Melancolia, fragmentação e a crise da práxis. Desafios da esquerda brasileira. Entrevista especial com Sabrina Fernandes

Patricia Fachin – IHU On-Line

O fato de a esquerda estar em crise não significa que ela esteja perdida ou não tenha um projeto. Ao contrário, ela “tem objetivos” e “se enxerga como um ator”, avalia Sabrina Fernandes, autora da tese de doutorado intitulada “Crisis of Praxis: Depoliticization and Leftist Fragmentation in Brazil”, defendida neste ano na Carleton University, no Canadá. “O que eu argumento é que a esquerda está em crise, sim, e essa é uma crise de práxis. Significa que o papel da esquerda em interpelar multidões, transformá-las em atores políticos como base, e assim unificar suas consciências e experiências ao redor de um projeto, está em crise. A falta de trabalho de base é um fator e sintoma disso. Também há a melancolia da esquerda. Na esquerda moderada isso se manifesta como um contínuo entreguismo à ordem política. A política de conciliação de classes do PT, que não passa de uma farsa, é exemplo disso. Já a esquerda radical está melancólica porque não sabe lidar com a hegemonia que o PT ainda possui, sente falta de um tempo de unificação e base estruturada que não vai recuperar tão fácil assim e se confunde entre autoproclamação, agitação e politização com frequência”, resume.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Sabrina também comenta o fenômeno de Junho de 2013 e suas consequências quatro anos depois. “Junho de 2013 expôs a crise das esquerdas no Brasil. Ficou evidente que havia um problema de representatividade, questões de sentimento antiesquerda, uma leitura popular de traição petista, e a inabilidade da esquerda radical de dialogar com a população que foi às ruas”. Junho, frisa, “marcou o começo de uma nova conjuntura com peso retomado para ações de rua e repercussão intensa sobre temas políticos, em especial a corrupção e a disputa entre esquerda e direita”.

A pesquisadora também analisa a situação da esquerda internacional e o desenvolvimento de novos partidos de esquerda, como o Podemos, o Syriza e a renovação do Partido Trabalhista britânico. “A renovação do Partido Trabalhista britânico, através do Corbyn já aponta para um potencial maior. Corbyn também abraça aspectos populistas, mas sua firmeza na disputa partidária, assim como o apoio formal de novos filiados causou uma certa guinada que ele se demonstra resoluto em levar adiante, especialmente quando se trata da defesa absoluta dos bens e serviços públicos na Grã-Bretanha.”

Sabrina Fernandes é doutora em Sociologia, mestra em Economia Política pela Carleton University, no Canadá, e graduada em Economia pela St. Thomas University, nos EUA. Atualmente é Pesquisadora Colaboradora Plena na Universidade de Brasília – UnB.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que tipo de reorganização está ocorrendo com a esquerda no Brasil e no mundo nos últimos anos? Qual é a razão dessa reorganização e que fatores a motivam?

Sabrina Fernandes – A esquerda brasileira sofre um processo de fragmentação profunda que é paralelo ao declínio do PT como agrupador da esquerda e seu transformismo para um partido da ordem. Isso leva à necessidade de pensar a esquerda de forma não homogênea. Pode-se falar de múltiplas esquerdas, mas uma forma mais direta de tratar é na divisão entre esquerda moderada e radical.

O processo atual no Brasil exige certa colaboração entre esses dois campos, como através de frentes, mas também vemos tensionamentos, especialmente com o crescimento da esquerda radical (parcialmente eleitoral, mas principalmente como referência de projeto), enquanto a esquerda moderada trabalha para manter sua hegemonia sobre o significado de esquerda no imaginário popular. Faz parte do processo de fragmentação, mas também da disputa de forças dissidentes dos grupos hegemônicos de esquerda para formar e propor projetos alternativos. No caso brasileiro, isso certamente se acirrou pós-junho de 2013, especialmente diante da necessidade de resistir uma contraofensiva de direita e de politizar em um cenário de crise de representação.

IHU On-Line – Quais são as principais mudanças que evidencia em relação à esquerda dos anos 60, 70, 80, por exemplo, com o que se chama de esquerda nos dias atuais?

Sabrina Fernandes – No geral, a disputa política se dá em termos bem distintos. A esquerda durante a ditadura militar lidava com problemas diferentes da esquerda sob a democracia liberal. A organização da esquerda na década de 80, especialmente ao redor do projeto PT, tinha um discurso de classe evidente, bastante atrelado ao poder sindical da época, ao mesmo tempo que se envolvia com a disputa pela democratização pós-ditadura. A base era mais militante e menos eleitoral.

A esquerda de hoje já sofre com o declínio sindical, devido a fatores como burocratização, centrais que trabalham para o patrão e não os empregados, despolitização geral, e a fragmentação da classe e transformação em precariado. A disputa democrática existe, principalmente na conjuntura pós-impeachment, mas ela já se dá de forma defensiva e preocupada com os retrocessos sofridos com os limites do modelo de democracia estabelecido. A base está bem menos militante, apesar de certo crescimento na militância após junho, e mesmo eleitoralmente para partidos como o PSOL. A conjuntura de hoje é mais fragmentada, mais despolitizada e mais distante da base do que nos anos 80. Há certo progresso, mas pouco ainda.

IHU On-Line – Alguns têm feito uma crítica de que a esquerda está perdida. É isso mesmo? Quais diria que são as razões da crise da esquerda nos dias atuais?

Sabrina Fernandes – A esquerda não está perdida. A esquerda tem projeto, tem objetivos, e ela se enxerga como ator. O que eu argumento é que a esquerda está em crise, sim, e essa é uma crise de práxis. Significa que o papel da esquerda em interpelar multidões, transformá-las em atores políticos como base, e assim unificar suas consciências e experiências ao redor de um projeto, está em crise. A falta de trabalho de base é um fator e sintoma disso. Também há a melancolia da esquerda. Na esquerda moderada isso se manifesta como um contínuo entreguismo à ordem política. A política de conciliação de classes do PT, que não passa de uma farsa, é exemplo disso. Já a esquerda radical está melancólica porque não sabe lidar com a hegemonia que o PT ainda possui, sente falta de um tempo de unificação e base estruturada que não vai recuperar tão fácil assim e se confunde entre autoproclamação, agitação e politização com frequência.

IHU On-Line – Especificamente em relação à esquerda brasileira, você defende em sua tese de doutorado a existência de dois problemas políticos: a fragmentação e a despolitização. Desde quando isso começou a ocorrer e como podemos ver suas consequências na atual política brasileira?

Sabrina Fernandes – A fragmentação não é um fenômeno recente, não existe uma esquerda ultra-homogênea. O próprio PT se estabeleceu como um partido de tendências por conta disso e ali a homogeneidade se deu mais por conta da burocratização interna do que pela formação de sínteses. Contudo, a fragmentação da esquerda, especialmente em direção à esquerda radical, se acirra com a crise do modelo petista e o cair das máscaras nesse processo. Como há essa melancolia que eu mencionei, a esquerda se fragmenta em várias organizações e projetos, mas sem a formação de sínteses e unidade permanente.

A despolitização é um fator importante nesse processo porque se refere ao derretimento da base e à dificuldade de propor projetos políticos de esquerda sem cair numa falsa dicotomia entre a direita e a esquerda moderada. Essa despolitização faz parte do projeto de direita para reproduzir o status quo, mas também do projeto lulista, porque sem ela (e sem a desmobilização e cooptação da liderança de movimentos sociais) ficaria difícil justificar um governo que falhou em cumprir as grandes promessas populares de campanha. Hoje o PT sofre as consequências das suas contradições em meio à politização através do antipetismo.

IHU On-Line – Que relações estabelece entre a eclosão de Junho de 2013 e a crise da esquerda?

Sabrina Fernandes – Junho de 2013 expôs a crise das esquerdas no Brasil. Ficou evidente que havia um problema de representatividade, questões de sentimento antiesquerda, uma leitura popular de traição petista, e a inabilidade da esquerda radical de dialogar com a população que foi às ruas.

Também se pode falar de politização e despolitização sobre Junho. A pauta inicial era classista e popular, mas na medida que a demografia de Junho foi ficando mais diversa, especialmente com a entrada em peso da classe média, as pautas mais classistas foram engolidas por uma visão mais moralista do sistema eleitoral, corrupção, e a própria ideia de representatividade. Essa parte se deu de forma bastante despolitizada, com pouca preocupação sobre as origens complexas do problema da corrupção, por exemplo, e como esta deve ser abordada também junto à crítica ao capitalismo.

IHU On-Line – Passados quatro anos de Junho de 2013, ainda se percebe ecos dessa manifestação na sociedade brasileira? Em que sentido?

Sabrina Fernandes – Com certeza. Junho marcou o começo de uma nova conjuntura com peso retomado para ações de rua e repercussão intensa sobre temas políticos, em especial a corrupção e a disputa entre esquerda e direita. A dificuldade que vemos é que a corrupção ainda é abordada de forma bastante pós-política, como se uma administração tecnocrática e falsamente não ideológica pudesse resolver esse problema, e que a disputa esquerda e direita se dá através de símbolos e a criação de inimigos, dentro da lógica da ultrapolítica, o que atrapalha uma disputa real de projetos.

IHU On-Line – Alguns pesquisadores avaliam que há uma “virada estratégica da esquerda” nos países capitalistas avançados. Na sua avaliação, há essa virada? Onde e como ela está ocorrendo e por quê?

Sabrina Fernandes – Eu não diria que há uma virada estratégica da esquerda de modo geral. O que certamente vemos é o surgimento e crescimento de algumas vozes de esquerda, tanto moderada quanto radical, buscando responder a crises econômicas e ao anseio da população por mudança – em alguns casos, qualquer mudança. A direita também tenta responder a esse anseio, o que cria uma polarização e dá a impressão de que a disputa direita x esquerda está ocorrendo de forma mais paritária. Todavia, os efeitos da despolitização beneficiam a direita mais que a esquerda, assim como o poder de discursos conservadores nacionalistas tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.

A questão estratégica falha porque o potencial dessas vozes de esquerda é, muitas vezes, minado pelos interesses tradicionais das organizações que ocupam o espaço de esquerda em cada país. Isso foi visto com Bernie Sanders e o Partido Democrata, e mesmo na Grã-Bretanha, com a tentativa de deputados do Partido Trabalhista de reduzir o potencial de Jeremy Corbyn como líder.

No caso dos Estados Unidos, a campanha de Sanders deixa um legado organizacional interessante tanto fora do Partido Democrata quanto dentro através de dissidências internas a favor do que foi classificado por ele como socialismo democrático.

No caso de Corbyn, vemos um potencial mais imediato porque ele soube mobilizar uma nova base para dentro do seu partido tradicional que forçou a mudança de posicionamento de seus burocratas e deputados. O maior apego político histórico da população britânica a respeito de serviços e bens públicos também facilita a mobilização da esquerda de Corbyn, o que foi mais difícil para Sanders por lidar com uma herança mais forte de privatização e o “eu” neoliberal.

IHU On-Line – Como você avalia e compreende os diferentes movimentos que surgiram pelo mundo, como reações da sociedade civil, e que culminaram mais tarde na criação de partidos como o Podemos na Espanha? Quais são os movimentos mais importantes que surgiram pelo mundo nesse sentido? Qual tem sido o potencial político desses movimentos?

Sabrina Fernandes – O Podemos é um partido populista com estética bastante pós-política apesar de assumir uma posição estratégica anticapitalista. Isso visa responder a uma demanda mista de resposta à crise, porém dentro de uma visão de estabilidade política específica no contexto da União Europeia. O Syriza tentou apelar para a mesma abordagem, mas a situação específica da Grécia frente a Troika empurrou o Syriza para os extremos: ou cumpria suas promessas anticapitalistas, ou capitulava. Acabou capitulando. Isso demonstra, brevemente, algum limite do populismo como tática para alcançar o poder institucional diante de uma crise política e econômica.

A renovação do Partido Trabalhista britânico, através do Corbyn já aponta para um potencial maior. Corbyn também abraça aspectos populistas, mas sua firmeza na disputa partidária, assim como o apoio formal de novos filiados causou uma certa guinada que ele se demonstra resoluto em levar adiante, especialmente quando se trata da defesa absoluta dos bens e serviços públicos na Grã-Bretanha. O tem Podemos um programa parecido nesse momento, mas não consegue mobilizar no mesmo sentido até porque faz parte de uma esquerda mais fragmentada na Espanha, versus o caso britânico.

IHU On-Line – Alguns especialistas dizem que a eleição do presidente Trump, por exemplo, é uma reação da população ao que foram os governos democratas nos EUA. Em geral, fala-se ainda do ressurgimento de “forças conservadoras” na política. Em que medida isso tem relação com o desenvolvimento dos governos de esquerda?

Sabrina Fernandes – Não houve governo de esquerda nos Estados Unidos em nenhum momento recente, mas há sim uma reação às falhas dos governos democratas. O que vimos foram governos democratas neoliberais com apelo a certas proteções individuais e civis, mas cuja política econômica não contemplou a classe trabalhadora como se esperava. Há um efeito despolitizado disso, pois enquanto parte da população migrou seu apoio para Bernie Sanders e suas propostas mais radicais economicamente, a outra parte, especialmente a que não via Clinton como alternativa, migrou seu apoio para Trump, o que tem um resultado contraditório.

Em sua campanha, Trump se beneficiou das falhas desse neoliberalismo democrata em proteger o crescimento econômico e garantir a qualidade de vida do cidadão e trabalhador estadunidense, além de seu discurso ideológico de extrema direita que apela para um nacionalismo específico como parte da solução econômica. O tom pós-político de bom gestor do capital que Trump empregou teve apelo na classe trabalhadora e na classe média, que viu seu poder aquisitivo e seu acesso a serviços importantes diminuir no último período. É bastante contraditório materialmente, mas resulta dessa combinação entre despolitização sobre as políticas econômicas e a insatisfação geral, essa última sendo mobilizada a todo custo por Trump, inclusive através do racismo quando conveniente.

IHU On-Line – Você utiliza Gramsci como referencial teórico para as suas análises políticas. Por que considera importante retomá-lo para entender as rearticulações políticas e a crise da esquerda no Brasil e no mundo atual?

Sabrina Fernandes – Conceitos gramscianos nos ajudam a enxergar as relações complexas entre modelos organizacionais, tática e estratégia, a relação entre base e vanguarda etc. Gramsci é essencial para compreender a crise e falência do PT, ao falarmos de transformismo. Ele também oferece a visão do interregnum da crise entre o que está morrendo e o que ainda não está pronto para nascer. A crise das esquerdas no Brasil se localiza nesse ponto. Daí é importante falarmos da restauração de práxis da esquerda, reformulações organizacionais de ação conjunta e projetos unificados na disputa hegemônica (podemos falar então de blocos históricos assim como a visão do príncipe moderno), o papel de politização da esquerda, entre outras questões.

IHU On-Line – O que vislumbra em relação ao futuro da esquerda tanto no mundo quanto no Brasil? Vislumbra sinais de “novidade” ou “renovação” à esquerda?

Sabrina Fernandes – No mundo, devemos prestar atenção em Jeremy Corbyn no momento, já que ele é um líder de esquerda radical dentro de um partido de esquerda moderada que representou políticas de direita no passado (o que nos remete ao PT no Brasil). O PSOL tem crescido no Brasil e vemos várias organizações migrando para dentro dele ou estabelecendo diálogo contínuo. É importante também prestar atenção no MTST, o qual se estabeleceu como um movimento social de peso que aborda uma das questões políticas e sociais mais importantes no país, que é a questão urbana. Lideranças do MTST têm ganhado referências nas massas, mas também como articuladores de alianças políticas que se diferem das práticas alinhadas ao petismo dos últimos 20 anos.

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