“O mais famoso dos primeiros detetives da Scotland Yard lembra, de longe, os tenazes procuradores e juízes de Curitiba, Brasília e arredores, empenhados em desdobrar em acusações as suas convicções arraigadas em sua personalidade. Mas há diferenças gritantes. A mais importante delas é a de que, uma vez estabelecida a sua convicção, o trabalho do detetive se concentrava na obtenção de provas materiais que a corroborassem. Sem isto, o caso desabava.”
Por Flávio Aguiar, no blog da Boitempo
Estou lendo um livro magistral, que tod@ brasileir@ versad@ em inglês deveria ler: trata-se de The Suspicions of Mr. Witcher or The Murder at Road Hill House, de Kate Summerscale. (Alô alô editoras, se alguma quiser me contratar para traduzi-lo, estou à disposição…). O livro, escrito em tom de romance policial, relata um caso verdadeiro, o do assassinato de um menino naquela referida casa, em meados de 1860, na Inglaterra Vitoriana.
Acontece que ele faz uma minuciosa reconstituição do Zeitgeist, o espírito do tempo, associado ao surgimento de alguns dos personagens que dominarão, entre outros, a cena do romance europeu do século XIX: o criminoso anônimo, o crime secreto, e o detetive que vai atrás do suspeito para transformá-lo em réu.
Ao contrário do que pode parecer, o detetive moderno foi uma criação do século XIX. Sua primeira aparição se deu literariamente: C. Auguste Dupin, situado em Paris pelo genial Edgar Allan Poe, em seus contos “Os crimes da rua Morgue” (1841), “O mistério de Marie Roget” (1842) e “A carta roubada” (1844).
Mas ele – o detetive – logo transpôs as fronteiras da literatura para desembarcar na vida real. Antes mesmo da publicação do segundo conto da série de Poe com Dupin, em Londres, diante da nova realidade das grandes massas urbanas concentradas em espaços exíguos, como os pobres das periferias e as classes medias dos bairros remediados, além dos burgueses e aristocratas, em 1842 o governo inglês criou a famosa Scotland Yard, com oito detetives inicialmente nomeados.
Eles diferiam dos policiais comuns. Trajavam roupas civis. Embora vindos de classes pobres, passavam a integrar um corpo de elite – em trajes, comportamento, poderes e, sobretudo, preparo. Eram treinados para e desenvolviam um acurado senso de observação. Diante dos crimes misteriosos que se multiplicavam, uma vez que o capitalismo em consolidação criara ou potencial ao mesmo tempo o individualismo e o anonimato em massa, o narcisismo e a dissolução da identidade, o detetive se notabilizava pela perspicácia, pela perseverança, pela meticulosidade e pela tenacidade em perseguir aqueles a quem suspeitava. Além disto, o detetive típico deveria seguir as suas intuições, logo transformadas em convicções.
Em suma, aquele detetive inglês criado na vida real a partir de 1842 se assemelhava, e muito, aos procuradores da nova vida real brasileira deste primeiro quartel da vida brasileira no século XXI. O que comprova, de quebra, que muito do que se propala como pós-moderna invenção acadêmica, como isso da importância das convicções e da lógica na perseguição ao suposto ou cometido crime, nada tem de muito original.
O mais famoso dos primeiros detetives da Scotland Yard – Jonathan (Jack) Whicher, protagonista do livro que estou lendo –, lembra, de longe, os tenazes procuradores e juízes de Curitiba, Brasília e arredores, empenhados em desdobrar em acusações as suas convicções arraigadas em sua personalidade. Além disto, Whicher, reconhecidamente, inspirou a criação de uma plêiade de detetives ingleses, incluindo o famoso Sherlock Holmes.
É. Mas há diferenças gritantes. A mais importante delas é a de que uma vez estabelecida a sua convicção, o trabalho do detetive se concentrava na obtenção de provas materiais que a corroborassem. Sem isto, o caso desabava. Não vou revelar os meandros do caso estudado no livro de Summerscale. Porém posso dizer, sem comprometer o suspense do livro, que a obtenção da prova – ou sua ausência – é a chave do desdobramento do seu enredo.
Outro detalhe importante, estabelecido pela rígida magistratura britânica, é o de que em nenhum momento a falta de provas se torna incriminatória em relação ao acusado. Hoje, o que se vê na roda de suspeições aventadas contra um certo acusado a quem se deseja alijar da competição presidencial, é a alegação de que a eventual falta de provas é a “prova” de que ele as destruiu e por isto é culpado. Ou seja, chega-se a uma espécie de salto triplo sobre a lógica aristotélica: a prova da culpa do acusado é a falta de provas contra ele. Nem toda a dialética da contradição, de Platão a Marx, pode sustentar tal lógica, ou falta de.
Em resumo, falta a tais defensores de tal lógica, e seus fanáticos seguidores que saem (hoje mais nas redes do que na rua) brandindo suas “convicções”, um pouco mais de leitura.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés(2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.