Temer ataca direitos indígenas para tentar se livrar de denúncia no Congresso

Parecer da Advocacia-Geral da União vale para todos os órgãos da administração federal e incorpora tese do “marco temporal”

Por Oswaldo Braga de Souza, no ISA

O governo federal adotou oficialmente uma orientação que restringe drasticamente os direitos indígenas à terra. O presidente Michel Temer aprovou um parecer (leia o parecer publicado no Diário Oficial da União) da Advocacia-Geral da União que incorpora condicionantes e elementos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso da Terra Indígena (TI) Raposa-Serra do Sol (RR), de 2009.

Entre outros pontos, o parecer proíbe a ampliação de TIs e estabelece que os todos os órgãos da administração federal, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), devem considerar que só têm direito à terra as comunidades indígenas que estavam na posse de seu território em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição – o chamado “marco temporal”. Essa tese é extremamente polêmica por minimizar o histórico de expulsões e violências sofridas por inúmeros grupos indígenas.

A nova orientação era defendida há anos pela bancada ruralista e sua adoção faz parte da ofensiva de Michel Temer para impedir que o Congresso autorize o andamento da denúncia por corrupção feita pela Procuradoria-Geral da República. A votação da autorização para que a denúncia vá ao STF deve ocorrer no plenário da Câmara, na volta do recesso parlamentar, em agosto.

De acordo com a agência G1, Temer apoia o pleito da bancada ruralista para que a Receita Federal adote uma orientação favorável aos grandes produtores rurais no tratamento de suas dívidas, por exemplo (saiba mais). Uma das reivindicações seria o perdão ou desconto das dívidas previdenciárias dos fazendeiros.

A assessoria da Funai informou que o presidente da instituição não poderia se manifestar sobre o parecer da AGU por estar em viagem ao Pará.

Processos em andamento

Conforme nota da AGU, as determinações contidas no parecer não atingem os “processos de demarcação já finalizados”, mas deverão ser aplicadas àqueles em andamento. De acordo com informações do ISA, há hoje 116 processos que ainda não passaram pela homologação, fase final do complexo procedimento de reconhecimento das TIs.

A nota da AGU afirma que a nova orientação “não inova na ordem jurídica, mas apenas internaliza para a administração pública um entendimento há muito consolidado pelo Supremo Tribunal Federal”. A justificativa da medida seria “uniformizar entendimentos e diminuir conflitos sociais e fundiários em todo o país” (leia a íntegra da nota da AGU).

A advogada do ISA Juliana de Paula Batista explica que o governo tomou a decisão política de aplicar a todos os seus órgãos a interpretação mais restritiva possível do direito indígena à terra contida em uma única decisão que, além disso, segundo o STF, não deve ser aplicada obrigatoriamente em outros julgamentos.

“Não podemos dizer que a decisão do caso Raposa Serra do Sol represente um ‘entendimento consolidado’ do STF porque esse julgamento trata de um único caso concreto que não tem efeito vinculante”, afirma. “Quando se trata de direitos fundamentais, como é o caso do direito dos índios à terra, a interpretação deve ser sempre a mais favorável à proteção das minorias, principalmente quando se considera o processo histórico de violências e vulnerabilidades enfrentado pelos povos indígenas”, critica.

“O que diminui os conflitos no campo é a demarcação das Terras Indígenas. Ao contrário, o que causa conflitos, é a mensagem do Poder Executivo e do Congresso de que é possível mitigar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Essa é uma mensagem clara de um presidente que pretende se manter no cargo a qualquer preço, inclusive anistiando a grilagem de terras, a invasão de Unidades de Conservação e os desrespeito dos direitos dos povos historicamente violentados”, conclui.

O parecer da AGU determina ainda que a política de Defesa Nacional, a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal, a instalação de equipamentos públicos, redes de comunicação e vias de transporte devem se sobrepor ao usufruto dos índios sobre suas terras. Na prática, isso quer dizer que as comunidades indígenas não precisam ser consultadas sobre ações desses órgãos e projetos como esses que ocorram em seu território.

“Essa medida é uma forma de negar o usufruto exclusivo dos índios sobre suas terras previsto na Constituição e o direito à consulta livre, prévia e informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, pondera Juliana de Paula.

Orientação antecipada

Em 2012, o então advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, publicou a Portaria 303, que incorporava as condicionantes estabelecidas na mesma decisão judicial. Depois de protestos dos povos indígenas, no entanto, ele suspendeu a norma. A medida adotada agora por Temer é ainda mais grave porque deve ser cumprida por todos os órgãos federais, enquanto a Portaria 303 deveria ser obedecida apenas por aqueles subordinados à AGU, como as procuradorias dos órgãos vinculados aos ministérios, por exemplo.

A nova orientação foi antecipada pelo deputado ruralista Luiz Carlos Heinze (PP-RS), um dos mais ferrenhos defensores de Michel Temer. Em um vídeo que circulou nesta semana, em Brasília, por Whatsapp, ele informa que o parecer da AGU foi acertado em uma reunião, em abril, com o então ministro da Justiça e também deputado ruralista, Osmar Serraglio, o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, a advogada-geral da União, Grace Maria Fernandes Mendonça, e o assessor da Casa Civil Renato Vieira. O encontro faria parte de uma série que envolveu também o ex-ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e o titular atual da pasta, Torquato Jardim.

No vídeo, Heinze diz que, a partir da adoção do parecer, todos os processos de demarcação de TIs em andamento serão revisados. “Na minha avaliação, mais de 90% dos processos que tem no Brasil são ilegais e serão arquivados”, aposta o parlamentar (veja o vídeo abaixo).

O deputado é o mesmo que, em outro vídeo, gravado em 2013, em Vicente Dutra (RS), diz que índios, quilombolas, gays e lésbicas são “tudo o que não presta”. Na mesma gravação, ele e o também deputado ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS) estimulam produtores rurais a contratar segurança privada para proteger suas propriedades e expulsar índios das terras que consideram como suas (saiba mais e veja vídeo abaixo).

Foto: Michel Temer em um de seus almoços com a bancada ruralista, em Brasília | Beto Barata / PR

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