Colega desde os anos 1980 afirma que o relator deve encarar o desafio de tornar Lava Jato menos parcial e seletiva
Daniel Giovanaz, Brasil de Fato
O advogado paranaense Carlos Frederico Marés de Souza Filho, de Curitiba, foi um dos juristas que mais influenciou a trajetória profissional do ministro Luiz Edson Fachin, relator da operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF). Fachin não havia sequer concluído o curso de Direito e os dois já trabalhavam juntos, em conflitos relacionados à propriedade de terras. Em seguida, abriram um escritório em parceria e passaram a atuar como procuradores no Instituto de Terras, Cartografia e Geociências (ITCG) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (ITCG).
Em entrevista ao Brasil de Fato, Marés enaltece a independência do ministro Fachin e elogia a capacidade dele, como relator, de ampliar o leque de investigações da Lava Jato. Por outro lado, pondera que o amigo “sempre passou muito longe do Direito Penal”, e alerta que “já estão cortando as asas dele” para manter a seletividade da Lava Jato, em nome de interesses partidários.
Confira os melhores momentos da entrevista:
Brasil de Fato – Quando você e o Fachin começaram a trabalhar juntos?
Carlos Marés – O Fachin foi meu estagiário, portanto ele é muito mais moço que eu. Eu voltei do exílio no final de 1979. Tinha documento dinamarquês, mas estava morando na África, em São Tomé. E quando cheguei de volta do exílio, fui trabalhar no ITCG, que trabalhava com terras devolutas. O Fachin ainda era estudante, e por acaso se tornou meu estagiário. Mais tarde, ele seria procurador geral do ITCG.
O nosso grupo era muito bom. A época era difícil, porque ainda era ditadura. A questão da terra era muito presente, o estatuto da terra era novo. O Paraná tinha uma nova Lei de Terras Devolutas, de 1976, e foi naquele contexto que eu conheci o Fachin. E a gente nunca mais deixou de trabalhar juntos.
Nessa época, o Fachin estava no fim do curso [de Direito, na Universidade Federal do Paraná]. Quando ele se formou, a gente resolveu montar um escritório juntos. A Rosana [Amara Girardi], mulher dele, se formou também, mais tarde. Primeiro, ela foi estagiária do escritório, e depois titular.
A proposta do escritório era trabalhar apenas com temas relacionados à reforma agrária?
Eu sempre trabalhei com isso. O Fachin e a Rosana, não. Eles trabalhavam também com direito de família, outras questões ligadas a contratos e tal.
Mas, sim, no começo o escritório era mais voltado para as questões de terra. E, evidentemente, não para defender o proprietário de terras. Defendíamos a propriedade de terra contra a posse. O nosso objeto era a defesa dos interesses do campo, da reforma agrária. Tanto é que eu e o Fachin, mais tarde, fomos procuradores gerais do Incra.
Então, o nosso escritório tinha lado.
Até quando funcionou o escritório?
Quando eu fui nomeado presidente da Funai [Fundação Nacional do Índio] e a Rosana foi nomeada desembargadora, o escritório praticamente acabou. O Fachin só foi remontar o escritório depois, quando a filha dele se formou. Mas já era outra configuração, e não me interessava mais, porque passou a lidar mais com direito de família.
Os advogados que são mais próximos ao campo político da esquerda costumam ter uma visão crítica do Direito Penal. Você lembra de ter conversado com o Fachin sobre isso em algum momento?
O Fachin, a vida inteira, foi civilista. Inclusive, quando ele trabalhava com terras, era sempre do ponto de vista civil. A questão dele eram os conceitos de posse e propriedade, simplesmente.
Todas essas concepções de Direito Penal sempre passaram muito longe do Fachin. E o Fachin também sempre passou muito longe do Direito Penal. Ele sempre esteve muito alheio a isso, então é muito difícil identificá-lo em algum desses campos.
Entretanto, ele sempre foi muito amigo de alguns penalistas, que eram do mesmo grupo de pensamento jurídico, que têm uma visão muito crítica do Direito Penal mesmo. Por exemplo, o Juarez Cirino, que sempre foi muito próximo a mim e a ele. Eu imagino que o Juarez deve influenciá-lo, em alguma medida, do ponto de vista jurídico, teórico. Posso citar outros, nesse sentido: o Rodrigo Rios e o Jacinto Coutinho, por exemplo.
Quando eles começaram a pensar em universidade, em pensamento acadêmico, eu diria que o Fachin teve uma proximidade teórica muito grande com esses penalistas.
[Nota: Jacinto Coutinho assinou no ano passado uma carta pública em repúdio às medidas arbitrárias da operação Lava Jato. Leia aqui a íntegra do manifesto. O criminalista Juarez Cirino dos Santos atuou na defesa do ex-presidente Lula até março deste ano, e chegou a comparar a atuação do juiz Sérgio Moro à de um “inquisidor” em dezembro de 2016]
A nomeação do Fachin como ministro, em 2015, coincidiu com um momento de desmoralização do STF. De lá para cá, você entende que ele contribuiu, de alguma forma, mudar essa configuração?
O STF começou a se desfazer com o Mensalão, em 2006. Assim como o Fachin, os outros ministros não são criminalistas. A Rosa Weber é do Trabalho, o Gilmar Mendes é Constitucionalista, o Barroso também… e não tem nenhum criminalista. Então, eles fizeram um julgamento, no caso do Mensalão, sem nenhum pensamento ou reflexão mais profunda sobre o Direito Penal. Fizeram um julgamento eminentemente político, e aí se perderam.
O Fachin foi candidato ao STF umas seis vezes. E eu sempre disse que o Fachin era um jurista que tinha condições de colocar o STF novamente em discussão. Porque o Supremo teve uma posição histórica, desde 2000, extremamente negativa para os movimentos populares.
Eu achava que o Fachin entrando lá seria positivo, porque ele tem condições teóricas para isso. Mas o grande drama é que o STF virou um tribunal penal, desde o Mensalão. Não faz outra coisa, e quando faz é pífio. Mudou o papel do STF, e o Fachin não está tendo muita chance de reverter isso. Pode dar um voto ou outro, mas não resolve. É atropelado por uma pauta absurda. Não tem sentido que o STF seja o tribunal criminal do país.
Ele entrou num momento muito ruim do STF.
O Fachin assumiu, há cinco meses, a relatoria da Lava Jato. Como você analisa a postura dele até aqui?
O Teori Zavascki, que era o relator antes, eu só fui conhecer quando ele se tornou membro do Supremo. Antes ele era do STJ [Superior Tribunal de Justiça], mas não tinha nenhuma tradição de grandes causas. Tinha, sim, a fama de ser um juiz “técnico”. E essa coisa de juiz técnico é muito relativa, porque induz a pensar que o juiz é um mero aplicador de leis. O juiz que só aplica leis não aplica o bom senso, não procura os fundamentos filosóficos, éticos, para além do fundamento da lei. Ser um juiz técnico não é exatamente uma qualidade.
Apesar de alguns momentos bons, eu entendo que o Teori já estava começando a entrar nesse esquema da Lava Jato mais parcial, só para um lado, atendendo a um apelo midiático. Eu vejo que ele já estava se entregando.
O Fachin vem de uma tradição diferente, e apesar de tudo a troca foi positiva. Não tem nenhum juiz no Supremo com a independência do Fachin. Ele não joga para o apelo midiático. E a substituição foi o grande momento do STF no sentido de fazer avançar, ampliar a Lava Jato. Abriu-se o leque de investigação e demonstrou-se que a “Lava Jato de Curitiba” era parcial. Hoje, isso é muito claro. Quando estava o Teori, parecia haver certa harmonia entre a Lava Jato em Curitiba e em Brasília. Agora, não.
Como o Fachin é muito discreto, ele não dá entrevistas. Só fala nos autos. E isso também é muito positivo.
A ampliação do raio de atuação da Lava Jato coloca em alerta vários caciques da política nacional, aliados do governo Michel Temer (PMDB). Você considera que o Fachin terá condições de manter essa postura rígida nas próximas etapas das investigações?
A sensação que eu tenho é que já estão cortando as asas dele lá dentro. Já estão até fazendo novas distribuições de processos, sob o pretexto de não sobrecarregá-lo. Vai ser difícil segurar.
Existe, de fato, este dilema: de um lado, a necessidade de aprofundar o combate à corrupção, e de outro, a urgência de frear os impactos nocivos da Lava Jato?
A Lava Jato está relacionada à destruição total da política e da economia do país. Isso é muito ruim. A economia vai cada vez pior, e agora estão entrando em cena corporações internacionais, que são muito menos éticas. A sensação de que “ninguém presta” na política também não é nada positiva.
É uma encruzilhada. E, quanto a isso, o Fachin tem muito o que fazer, na relatoria. Eu acho que a grande contribuição do Fachin vai ser mesmo essa de ampliar o leque das investigações, como ele tem tentado fazer. E, ao mesmo tempo em que avança para mostrar os problemas da corrupção no Brasil, também tem conseguido mostrar a parcialidade da Lava Jato em Curitiba.
Edição: Brasil de Fato Paraná