos registros, Lima foi embranquecido?

Como diz a Susan Sontag, a fotografia nasceu para mentir. Não podemos tomar essas imagens como documentos ingênuos. Desde o início da pesquisa dei muita atenção à iconografia e tive a sorte de me deparar com o acervo do Francisco de Assis Barbosa. As fotografias passaram sempre por um imenso branqueamento, que é paralelo à recepção do Lima. Ele definia sua cor como “azeitona escura”. Na primeira imagem do manicômio, ele aparece como branco, na segunda como pardo. Em quatro anos, ele mudou de cor. Como isso é possível? Essa foi uma questão inclusive para a capa do livro.

No detalhe da foto da turma da Escola Politécnica, Lima Barreto não encara a câmera, mas olha fixo para frente. Foto: Reprodução de Lúcia Mindlin / Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

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