No Justificando
O Conselho Superior da Defensoria Pública mudou as regras para candidatura e escolha dos quadros para a Ouvidoria externa, passando para a instituição o controle de todas as etapas de eleição do órgão que a fiscaliza. A Ouvidoria Externa foi construída por inúmeras entidades de direitos humanos depois de anos de luta e a mudança no processo de escolha pode significar no fim de sua independência e autonomia.
Anteriormente, o processo de escolha estava vinculado às organizações de direitos humanos e ao Conselho Estadual dos Diretos da Pessoa Humana (Condepe) desde a seleção de candidatos até a votação e formação de lista tríplice para escolha pela instituição, a qual tinha a tradição de escolher sempre o primeiro colocado.
Agora, pela nova forma de escolha do Ouvidor Externo, o candidato tem que se cadastrar previamente na Defensoria, que passará a cuidar da formação da lista tríplice que ela própria vai escolher. Em outras palavras: movimentos sociais perderam espaço e a instituição praticamente cuidará de todas as etapas para escolha de quem a fiscalizará.
O caso despertou protesto pelo atual Ouvidor Geral da Instituição, Alderon Costa. Em pronunciamento na sessão do Conselho Superior, Costa leu uma carta de sua autoria, onde critica o encastelamento e burocracia que, na sua visão, tornaram-se comuns na administração do órgão: “gostaria de expor minha preocupação a respeito dos rumos que a instituição tem tomado. Seu encastelamento e, sobretudo, a hostilidade de muitos daqueles que ocupam cargos representativos internos a qualquer tipo de discordância, a qualquer entendimento que não coincida exatamente com o burocratismo corporativista que se tornou a tônica deste Conselho Superior nesta última gestão” – afirmou.
“A decisão tomada ontem neste Conselho inaugura um novo tempo da Defensoria Pública. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo levou precisamente onze anos para transformar em lei interna a renegação da sua origem. Onze anos para eliminar de seu desenho institucional a marca de origem de uma instituição fundada pela luta dos movimentos populares, fundada para ser diferente, para defender interesses diversos, dos vulneráveis, dos abandonados, dentro do sistema de justiça” – afirmou.
Leia a carta na íntegra:
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“Um mar de silêncio”
Prezados e Prezadas Defensores e Defensoras, Servidores e Servidoras, Funcionários e Funcionárias, trabalhadores/as da Defensoria Pública
O Conselho Superior da Defensoria Pública decidiu ontem que a indicação de lista tríplice para Ouvidor/a-Geral deixará de ser organizada pela sociedade civil e passará a ser organizada por membros da própria carreira de Defensor/a Público/a. Além disso, a votação passará a ser feita exclusivamente por indivíduos que se cadastrem previamente em unidades da Defensoria e não mais por entidades da sociedade civil organizada. Não há mais garantia mínima de que o/a representante eleito/a atue em conformidade com os princípios básicos que norteiam a instituição.
Diante desta decisão, hoje gostaria de me dirigir não a este conselho, a quem tenho me dirigido ao longo dos últimos meses, quase inutilmente. Gostaria de me dirigir aos/às trabalhadores/as que estão fazendo o trabalho do dia a dia da instituição, na ponta, e aos usuários e usuárias a quem esse trabalho se destina. Todas e todos nós conhecemos a realidade do atendimento da instituição, as enormes dificuldades encontradas por aqueles que precisam do serviço, e também por aqueles que desejam fazer com o que o serviço seja prestado de forma digna. É evidentemente gritante a falta de estrutura com que nos deparamos no nosso dia a dia, e também o fato de que os outros órgãos do sistema de justiça encontram-se em uma situação bem melhor, contando com muito maior amparo no desempenho de suas tarefas. Mesmo assim, todos os dias, me deparo com profissionais enormemente empenhados em realizar um bom trabalho, com um senso de sacrifício que é, na verdade, o combustível que move esta instituição, apesar de tudo.
Percebo que só é possível que a Defensoria Pública continue funcionando porque a maioria das pessoas que estão fazendo o trabalho de ponta acreditam no seu papel, acreditam que com seu voluntarismo é possível realizar o acesso à justiça, e a justiça. Que a Defensoria Pública continua funcionando e de algum modo cumprindo com seu papel porque ela continua sendo movida por pessoas que acreditam que é possível fazer a diferença, que é possível a construção de uma instituição efetivamente democrática, de fato voltada aos interesses do povo. Por partilhar dessa crença, por ter devotado uma parte significativa de minha vida a essa crença, é que hoje me dirijo a cada um/a de vocês.
Gostaria de expor minha preocupação a respeito dos rumos que a instituição tem tomado. Seu encastelamento e, sobretudo, a hostilidade de muitos daqueles que ocupam cargos representativos internos a qualquer tipo de discordância, a qualquer entendimento que não coincida exatamente com o burocratismo corporativista que se tornou a tônica deste Conselho Superior nesta última gestão. Todos que acompanham minha trajetória como Ouvidor-Geral conhecem meu absoluto compromisso com o diálogo desarmado, minha opção e minha aposta no consenso até mesmo nos cenários em que ele parece uma hipótese totalmente remota. Todos que ainda acompanham as sessões deste Conselho, observam que as minhas falas são guiadas sempre por dois valores (a defesa dos mais necessitados e o aumento da participação da população nas decisões internas), que na minha ingênua expectativa quando candidato a Ouvidor, considerava que seriam consensuais aqui dentro. Desde que cogitei pela primeira vez assumir a tarefa de ser Ouvidor, jamais imaginei que teria que enfrentar disputas internas em torno desses valores, e essa percepção me deixa absolutamente frustrado com esta instituição que deveria ser a defensoria.
Mas gostaria, mais do que isso, de expor minha preocupação sobretudo com o silêncio de vocês. Quanto mais ando pelas unidades, e quanto mais conheço as pessoas que efetivamente fazem a Defensoria funcionar, mais percebo que estão alinhadas com a minha visão de defensoria, e mais me convenço de que é a sua abnegação que faz com que a defensoria funcione. Nos últimos meses, não sou capaz de contar quantas mensagens de solidariedade recebi de inúmeros defensores, de inúmeros servidores, de inúmeros usuários. O que agradeço, pois isto nos dá a certeza que não devo abandonar a crença no diálogo. No entanto, todos vocês se fazem representar por este Conselho, por suas decisões, por seus valores. A instituição na qual vocês acreditam, na qual juntos acreditamos, está sendo demolida. Demolida em nome sabe-se lá de que, à medida que nem sequer o aumento salarial dos Defensores, que parece ser a máxima e absoluta prioridade deste conselho, parece andar. À medida que as melhorias no atendimento e que o fortalecimento da instituição na qual acreditamos parecem ser sempre adiados, à medida que nunca são encarados como prioridade.
A decisão tomada ontem neste Conselho inaugura um novo tempo da Defensoria Pública. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo levou precisamente onze anos para transformar em lei interna a renegação da sua origem. Onze anos para eliminar de seu desenho institucional a marca de origem de uma instituição fundada pela luta dos movimentos populares, fundada para ser diferente, para defender interesses diversos, dos vulneráveis, dos abandonados, dentro do sistema de justiça. Hoje nem sequer a representação da sociedade civil pode portar a marca dos movimentos que a fundaram, nem sequer sobre sua representação a sociedade civil organizada pode arbitrar. Isso é um mal irreversível, que reconfigura totalmente o destino da instituição. Um órgão de representação temporária, com o aval daqueles que carregam a instituição nas costas no dia a dia, resolve numa pressa totalmente injustificada, com os argumentos mais improvisados possíveis, rever permanentemente sua relação institucional com os movimentos sociais, diante dos olhos de todos, sem que se perceba uma reação.
Este conselho acaba de abortar um sonho de defensoria, gestado pela sociedade civil organizada muito antes de existir qualquer defensor/a público/a, diante de um mar de silêncio. O que vai acontecer ainda não consigo imaginar, mas uma coisa tenho certeza, a Defensoria não se tornou melhor ontem, retrocedeu 11 anos. Agora, sinceramente, não sei…
Alderon Costa
Ouvidor-Geral