Patricia Fachin – IHU On-Line
O agravamento da crise política brasileira pode ser observado nas divisões e disputas dentro do Estado, dos partidos e da classe dominante, diz o historiador Sean Purdy à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ao avaliar a conjuntura. Segundo ele, “a inabilidade da classe dominante brasileira” em resolver a crise tem gerado “rachas” entre os setores. “Uma boa parte do empresariado e da mídia corporativa ainda aposta na possibilidade de Temer conseguir aprovar as reformas neoliberais da Previdência e Trabalhista. Outra parte, atualmente menor dado a ausência de alternativas, acredita nas reformas com ou sem Temer e, com cada vez mais instabilidade política, não vai defender Temer a todo custo”, compara.
Do lado dos partidos e do Estado, pontua, a situação também se repete. “Deputados e senadores temem que as reformas, a que a vasta maioria de brasileiros se opõe, ameaçarão suas chances para reeleição. O PMDB, o PSDB e o PSB são fortemente divididos sobre o governo Temer e as reformas. O poder Judiciário está dividido e em situação contraditória, refletindo a profunda fragmentação do sistema judiciário brasileiro, as diferenças de opinião política e o corporativismo profissional entre juízes, procuradores e PF: uma parte, inclusive ministros do STF, como Gilmar Mendes, quer poupar o governo Temer e acredita nas reformas neoliberais; outra parte quer aplicar a força plena da legislação contra corrupção a todos os políticos”, diz. E adverte: “Historicamente, tais divisões intensas no Estado, na classe dominante e na classe política realmente refletem um país à beira de uma transformação profunda, seja para o bem ou mal”.
Sean Purdy também avalia a crise da esquerda brasileira, a atuação do PT nos últimos anos e defende a construção de uma esquerda alternativa ao PT. “Precisamos de uma candidatura de esquerda que consiga unificar as diversas forças da esquerda com um programa no mínimo antineoliberal que retire as lições de uma década e meia de governos petistas. Mas esse deve ser um processo de discussão nas bases dos partidos e não só uma decisão dos dirigentes”, conclui.
Sean Purdy é doutor em História pela Queen’s University, no Canadá. Atualmente é professor de História da Universidade de São Paulo – USP, onde ensina a história de movimentos operários e sociais nas Américas. É autor de um livro sobre a atual crise brasileira, Brazil at the Precipice: the Workers’ Party, Crisis and Resistance (Verso: London/New York, no prelo).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a sua leitura da conjuntura atual? Que fatores têm contribuído para deixar a conjuntura ainda mais difícil?
Sean Purdy – A conjuntura é caracterizada pela profunda crise econômica e política, mas também é contraditória e instável. De um lado, temos uma forte tentativa do governo de Temer, sua base aliada no Congresso, o empresariado e grupos da direita na sociedade civil, como Vem pra Rua e Movimento Brasil Livre – MBL, de aprovar claros retrocessos legislativos na área de direitos sociais e trabalhistas, sem falar de reduções em proteções ambientais e projetos perigosos como a Escola sem Partido e contra a “Ideologia” de Gênero. Podemos acrescentar o aumento de ações policiais letais nas favelas e periferias de todas as cidades grandes do país em que jovens negros e pobres são mortos pela polícia, a violência contra a comunidade LGBT e a continuação de políticas brutais contra os povos indígenas. Alguns autores como Felipe Demier e Rejane Hoeveler têm caracterizado isso como parte de uma “onda conservadora”.
De outro lado, temos uma clara falta de legitimidade popular, democrática e moral para tais iniciativas, rachas dentro das classes dominantes sobre como resolver as crises e o começo de uma resistência forte das forças populares representadas mais proeminentemente nas greves gerais de 28 de abril e 30 de junho de 2017, mas também pelos movimentos contra o impeachment em 2016 e as ocupações secundaristas em 2015-2016.
Os fatores que têm contribuído para deixar a conjuntura ainda mais difícil são a inabilidade da classe dominante brasileira em resolver uma crise que faz parte de outra, muito mais ampla e global e a dominância e/ou forte influência do PT na esquerda e nos movimentos sociais e sindicais, que tem tentado restringir os movimentos da resistência a uma estratégia focada mais nas futuras eleições ao invés de movimentos da rua. Nessa altura, é possível dizer que a crise política e econômica está longe de ser resolvida no país e vai depender muito da habilidade das forças populares e sindicais de barrarem os retrocessos, de forçar Temer a se demitir e construir uma alternativa política viável. Acredito que esta só pode vir através da queda do governo Temer, da derrota das reformas e eleições diretas já para presidente e Congresso.
IHU On-Line – Alguns analistas avaliam que há uma disputa interna entre setores distintos em relação à manutenção do presidente Temer no cargo, porque a Confederação Nacional da Indústria – CNI pede a permanência do presidente no cargo, mas alguns veículos, como a Globo, investem na saída dele. Que disputas há em relação a essa questão? Como diferentes grupos de interesse têm se manifestado sobre isso?
Sean Purdy – Uma boa parte do empresariado e da mídia corporativa ainda aposta na possibilidade de Temer conseguir aprovar as reformas neoliberais da Previdência e Trabalhista. Outra parte, atualmente menor dado a ausência de alternativas, acredita nas reformas com ou sem Temer e, com cada vez mais instabilidade política, não vai defender Temer a todo custo. A Globo e outras mídias corporativas querem Ibope e audiência e têm sentido os ventos de oposição popular às evidências da profunda corrupção do governo Temer, mas é importante enfatizar que elas apoiam as reformas neoliberais. Os empresários sabem que é preciso estabilidade política para avançar as reformas e a evidência de corrupção no governo Temer as impede. Se Temer não consegue aprovar a reforma trabalhista no Senado, os setores empresariais provavelmente vão retirar o seu apoio e isso teria um agudo impacto na base parlamentar que apoia o governo.
A profundidade da crise reflete-se nessas divisões dentro do estado e dos partidos. Deputados e senadores temem que as reformas, a que a vasta maioria de brasileiros se opõe, ameaçarão suas chances para reeleição. O PMDB, o PSDB e o PSB são fortemente divididos sobre o governo Temer e as reformas. O poder Judiciário está dividido e em situação contraditória, refletindo a profunda fragmentação do sistema judiciário brasileiro, as diferenças de opinião política e o corporativismo profissional entre juízes, procuradores e PF: uma parte, inclusive ministros do STF, como Gilmar Mendes, quer poupar o governo Temer e acredita nas reformas neoliberais; outra parte quer aplicar a força plena da legislação contra corrupção a todos os políticos. Historicamente, tais divisões intensas no Estado, na classe dominante e na classe política realmente refletem um país à beira de uma transformação profunda, seja para o bem ou mal.
IHU On-Line – Qual foi o impacto das delações dos donos da JBS no atual cenário político?
Sean Purdy – O impacto é muito forte: é a primeira vez que um presidente do Brasil enfrenta um processo criminal durante seu mandato e tem aprofundado a crise política. Com certeza, tem até baixado o já baixíssimo nível de aprovação de Temer entre os brasileiros. Mostra claramente a profundidade das relações ilícitas entre empresários e políticos não só do governo Temer, mas dos governos do PT. Além disso, mostra a bizarra decadência da classe política no Brasil: uma minoria expressiva do Congresso, pelo menos sete ministros do governo federal e o próprio presidente (sem falar de muitos políticos estaduais e municipais) enfrentam acusações criminais fortes e lutam com unhas e dentes para se manter no poder. Num país minimamente democrático, esses políticos já teriam se demitido para enfrentar o processo judicial afastados de poder formal.
IHU On-Line – Quais são as razões que levaram à crise do PT? Como, na sua avaliação, o partido tem se movido em meio à atual crise política do país?
Sean Purdy – O PT nasceu como um partido contra a ordem e tornou-se um partido da ordem. Muitos dos seus membros são militantes progressistas e sinceros, mas a direção do partido optou pela conciliação de classes ao invés de luta de classes. Incorporou no governo e no próprio Estado muitas lideranças partidárias, especialmente sindicalistas, tornando o partido uma verdadeira máquina política. O partido abraçou certas políticas neoliberais enquanto avançou algumas reformas que dependiam da próspera (mas precária) economia de exportações. Quando a crise econômica global chegou no Brasil, o governo da Dilma começou a aprofundar políticas neoliberais, inclusive reformas da previdência e trabalhista e massivos cortes aos gastos sociais. Fez alianças espúrias com a classe política tradicional (inclusive com apoiadores da ditadura militar com sangue nas suas mãos) e influenciou os movimentos sociais e sindicais a aceitar essa conciliação. E é bastante claro que muitos políticos do PT ao longo dos governos Lula e Dilma compartilharam das velhas práticas de corrupção apesar de retoricamente apelar para ética na política. Há aspectos únicos da trajetória do PT, mas creio que vale a pena o colocar no contexto da democracia social/reformismo no mundo inteiro que teve trajetórias semelhantes. Meus colegas da USP, Lincoln Secco e Ruy Braga, têm mostrado a transformação do PT numa série de artigos e livros.
A política de conciliação do PT continuou durante todo o processo de impeachment e o primeiro ano do governo Temer. Por mais que pareça estranho, líderes do PT aconselharam cautela ao movimento das ruas contra impeachment. O PT continua sua política desastrosa de alianças com partidos golpistas nas eleições municipais no fim de 2016 e teve seu pior desempenho desde os anos 1990. Agora, os líderes do PT, enquanto estão formalmente apoiando eleições diretas, não têm mobilizado seus quadros com a força necessária, apostando na eleição de Lula em 2018. Isso explica também a mobilização tardia e de pouco esforço da CUT nas greves gerais. Creio que o governo Temer só não caiu ainda por causa disso.
IHU On-Line – Recentemente alguns membros do PT se reuniram com membros do MTST, sem a presença do ex-presidente Lula, para criar uma articulação de esquerda para além do PT. Em contrapartida, o ex-presidente Lula tem sugerido que a esquerda se rearticule em torno do PT para fortalecê-lo. Como o senhor avalia essas duas possibilidades? O que é melhor para a esquerda neste momento, manter-se atrelada ao PT ou desvincular-se dele?
Sean Purdy – A esquerda tem que construir uma alternativa além do PT. É bastante claro para mim que o projeto do PT está exaurido para qualquer tipo de alternativa da esquerda. Os líderes do partido nem têm feito qualquer tipo de autocrítica mesmo que setores da base critiquem a trajetória de alianças e a adoção de pilares essenciais do neoliberalismo. Precisamos de uma candidatura de esquerda que consiga unificar as diversas forças da esquerda com um programa no mínimo antineoliberal que retire as lições de uma década e meia de governos petistas. Mas esse deve ser um processo de discussão nas bases dos partidos e não só uma decisão dos dirigentes.
Os movimentos sociais e sindicais e os partidos à esquerda do PT (PSOL, PCB, PSTU e vários outros grupos) têm que se unir para construir uma alternativa de verdade, sem toda a bagagem negativa do PT. Acredito que só isso pode atrair os melhores quadros do PT. Mas o debate tem que acontecer nas bases dos partidos e movimentos.
IHU On-Line – Como o senhor descreveria a situação pela qual passa a esquerda brasileira no Brasil hoje? Ela vive uma crise? Por quê?
Sean Purdy – A esquerda além do PT está relativamente pequena e fragmentada, mas conseguiu construir algumas ações importantes em certos lugares. Falo dos partidos da esquerda e dos movimentos sindicais e sociais não controlados pelo PT. Há também movimentos como as ocupações dos secundaristas que não tinham afiliação partidária, mas eram movimentos da esquerda. Porém, o maior problema é a dominância do PT: o que passa por “esquerda” entre muita gente é o PT. Apesar da boa vontade de muitos militantes do partido, a atuação de conciliação e acordos com capital dos dirigentes partidários e seus governos têm manchado a esquerda. Vai demorar para superar isso. Temos que construir uma esquerda que vai além da democracia social do século 20.
Como Ruy Braga assinala: “Se houvesse uma democratização radical da luta política no país com desenvolvimento de alternativas de democracia participativa, os setores majoritários do PT seriam simplesmente eliminados da cena política, por seu burocratismo, dirigismo e autoritarismo. Eles não teriam espaço numa cena política democrática renovada”. Por causa disso, a revolução brasileira terá que ser da classe trabalhadora como um todo, mas também negra, feminina, indígena e ecossocialista. É claro que isso seria um difícil processo de construção, mas se não dermos os primeiros passos agora, vamos estar no mesmo buraco no futuro.
IHU On-Line – Sociólogos e cientistas políticos se dividem na leitura do que ocorreu no Brasil em Junho de 2013. Como o senhor interpreta as manifestações daquele período? Elas já sinalizavam a crise da esquerda? Quais as consequências dessas manifestações hoje?
Sean Purdy – Acredito que as Jornadas de Junho de 2013 abriram a possibilidade para a democratização radical que eu mencionei acima. Junto com o número recorde de greves de 2012-2014 no país, inclusive importantes greves dos garis no Rio e professores em vários estados, mostraram que a política de conciliação de classes do PT e seu tímido projeto de neoliberalismo social se esgotaram. Colaboro ativamente com o blog Junho, organizado pelos colegas Marcelo Badaró, Álvaro Bianchi e outros, que parte do pressuposto de que Junho de 2013 ofereceu uma ótima oportunidade para construir uma alternativa na esquerda entre jovens trabalhadores precarizados. Vários estudos mostram que foi justamente essa nova classe trabalhadora que participou ativamente nas Jornadas. Começando com a luta contra o aumento da tarifa no transporte público e depois levantando bandeiras mais gerais sobre a falta de mobilidade urbana, a pior qualidade de serviços públicos e os bilhões gastos em megaeventos, o movimento tomou todos os partidos da esquerda de surpresa. A esquerda não conseguiu aproveitar esse momento, mas continua como um ponto de referência para uma alternativa à esquerda burocratizada, autoritária e conciliatória, representada pelo PT.
É uma enorme desonestidade intelectual e política dizer, como muitos dirigentes petistas e alguns analistas, que as Jornadas de Junho abriram a porta para impeachment e a onda conservadora. É verdade que forças da direita tentaram cooptar o movimento nas últimas manifestações das Jornadas, mas grupos da direita já estavam se organizando antes de 2013. O que alimentou o surgimento da direita depois de 2013 foi justamente a inabilidade do governo federal da Dilma e a máquina do PT resolver a crise econômica e política pelos velhos meios de conciliação com forças conservadoras na política e na sociedade. Ao invés de enfrentar a direita e atender as reivindicações do povo brasileiro, Dilma adotou aspectos do discurso da direita e fez uma virada à direita depois das eleições de 2014, que ela ganhou através da mobilização da sua própria base. Já antes das eleições, no decorrer das Jornadas de Junho o governo Dilma prometeu cinco pactos sociais (por responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação) com a população brasileira, mas o único que seu governo instituiu foi o de responsabilidade fiscal. Todos os outros pactos não só foram ignorados, mas também os serviços públicos pioraram com a crise econômica e os ajustes fiscais do próprio governo Dilma.
Não podemos esquecer a respeito disso a enorme injustiça que o jovem catador de lixo carioca Rafael Braga sofreu, sendo preso em 2013 por portar Pinho Sol e depois condenado a 11 anos por ter uma pequena quantidade de drogas. De fato, a política de segurança dos governos Dilma (e Lula antes) aumentou a repressão aos setores mais pobres da sociedade, seja por meio das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs ou da violência policial direcionada contra populações de jovens pobres e negros e manifestantes contra a Copa do Mundo, por exemplo. Como é que um governo da “esquerda” pode aumentar repressão e construir mais prisões? Como é que um governo da “esquerda” podia aprovar uma lei “antiterror” (na véspera da votação do impeachment) que aumenta a repressão?
Sou contra o golpe institucional que aconteceu em 2016, mas não podemos avançar a luta por justiça social se não entendermos o papel do próprio governo do PT em abrir as portas para os retrocessos sociais e econômicos.
IHU On-Line – Um tema que está em debate nos últimos anos é a situação dos governos ditos progressistas na América Latina. Alguns especialistas dizem que esses governos foram muito mais liberais do que progressistas. Historicamente, como o senhor avalia a atuação de governos progressistas na América Latina? Essas críticas feitas aos últimos governos têm sentido?
Sean Purdy – Diria que os governos da “Pink Tide” (onda cor de rosa) na Venezuela, Equador, Bolívia e Brasil entregaram reformas importantes para suas populações, mas não transformaram a economia e a política e acabaram defenestrando os próprios movimentos sociais que os levaram ao poder. Como meu colega canadense, Jeffery Webber, analisa, as reformas modestas e aumentos no poder de consumo acabaram sendo os objetivos finais da luta ao invés de meios para transformação social e econômica radical. Os governos progressistas desencorajaram a luta social dos de baixo ao invés de encorajar uma mudança no balanço de forças de classe que favorecessem a classe trabalhadora, os indígenas etc.
Agora que a crise econômica chegou plenamente ao continente e a direita se renovou (com a ajuda de imperialismo) mesmo as reformas modestas estão ameaçadas. São lições importantes para a esquerda no Brasil e no mundo como um todo: o Estado capitalista não pode ser transformado por dentro. Como Webber escreve: “Uma revolução anticapitalista precisa da criação de novas formas de solidariedade e organização econômica, a institucionalização de novas formas sociais e políticas de luta e a extensão de modalidades de poder popular de baixo, fora e contra o Estado burguês…”