Antonio Apurinã é um dos brasileiros marcados para morrer; ele conta que Cadastro Ambiental Rural está sendo invocado para regularizar terras griladas
Por Alceu Luís Castilho – De Olho nos Ruralistas
Um indígena ameaçado de morte no sul do Amazonas conta que os grileiros estão usando o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para expulsar quem estiver no caminho. Em entrevista ao De Olho nos Ruralistas, Antonio José Apurinã de Souza, 51 anos, conta que, em Boca do Acre, colocaram no rádio que estavam fazendo recadastramento. “Agora todo mundo tem CAR”, diz. “Por isso que entram, porque o Terra Legal liberou essas terras”.
Antonio Apurinã está entre as dezenas de brasileiros marcados para morrer por conflitos no campo. Entidades de direitos humanos e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) elaboraram uma lista provisória, em março. Mas ela não pode ser divulgada, por motivos de segurança. Apurinã foi um dos que se dispuseram a falar com o observatório, por considerar importante a repercussão na imprensa.
Pelos dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR), Boca do Acre tinha, em dezembro, 13.073 hectares declarados por proprietários com sobreposição em Terras Indígenas. O De Olho conta, desde quarta-feira (28/06), a história de um país fictício que se revela a partir dos dados do CAR. O Amazonas lidera o ranking de sobreposição. Confira a primeira reportagem da série: “Proprietários rurais declaram 15 milhões de hectares em Terras Indígenas e Unidades de Conservação“.
Até um deputado estadual paulista possui terras em Boca do Acre, município com o maior rebanho da Amazônia, estimado em 350 mil cabeças, e alvo de desmatamento. É Roberto Massafera (PSDB), ex-prefeito de Araraquara. Com um patrimônio de R$ 5 milhões, ele informou ao Tribunal Superior Eleitoral, em 2014, possuir 50% de uma gleba com 3.998 hectares em um seringal chamado Santa Apolônia.
Antonio Apurinã preside o Conselho de Organização do Povo Apurinã e Jamamadi. Mora em uma das Terras Indígenas ainda não demarcadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele fez seu depoimento ao observatório em março, em Rondônia, para onde viajou exatamente por ser um dos ameaçados de morte na Amazônia. Confira abaixo:
“Nasci em 1966 na Terra Indígena Valparaíso. Em uma gleba de 56 mil hectares, terras da União. Em 1988 meu avô já contava que o pai morou lá, está enterrado lá. Em 1991, observamos que íamos perder todas as terras. Tiravam madeiras. Em frente da aldeia, a Comunidade Nova Vida. Tudo terra que era nossa. A Secretaria do Patrimônio da União, o Instituto de Terras do Amazonas e o Terra Legal colocaram na rádio, em Boca do Acre, que governo estava fazendo recadastramento. Por isso que entram, porque o Terra Legal liberou essas terras.
A Funai reivindica a terra. Esses 56 mil hectares. De 1991 para cá estivemos três vezes em Brasília, duas vezes em Manaus, tivemos quatro audiências públicas em Boca do Acre. Identificaram quatro Terras Indígenas no município, entre elas a TI Valparaíso, onde eu moro. Mesmo assim, com cadastro do Terra Legal, todo mundo já tinha suas localidades. Mas quem morava na cidade se cadastrou também. Sabiam que uma delas era homologada pelo governo federal e que era TI. Em três dias cadastraram 2 mil pessoas. A gente quebrava castanha, tirava seringa, colhia açaí. Foi aí que começou a destruição da comunidade Valparaíso.
Pelo Lopes, pelo Japonês, pelo Amorim, que era senador aqui em Rondônia. Teve um que se candidatou a vereador e levou ônibus com pentecostais para invadir essa terra. Dentro da área indígena. Com 306 famílias, cada uma com lotes de 500 x 200 metros. Levaram de má fé. A gente tinha 200 pessoas. A maioria foi embora, porque não se dá com o gado, com usuário de motosserra.
Na fazenda União, do Tonizinho, eles estão cadastrados no sindicato rural. Se dizem pequenos agricultores. Eles vão de outras localidades. Plantam capim. Eles têm o CAR. Não têm o direito de vender. O fazendeiro só emenda e vai crescendo.
Um vereador é quem causa mais problemas. Tem três áreas de 100 hectares de frente. Proibiu nossa passagem. Na nossa Aldeia Maloca ele fica atirando, para não irmos para o Igarapé Retiro. É ele quem tira madeira, leva companheiros para pescar, caçar, dentro das nossas terras. Esse é quem me ameaça.
Mandam a gente tomar cuidado. Desde 1991 a gente não mais à tarde, não anda sozinho. Ontem fiquei admirado de ver o músico tocando [estávamos em uma reunião que se encerrou com um show], pois não posso mais sair. Em 2007, queimaram minha casa.
Só morávamos na Aldeia Maloca. Quando eles chegaram a gente se espalhou, para Aldeias Macuã, Juari, Pajaú, Canudo Novo e Canudo Velho. No Igarapé Preto. O Ministério Público tem conhecimento. Foi lá pessoalmente. O prefeito antigo nunca foi numa reunião indígena.
O vereador foi um dos primeiros que entraram para fazer o CAR. É o Idam (Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal) que faz, no Amazonas. Agora todo mundo tem.
Eu queria comprar um computador para ter uma rede social minha. Não tenho nem computador velho. Nós não podemos divulgar nosso conhecimento, nossa cultura. A gente não se expressa porque ninguém dá o direito. Está à mercê da sorte”.
O trecho abaixo fez parte de uma fala de Antonio Apurinã em público, durante reunião em Rondônia. Foi logo antes da entrevista ao De Olho nos Ruralistas:
“Quem está acabando com os povos indígenas é a pecuária. Desde 1988 a demarcação da terra indígena está parada. A cada dia que passa a gente perde a nossa floresta, flora e fauna. E o nosso povo. Pecuarista tem dois, três advogados e o indígena como eu nem sei como coloco [comida] em cima da mesa. Estamos em 3 mil hectares. O resto está tudo invadido – e pelo Terra Legal, pelo SPU. O direito do fazendeiro é o dinheiro”.