A MP 759 e a ampliação da grilagem da terra, da concentração fundiária e da expropriação da terra. Entrevista especial com Sérgio Sauer

IHU On-Line

A Medida Provisória – MP 759, que dispõe sobre a regularização fundiária e urbana e sobre a regularização fundiária na Amazônia Legal, entre outras questões, aprovada no Senado e na Câmara dos Deputados, irá alterar, se sancionada pelo presidente Temer, uma dezena de leis do ponto de vista político e legal. Todas essas mudanças irão “piorar ou aprofundar a lógica de mercado, ou seja, liberar mais terras para a apropriação privada”, diz o sociólogo Sérgio Sauer na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Entre as alterações jurídicas decorrentes da MP 759, Sauer menciona mudanças na Lei da Reforma Agrária e do Programa Terra Legal. Segundo ele, modificações na Lei da Reforma Agrária irão permitir que as áreas desapropriadas sejam pagas em dinheiro. “Sem desconsiderar críticas sobre os limites do instrumento da desapropriação, como uma forma punitiva contra terras que não cumprem a função, a Lei de 1993 estabelecia que a terra nua deveria ser indenizada em Título da Dívida Agrária (resgatáveis em alguns anos), mas agora o Incra pode pagar em dinheiro. Isto dá liquidez ao processo, portanto, passa a ser única e exclusivamente um negócio, reduzido a uma transação de compra e venda”.

Se sancionada, a MP também irá regularizar “a ocupação de terras públicas” na Amazônia Legal. “Estas formulações, no mínimo, abrem possibilidades para a legalização de laranjas, ou seja, a regularização de áreas por pessoas que não estejam efetivamente na posse das terras”, adverte o sociólogo.

Na avaliação de Sauer, a MP 759 não deve ser analisada isoladamente, mas em conjunto com uma série de outras medidas. “Da CPI da Funai/Incra – e seus indiciamentos absurdos que procuram deslegitimar os defensores de direitos – ao cancelamento de parque estadual para beneficiar ministro detentor de terras, passando pela MP 759 (e outras medidas), o objetivo é atender ao mercado de terras e à expansão dos negócios, especialmente a expansão das fronteiras agrícolas, apropriação de mais terras pelo modelo hegemônico de desenvolvimento agropecuário, resultando em mais concentração fundiária, exclusão e expropriação da população pobre do campo”, diz.

Sérgio Sauer é graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST, de São Leopoldo, e em Filosofia pela Universidade Católica de Goiás. É mestre em Filosofia da Religião pela School of Mission and Theology – University of Bergen, da Noruega, e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília – UnB, onde atua como docente. Foi responsável pela organização de vários livros, dos quais destacamos Capturando a terra: Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma agrária de mercado (São Paulo: Expressão Popular, 2006), Conferência nacional da terra e da água: reforma agrária, democracia e desenvolvimento sustentável (São Paulo: Expressão Popular, 2007) e Encontro nacional dos povos do campo: por dignidade e justiça (São Paulo: Expressão Popular, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se deu o processo de votação e aprovação da MP 759, que trata sobre a regularização fundiária rural e urbana? Como avalia a aprovação da MP 759 no Senado?

Sérgio Sauer – Mais uma medida provisória que seguiu, até certo ponto, os ritos legislativos, ou seja, o recebimento do texto original no Congresso foi acompanhado da abertura de prazo para a submissão de emendas parlamentares. Foram apresentadas 732 emendas, sendo que a esmagadora maioria piorava ainda mais as mudanças nas leis relacionadas a terras urbanas e rurais. Além da complexidade histórica do tema “terra” – tanto do ponto de vista político como legal –, a MP alterou textos de uma dezena de leis, e o relatório aprovado no Congresso possui mais de 600 páginas. Essa complexidade, associada a interesses de determinados grupos ou personagens da Bancada Ruralista, tornou o processo de difícil compreensão e deu cobertura ao discurso de que as mudanças visam desburocratizar processos. Simplificando os termos, o objetivo foi facilitar a titulação de terras, instituindo mecanismos “para aprimorar os procedimentos para alienar imóveis da União”, como expressa a própria ementa do Projeto de Lei de Conversão – PLV nº 12.

Além de todo o imbróglio político, ou justamente por causa dele, a tramitação foi questionada com Mandado de Segurança de Senadores de oposição ao atual governo. O STF acatou o pleito e mandou o texto aprovado voltar para a Câmara. A Câmara tem que analisar e aprovar novamente, pois a votação no Senado fez mudanças de mérito e não apenas de redação, como argumentou o relator.

Apesar das críticas e oposição às muitas mudanças, a MP foi aprovada, com muitas alterações. Repito: Todas alterações para piorar ou aprofundar a lógica de mercado, ou seja, liberar mais terras para a apropriação privada.

IHU On-Line – O que muda em relação à regularização fundiária urbana e rural com a aprovação da MP?

Sérgio Sauer – Como disse, a MP 759 – e o Projeto de Lei de Conversão nº 12, no Congresso – fez muitas mudanças no arcabouço jurídico fundiário. Não é a minha área de estudo, mas entidades urbanas afirmam que a MP alterou muitos dispositivos sobre a regularização fundiária urbana, retroagindo em avanços que haviam sido alcançados em termos de direitos à cidade. Alterou significativamente a Lei 11.977, de 2009, a lei do Programa Minha Casa Minha Vida, revogando todo o capítulo que disciplinava a regularização fundiária de assentamentos urbanos.

Ainda no caso da regularização fundiária urbana, as mudanças desconhecem avanços conquistados como, por exemplo, a compreensão de que a regularização fundiária urbana também é uma ação complexa, que envolve regularização urbanística, ambiental e jurídica. A parte jurídica, que é a entrega de títulos aos moradores, é a última fase de um processo e, em geral, não pressupõe a individualização de propriedades, devido às características desses assentamentos urbanos.

As novas regras são especialmente permissivas para a regularização fundiáriadaquelas ocupações que não se enquadram como baixa renda, os condomínios fechados ou loteamentos clandestinos. Nesses casos, a titulação foi facilitada, não se exigindo sequer tempo de posse (a data limite passa a ser a da edição da própria MP) ou qualquer outra contrapartida.

Como os meus estudos estão direcionados ao campo, estou procurando compreender as principais mudanças na chamada Lei da Reforma Agrária, que é a Lei 8.629, de 1993, e na Lei 11.952, de 2009, que instituiu o Programa Terra Legal, que foi criado para regularizar posses em terras da União na Amazônia.

IHU On-Line – Em que aspectos, especificamente, a Lei da Reforma Agrária e a Lei do Terra Legal são alteradas com a aprovação da MP?

Sérgio Sauer – É bastante difícil nomear as principais diante de tantas mudanças, mas destaco algumas como, por exemplo, a mudança na Lei da Reforma Agrária, permitindo que as áreas desapropriadas sejam pagas em dinheiro. Sem desconsiderar críticas sobre os limites do instrumento da desapropriação, como uma forma punitiva contra terras que não cumprem a função, a Lei de 1993 estabelecia que a terra nua deveria ser indenizada em Título da Dívida Agrária (resgatáveis em alguns anos), mas agora o Incra pode pagar em dinheiro. Isto dá liquidez ao processo, portanto, passa a ser única e exclusivamente um negócio, reduzido a uma transação de compra e venda.

Ainda em relação à Lei da Reforma Agrária, houve mudanças nos procedimentos para a consolidação dos projetos de assentamentos. Deve ser considerado consolidado o assentamento com quinze ou mais anos de implantação e os criados a partir de 2017 em três anos de implantação. Este processo de consolidação deverá acontecer independentemente de se as famílias tiveram acesso aos créditos de instalação e da condição de execução dos investimentos públicos. Na prática, significa que o Incra deixa de ter qualquer responsabilidade sobre o projeto, tendo ou não cumprido suas obrigações constitucionais. A desobrigação de qualquer tipo de assistência por parte do governo federal levará a uma maior precarização das condições nos assentamentos.

Associado aos procedimentos de consolidação, foram feitas mudanças na titulação dos lotes. Uma retira das famílias a opção de escolha – optar por um título de concessão de uso –, passando a ser atribuição exclusiva do Incra a decisão sobre a emissão do título dos lotes nos assentamentos (que poderá ser com títulos individuais). Sem falar na redução significativa nos prazos, período em que as famílias contempladas ficam impedidas de comercializar esses títulos. Isto significa, na prática, colocar um imenso estoque de terras à disposição do mercado, pois retira a assistência governamental e reduz os prazos de alienação dos lotes, abrindo o “balcão de negócios”.

Quero ainda chamar a atenção para um ponto que simboliza as reais intenções de todas essas mudanças. O texto aprovado abre a possibilidade (associado aos artigos sobre titulação) de que as famílias assentadas “celebrem contratos de integração” (trazendo dispositivo da Lei 13.288, de 2016, que trata justamente de contratos de integração). Isto contraria a proposta original da Lei Agrária, que associava o direito à terra ao compromisso da família de cultivá-la, proibindo sua cedência e uso por terceiros, inclusive era proibido o arrendamento dos lotes por terceiros.

IHU On-Line – A aprovação da MP 759 tende a aumentar a grilagem de terras?

Sérgio Sauer – Acho que a grilagem fica mais clara no caso das mudanças no Terra Legal, mas o risco está também nas regras estabelecidas para os assentamentos. O melhor exemplo está relacionado às ocupações irregulares de lotes. Agora os ocupantes irregulares – somente aqueles que não se enquadram como beneficiários dos programas de reforma agrária – serão notificados para desocupar a área.

Além de apenas notificar (não há qualquer dispositivo ordenando o que fazer além da notificação), todos aqueles que ocupam “lotes sem autorização do Incra” poderão ser regularizados, desde que não haja vedação (outro artigo que impede o acesso a lotes por servidores públicos e outros poucos casos) de ocupações até 4 módulos fiscais. Como a esmagadora maioria, se não a totalidade, dos projetos é de lotes com meio ou, no máximo, um módulo, abriu-se a possibilidade de regularizar ocupações de vários lotes. Estes dispositivos permitirão uma regularização em massa, inclusive de vários lotes por uma mesma pessoa, sem qualquer mecanismo efetivo para coibir abusos e retomar lotes que estão em mãos de pessoas que, efetivamente, não se enquadram nos programas de reforma agrária. O resultado é, no mínimo, processos de grilagem e reconcentração da terra!

Quando da edição da MP 458, em 2009, e da criação do Terra legal, já havia críticas e acusações de que a legalização da ocupação de áreas públicas na Amazônia Legal, nos termos propostos, permitia chamar de “MP da grilagem”, ou seja, legalização de ocupações ilegais e ilegítimas de terras públicas. Como a nova MP flexibilizou ou mesmo reduziu condicionantes, ampliou ainda mais as possibilidades da apropriação ilegal de terras públicas.

A primeira grande mudança foi ampliar o Terra Legal, portanto, os procedimentos de legalização de ocupações de terras públicas valem para todo o país. Associado a essa nacionalização, se ampliou o limite de 1.500 para 2.500 hectares, o tamanho máximo de áreas ocupadas que podem ser legalizadas. Nos casos de ocupações de áreas maiores que 2.500 ha, o pretenso proprietário poderá regularizar até este limite, sem previsão ou regulamentação do restante da área pública ocupada irregularmente.

Se antes os processos eram questionáveis, e estas mudanças mencionadas não são suficientes, houve uma redução drástica nos valores a serem pagos. De acordo com as regras aprovadas, nos casos de ocupações de áreas acima de um módulo, a regularização é acompanhada de pagamentos, mas os percentuais foram reduzidos, limitando a 50% do valor (antes era 80%). Além dos riscos de regularizar grilagem, os beneficiários irão pagar apenas a metade do valor em áreas de até 2.500 hectares em todo o país.

Ainda, na mesma lógica da permissão para “celebrar contratos de integração” nos assentamentos de reforma agrária, mudanças no Terra Legal abriram possibilidades de regularizar áreas em que a exploração é indireta ou direta “com ajuda de terceiro… por meio de pessoa jurídica” (ou seja, empresas). Em outras palavras, será regularizada a ocupação de terras públicas “gerenciadas, de fato e de direito, por terceiros” (inclusive estes são os termos do PLV aprovado), inclusive empresas. Estas formulações, no mínimo, abrem possibilidades para a legalização de laranjas, ou seja, a regularização de áreas por pessoas que não estejam efetivamente na posse das terras.

IHU On-Line – Quais são os interesses que estão envolvidos na aprovação da MP 759?

Sérgio Sauer – Como disse no começo, como são muitas mudanças – e várias têm endereços específicos, beirando a casuísmos –, há muitos interesses envolvidos. No entanto, podemos nominar o próprio setor agropecuário e agroindustrial, diretamente envolvido com ganhos econômicos. Mas é importante não esquecer os interesses (políticos) da Bancada Ruralista, e seus ganhos devido ao apoio ao impeachment e ao golpe.

Rapidamente, é fundamental não esquecer que a terra é um fator histórico de exercício de poder político e de especulação (traduzindo, é a geração de ganhos sem investimento produtivo). Portanto, disponibilizar terras – seja titulando lotes, seja regularizando posses de áreas públicas, seja diminuindo ou flexibilizando regras ambientais – é sempre um ganho para vários setores que se beneficiam.

Nesse sentido, ampliar o Terra Legal – não só em relação ao tamanho das áreas passíveis de regularização que subiu para 2.500 hectares, mas também estendendo o programa para todo o país – atende a interesses da Bancada Ruralista e a setores especulativos (os preços das terras subiram muito nos últimos anos, sendo um excelente atrativo para a especulação), que se beneficiam com a regularização, especulação – para não dizer grilagem! – e aquecimento do mercado de terras!

IHU On-Line – Quais são as implicações ambientais da aprovação da MP?

Sérgio Sauer – É fundamental não olhar a MP 759 isoladamente, pois há um conjunto de medidas que estão voltadas para o tal “corte de gastos” (que não passa de uma política fracassada de austeridade, pois o déficit público triplicou no último ano!) e para a lógica neoliberal do mercado. Nesta toada do mercado e da necessidade de enxugar o Estado, vêm sendo tomadas outras medidas, inclusive a emissão de outras Medidas Provisórias. Estou me referindo às MP 756 e 758, publicadas no mesmo período, que reduziam unidades de conservação no Pará. Após visita à Noruega, e na tentativa de manter o apoio ao Fundo Amazônia, Temer foi obrigado a recuar e vetar essas duas MPs (aliás, é inédito que MPs emitidas pelo Executivo sejam vetadas integralmente). Apesar dos vetos, os ataques à natureza e a flexibilização da exploração predatória dos recursos estão colocados, inclusive na MP 759.

Um exemplo de flexibilização, que tem consequências ambientais, é a extinção das cláusulas resolutivas em caso de pagamento integral do imóvel regularizado no Terra Legal. Foram também revogadas as obrigações e punições (no caso de descumprimento com a reversão da concessão do título) relacionadas a desmatamento de Área de Preservação Permanente – APP e Reserva Legal. Na prática, significa que a regularização de posses – sempre lembrando que está tratando de áreas de até 2.500 hectares – não estabelece nenhuma restrição ambiental como, por exemplo, usar a regularização para coibir o desmatamento na Amazônia (aliás, este foi um dos grandes argumentos para instituir o Terra Legal!).

IHU On-Line – Alguns especialistas têm dito que a aprovação da MP 759 favorece a especulação do mercado de terras. Concorda com essa compreensão?

Sérgio Sauer – Concordo plenamente! Diante dos preços altos das commodities (o chamado boom das commodities no mercado internacional), entre os incentivos para ampliar a fronteira agrícola com monocultivos e a exportação (para equilibrar a balança comercial), a terra é um ativo fundamental. Associada aos cortes de gastos – leia-se aqui cortes seletivos, pois corta-se a previdência rural, de um lado, mas isenta os grandes proprietários das dívidas do Funrural, de outro –, essa lógica agroexportadora tende a aquecer o mercado de terras, portanto é fundamental colocar à disposição para mais investimentos, inclusive estrangeiros (esse é o argumento do Ministro da Agricultura).

Também não podemos esquecer que, historicamente, a lógica de reprodução do agronegócio e do capital no campo é especulação imobiliária, combinado com investimentos produtivos. Nessa lógica, ter terras disponíveis (inclusive em termos de preços das terras), de assentamentos ou terras públicas é fundamental.

Da CPI da Funai/Incra – e seus indiciamentos absurdos que procuram deslegitimar os defensores de direitos – ao cancelamento de parque estadual para beneficiar ministro detentor de terras, passando pela MP 759 (e outras medidas), o objetivo é atender ao mercado de terras e à expansão dos negócios, especialmente a expansão das fronteiras agrícolas, apropriação de mais terras pelo modelo hegemônico de desenvolvimento agropecuário, resultando em mais concentração fundiária, exclusão e expropriação da população pobre do campo.

Concluindo, eu diria que – assim como outras medidas do atual governo – a MP ampliou significativamente as possibilidades de grilagem, abrindo novas formas como a regularização de áreas que não são, efetivamente, utilizadas pelas famílias requerentes, via contratos de “integração”, exploração por empresas, titulação em série de lotes nos assentamentos, entre outras artimanhas.

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