O questionamento à identidade indígena serviu de estopim para a violência contra os Gamela no Maranhão e influenciou a repercussão do caso pelo governo estadual, federal e órgãos de imprensa
Por Ruy Sposati, no Repórter Brasil
O padre Clemir Batista está acostumado a atender doentes, mas, no dia 7 de maio deste ano, precisou lidar com uma situação especialmente delicada. Coordenador da Comissão Pastoral da Terra do Maranhão, ele entrou na ala de ortopedia do Hospital Tarquínio Lopes Filho. Procurava por Aldeli de Jesus Ribeiro, uma das vítimas do linchamento ocorrido em 30 de abril, quando mais de trinta indígenas foram atacados depois de ocuparem uma fazenda no Maranhão.
Ribeiro tinha o corpo coberto por pinos, parafusos e fios de metal, resultado de seis cirurgias. Ao lado do paciente, o padre assumiu uma tarefa difícil: mostrar para a vítima sua foto logo depois do ataque. Ribeiro ficou em silêncio ao ver sua imagem coberta em sangue, com cortes profundos nos pulsos. Suas mãos pendiam, quase que inteiramente cortadas, presas aos braços apenas pela pele.
A brutalidade da imagem, que fez o caso alcançar o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas, fez a vítima desviar o olhar. “É você aqui?” o padre insistiu. “Disseram que não era você”. Com semblante assustado, Ribeiro confirmou sua identidade em frente à câmera.
Batista precisou submeter a vítima àquela imagem e gravar o encontro para provar ao Brasil que a violência daquele dia 30 existiu.
A comprovação era necessária porque uma polêmica fora fomentada a respeito dos acontecimentos. O caso ganhou o noticiário com ênfase para a informação de que uma vítima tivera as mãos decepadas. Dois dias depois do ataque, o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), escreveu no Twitter: “Até agora, não foi localizada nenhuma pessoa com mãos decepadas.”
A Secretaria de Saúde do Maranhão, em nota, informou que “não houve decepamento (amputação) de nenhuma parte de seu corpo. As lesões foram cortantes gravíssimas, mas não levaram a amputação de nenhum membro”, informou a Secretaria de Estado da Saúde do Maranhão, por meio de nota.
A controvérsia sobre a etimologia da palavra – que define o tipo de corte nas mãos de Ribeiro – foi o início da desconstrução da versão das vítimas. Na sequência, questionamentos foram feitos sobre o conflito. Seria massacre ou um confronto? Por fim, colocou-se em dúvida a identidade das vítimas. Eles eram índios ‘mesmo’?
A pergunta partiu de moradores locais, fazendeiros e policiais. Ecoou entre figuras do alto escalão do governo maranhense. Por fim, ganhou o noticiário. Os meios de comunicação ecoaram o mesmo questionamento que provocou o ataque.
Eles são índios?
Além das mãos cortadas, Ribeiro levou um tiro de raspão no tórax, foi espancado, e quase perdeu uma perna. Os Gamela contaram cinco feridos por balas, duas pessoas com as mãos cortadas e outros quinze machucados – sendo três menores de 18 anos. Todos foram atacados por um grupo composto, majoritariamente, por moradores locais que saíam de uma manifestação onde o questionamento à identidade dos indígenas era a pauta principal.
No mesmo dia do ataque, o major da Polícia Militar Nilson Silva Fonseca referiu-se aos Gamela como “esses que dizem ser índios”. Um dia depois do crime, em nota, o Ministério da Justiça classificou os Gamela como “supostos indígenas”. O termo “supostos” foi posteriormente eliminado da nota e, num terceiro retoque, a palavra “indígena” desapareceu.
O locutor da rádio local, a Maracu AM, referiu-se a eles como gente “que se passa por índio”. O diretor da rádio, Benito Coelho, é ex-prefeito de Viana e irmão do dono das terras recém ocupadas pelos Gamela.
Além da violência recente, os questionamentos também refletem ecos do motivo histórico pelo qual os Gamela esconderam a própria identidade por décadas. Hoje, boa parte dos cerca de 1,5 mil Gamela vivem na beira da estrada. Entre os argumentos para reivindicar a demarcação de uma área, eles apresentam um documento da Coroa Portuguesa, datado de 1759. É um registro dos 14 mil hectares que eles possuíam naquela época, em documento reconhecido pelo Estado, mas que não tem validade jurídica desde a declaração de independência do Brasil, em 1822.
De lá pra cá, os Gamela foram perdendo território. No final dos anos 60, parte das terras onde viviam foi registrada em cartórios da região como propriedade privada. “Lembro da minha avó explicar que não podia falar a nossa língua porque o branco proibia, porque isso de não falar a língua facilitava da gente viver com ele”, diz Francisco Gamela. Expulsos da terra e estigmatizados, o grupo se espalhou pelos povoados da região, escondendo a identidade para se integrar à sociedade dos não-índios.
Em 2014, houve um movimento de retomada da identidade e do território. Processo maior que os Gamela, pois ocorreu com diversas etnias indígenas pelo país, já que a autodeclaração é um dos principais critérios para definir a identidade indígena no Brasil.
Quando o grupo assumiu a origem e passou a exigir a demarcação de suas terras, houve reação. “Quando o indígena deixa de ser aquele sujeito subalternizado para ser um sujeito político, de direitos relacionados à questão fundiária, eles passam a ameaçar o projeto dos ruralistas”, diz a antropóloga Caroline Leal, professora na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
O linchamento do dia 30 de abril é interpretado como uma manifestação moderna dessa perseguição histórica. O estopim para o massacre ocorreu durante a “Manifestação pela Paz”, realizada no povoado Santeiro. Ali, munido de microfone e em cima de um palco, o deputado federal Aluísio Guimarães Mendes Filho, do Podemos (ex-PTN), falava sobre os “pseudoindígenas” a proprietários rurais, parlamentares, empresários, agricultores e moradores da região. O político cresceu com a família Sarney – foi de guarda-costas a Secretário de Segurança Pública do estado. No Maranhão, o partido de Mendes Filho é presidido por Laércio Costa, que é irmão de Evilásio Costa, dono de fazendas que também estão no território reivindicado pelos Gamela.
O clima durante o discurso de Mendes piorou quando o deputado chamou os presentes à luta: “Aqui ninguém tem sangue de barata. Ninguém vai aceitar mais essa provocação”, disse. O avilte, no caso, ocorria a poucos quilômetros dali. Cerca de 30 indígenas ocupavam uma propriedade rural 22 hectares do comerciante Jamilo Aires Pinto. Inflamados pelo deputado Mendes Filho, os manifestantes decidiram agir.
Procurado, o deputado Aluísio Mendes não retornou os pedidos de entrevista feitos pela reportagem.
Há dois anos os Gamela adotaram a ocupação da área como estratégia para recuperar território. O relato é de Francisco Dias, 60 anos, um dos mais velhos da comunidade. Segundo ele, grileiros e fazendeiros expulsaram os indígenas dessas mesmas terras na década de 60. Em paralelo, diz, os cartórios da região registraram essas áreas como propriedade privada – a maioria para criação de gado e búfalos. Daí decorre a demanda dos indígenas pela demarcação. Demanda apoiada pelo Ministério Público Federal, que propôs uma Ação Civil Pública em 2016 exigindo que Funai e União criem um grupo de trabalho para produzir os relatórios de identificação e delimitação das áreas reivindicadas pelos Gamela.
Para simbolizar a retomada, os Gamela fazem um ritual conhecido como corta-arame, entendido como a libertação das terras e dos indígenas. “Mesmo que eu esteja com fome, não posso entrar [em uma área cercada] porque é o teu arame. Se eu entrar, estarei roubando. A luta contra o arame é necessária para a gente continuar sendo a gente mesmo”, diz Inaldo Serejo Gamela, que levou um tiro de raspão na cabeça e pauladas no braço durante o ataque.
Os manifestantes contrários aos índios seguiram para a área ocupada. Lá, uniram-se aos moradores do povoado Baías e cercaram a área – segundo a polícia, eram ao menos 250 pessoas. Um morador de Baías, que participou da manifestação, disse: “Aqui nunca teve índio. Isso aí é bagunça.” Os Gamela afirmam que os participantes da “Manifestação pela Paz” chegaram raivosos e armados. “Diziam que a gente era um bando de vagabundo, um bando de ladrão”, diz Rose*, indígena que pediu anonimato por medo de represálias.
Assim que os caseiros da fazenda deixaram as terras ocupadas, os manifestantes atacaram os Gamela com armas de fogo, facões, paus e pedras. “Era chuva de bala mesmo”, diz Rose*, com hematomas visíveis nas costas e nas pernas. Indígenas entrevistados relatam que uma viatura da polícia estava a 500 metros do local, mas não fez intervenções ao ataque ou prestou ajuda aos feridos.
O linchamento durou meia hora. Ribeiro, o Gamela que teve as mãos cortadas, não conseguiu fugir. “Primeiro atiraram em mim. Depois, cortaram a minha cabeça e os meus braços. Deram um chute bem aqui, na boca, que quebrou meus dentes. Eu tinha uma borduna (arma indígena feita de madeira), que um deles levou dizendo que ia ficar de lembrança de vagabundo fingindo ser índio”, disse. Para sobreviver, ele diz, fingiu-se de morto. Quando os algozes deixaram as terras, tentou escapar, mas os ferimentos graves o impediram. Então, viu os policiais que estavam na viatura. De um, Ribeiro diz ter ouvido. “Sabe por que tá (sic) acontecendo isso? A culpa é de vocês mesmos.” Ribeiro afirma que a polícia não prestou socorro. Foi um morador do bairro vizinho que o levou ao hospital.
A notícia do linchamento chegou às 17h ao geógrafo Saulo Barros, que mora a 120 quilômetros do local onde os Gamela foram atacados. Apoiador da causa, ele ligou para o major Fonseca, de Viana, uma hora e meia depois. Ele confirmou a presença da viatura no local, mas negou ter qualquer conhecimento sobre qualquer ato de violência ou feridos. O diálogo entre os dois foi gravado. Ao ouvir a informação sobre o ataque, o major afirma: “A gente ainda não sabe. Mas eu já sabia que isso ia acontecer. Porque eles vão invadir terra dos outros…”
Procurado pela Repórter Brasil, o major Fonseca não quis dar entrevista. Na presença da equipe de reportagem, porém, conversou com o advogado Rafael Silva, da CPT. “O que que o senhor queria que a polícia fizesse? Três policiais, diante de 250 pessoas armadas, com raiva. O que o senhor queria que fizesse?”, questionou o policial ao advogado. Afirmou, também, que os agentes da polícia tiveram dificuldade em pedir ajuda à própria corporação – porque, segundo ele, o rádio da viatura não funcionava no local, devido à distância. A reportagem apurou, contudo, que sinal de telefonia e internet móvel funcionam no local.
O governo do Maranhão, em nota, informou que “no dia da ocorrência, a Polícia Militar atuou por uma guarnição que estava em viatura, com três policiais que pediram apoio. Em seguida, chegaram mais duas viaturas com seis policiais ao todo. A prioridade do grupo foi cessar o conflito e preservar a vida de todos os envolvidos.” Também solicitou investigação sobre a atuação da polícia.
O Maranhão é o segundo estado brasileiro no ranking de casos de violência contra a pessoa indígena no país, depois do Mato Grosso do Sul. Em nota, o governo do Maranhão afirmou que “estão em andamento a realização de reuniões” para discutir o problema fundiário na região e “um plano de segurança para garantir a integridade dos Gamela.”
Uma semana depois do conflito, a polícia civil ainda não havia feito a perícia no local do crime. As cápsulas das balas disparadas, segundo vizinhos da propriedade, foram recolhidas pelas crianças do povoado. As marcas dos tiros seguem por lá. Os caseiros da propriedade não deram entrevista alegando obedecer a orientação do advogado Flávio Henrique Aires Pinto, que é filho do proprietário da fazenda. À Repórter Brasil, o caseiro Carlos Nascimento disse que a culpa pelo ocorrido era dos índios e, em tom premonitório, falou: “Se a Justiça não vier aqui decidir, ainda vai acontecer muita coisa.”
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Ilustração: Sanuel Buono
Vídeo: Ruy Sposati e João Diaz