Os Povos da Amazônia e o colonialismo interno. “Continua o tratamento colonial e desigual dos amazônidas e seus aliados”. Entrevista especial com Jane Beltrão

Patricia Fachin – IHU On-Line

Os conflitos envolvendo os povos da Amazônia, como comunidades indígenas e quilombolas, permanecem os mesmos, em certa medida, desde a Colônia, tendo a demanda por terras tradicionalmente ocupadas e a execução de grandes obras como as principais adversidades, diz a antropóloga Jane Felipe Beltrão à IHU On-Line. “Politicamente, nós amazônidas, e nossos aliados, padecemos do tratamento colonial e desigual dispensado desde a Colônia e que se mantém via colonialismo interno”, frisa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Jane comenta alguns aspectos do livro “Amazônias em tempos contemporâneos: entre diversidades e adversidades” (Rio de Janeiro: Mórula, 2017), organizado por ela e pela pesquisadora Paula Mendes Lacerda, sobre situações de conflitos e confrontos envolvendo grupos étnicos que vivem na Amazônia brasileira. Segundo ela, projetos do passado são atualizados com o “planejamento da barragem de inúmeros rios, produzindo um arco de destruição”, como o caso da construção de Belo Monte, no Pará, onde vivem mais de 60 povos indígenas.

A obra, uma coletânea composta por 16 capítulos, é um dos resultados do projeto Patrimônio, Diversidade Sociocultural, Direitos Humanos e Políticas Públicas na Amazônia Contemporânea e tem como finalidade expandir a produção antropológica no país.

Jane Beltrão frisa que os antropólogos precisam “aprender e incorporar, obrigatoriamente, as formas epistemológicas diferenciadas apreendidas com os interlocutores, sob pena de se tratar unicamente do mundo ocidental, o qual para quem nasceu, vive e/ou trabalha na Amazônia é pouco para compreensão do nosso quotidiano”. E adverte: “Antropólogo/a que não se aproximar dos povos tradicionais termina negando os próprios cânones de estabelecimento e mudança da ciência antropológica”.

Jane Felipe Beltrão é mestra em Antropologia Social pela Universidade de Brasília – UnB e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É docente da Universidade Federal do Pará – UFPA.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais adversidades observadas na Amazônia brasileira nos dias de hoje e em que aspectos o atual cenário se aproxima e se distancia de outros momentos?

Jane Felipe Beltrão – A adversidade maior na Amazônia brasileira é a demanda sobre as terras tradicionalmente ocupadas, especialmente por povos indígenas e quilombolas. Entretanto, à demanda por terra se junta a execução de grandes projetos no passado, sobretudo em tempos de autoritarismo, e que hoje se renovam com o planejamento da barragem de inúmeros rios, produzindo um arco de destruição. Politicamente, nós amazônidas, e nossos aliados, padecemos do tratamento colonial e desigual dispensado desde a Colônia e que se mantém via colonialismo interno.

IHU On-Line – Uma parte significativa do livro “Amazônias em tempos contemporâneos: entre diversidades e adversidades” é dedicada às comunidades indígenas. Quantas são as comunidades que vivem na Amazônia hoje e em que condições vivem?

Jane Felipe Beltrão – A “dedicação” aos povos indígenas faz parte do compromisso de respeito aos direitos dos povos etnicamente diferenciados; aliás, há autores indígenas que expressam sua compreensão sobre a história indígena e apresentam sugestões de como se trabalhar as mazelas que secularmente se impõem aos povos tradicionais. Na realidade nosso esforço é para educar de forma participativa as futuras gerações, fazendo-as compreender como somos tratados e como deveremos requerer tratamento que respeite os direitos milenares, compreendendo que a vida das pessoas é mais importante e exige respeito. Apenas no Pará, há mais de 60 povos indígenas.

IHU On-Line – Como se dá a relação entre indígenas e não indígenas, como ribeirinhos, quilombolas e migrantes nordestinos, que compartilham os mesmos territórios na Amazônia?

Jane Felipe Beltrão – Os grupos vulnerabilizados são em geral pouco considerados, muitas vezes os que vêm de fora se julgam com mais direitos e sistematicamente invadem terras, ameaçam a vida de muitos, basta conferir os índices de assassinatos e pessoas que precisam de proteção na Amazônia brasileira. Os não indígenas empresários, fazendeiros, negociantes de todos os tipos – em geral brancos, burgueses do sexo masculino – ameaçam diuturnamente os povos tradicionais; muitos destes povos, como os ribeirinhos, são fruto da imposição de “desindianização” e de branqueamento produzido pelas elites brancas. As relações são conflituosas e trazem muitas dificuldades, até porque os povos tradicionais não arrefecem na luta pelos seus direitos. Ela é sem trégua.

IHU On-Line – O livro também tem uma preocupação em contar a história indígena em “seus próprios termos”. Nesse sentido, como os indígenas narram sua própria história e como se situam e se entendem no tempo histórico? Em que aspectos essa narrativa se aproxima e se distancia dos relatos antropológicos?

Jane Felipe Beltrão – Os povos indígenas têm direito de apresentar suas versões sobre as histórias que escreveram e inscreveram, como diz a canção: “com tinta sangue do coração”, de Benito de Jesus, cujo drama é maior que o cantado pelo compositor, mas informa sobre a mesma disposição de lutar pelo que acredita. Nós antropólogos/as precisamos aprender e incorporar, obrigatoriamente, as formas epistemológicas diferenciadas apreendidas com os interlocutores, sob pena de se tratar unicamente do mundo ocidental, o qual para quem nasceu, vive e/ou trabalha na Amazônia é pouco para compreensão do nosso quotidiano. Antropólogo/a que não se aproximar dos povos tradicionais termina negando os próprios cânones de estabelecimento e mudança da ciência antropológica. Afinal, se os povos indígenas “chamarem” seus parentes, da mesma forma como fazemos para anotar a frequência dos estudantes, muitas serão as ausências! Não de pessoas, mas de povos inteiros que desapareceram pela irresponsabilidade da política indigenista que, neste país, pratica tanto o etnocídio quando tenta nos homogeneizar, como o genocídio quando mata deliberadamente os povos indígenas.

IHU On-Line – O livro também apresenta algumas “narrativas oficiais” sobre o processo de ocupação da Amazônia brasileira do século XVI até os dias de hoje. Como os indígenas da região reagem às narrativas oficiais e como descrevem e compreendem o processo de gestão desse território?

Jane Felipe Beltrão – Evidentemente, nenhum de nós gosta de se ver retratado de maneira grotesca, via estereótipos, procurando nos afastar do sadio convívio pluricultural, portanto com os povos indígenas não é diferente; ver-se retratados como sendo descobertos por portugueses é piada de mau gosto, sobretudo quando o que ocorreu foi uma invasão avassaladora, mortífera. Isso é motivo de dor, de sofrimento, mas também motor de ação política para apresentar o que ocorreu. Os povos tradicionais são testemunhas de uma história que é preciso lembrar para não repetir. Você já presenciou um indígena lendo o Relatório Figueiredo? (Documento que é fruto de uma CPI que apresenta as atrocidades cometidas pelo Serviço de Proteção ao Índio, órgão tutelar que antecedeu a Fundação Nacional do Índio). É uma tragédia, pois a cortina de lágrimas que o documento produz no leitor, nos faz constrangidos. Afinal, nenhum dos estupradores, ladrões e outros que são citados como criminosos foram punidos.

IHU On-Line – Hoje, diante de instrumentos internacionais, como a Convenção 169 da OIT, que determina o direito de consulta prévia às comunidades indígenas e quilombolas, quais são as dificuldades em torno dessa questão? Esses processos de consulta acontecem? Quais os maiores desafios no sentido de tornar esse processo efetivo?

Jane Felipe Beltrão – Falta vontade política e aplicação correta dos parâmetros preconizados na legislação. A consulta não pode ser confundida com concordância! Ela deve ser realizada com a participação efetiva dos coletivos que sofrerão os efeitos sociais, e a sociedade política deve pensar que nem todo efeito é mitigável, uma vida não pode ser trocada por quilowatt-hora de energia. O desafio é desalojar as elites do poder e pelejar por um projeto de sociedade.

IHU On-Line – Como as comunidades indígenas lidam com os grandes empreendimentos que são realizados na região, como a construção de Belo Monte, por exemplo?

Jane Felipe Beltrão – Muito mal, o Xingu é a morada de Maíra e a hidrelétrica invadiu a morada; pense numa hidrelétrica na praça do Vaticano em Roma, no Muro das Lamentações, numa Mesquita e assim por diante. Se a norma é respeitar os lugares sagrados das religiões ditas reveladas, por que não tratar com respeito as reveladas religiões indígenas que regem seus cosmos e os fazem humanos? Uma hidrelétrica imposta, como diz Uwira Xakriabá, intelectual indígena, autor de um dos capítulos do livro: Belo Monte trouxe “… cachaça, concreto e sangue!” Além de produzir efeitos sociais deletérios “… à saúde”, carregou consigo “… alcoolismo e violência” aos povos indígenas. A forma de enfrentar é continuar a peleja secular.

IHU On-Line – Quais são hoje as principais causas de exploração das comunidades indígenas que vivem na Amazônia?

Jane Felipe Beltrão – Tudo que elas têm no subsolo de seu território, mas sobretudo a terra que as elites querem ver liberadas para si, pois assim a manutenção de seu poder parece assegurada. Teoricamente o projeto de sociedade dos povos indígenas é uma alternativa ao modelo adotado pelo Estado e, se assim é, as sociedades indígenas são ameaça à sociedade nacional que discrimina os modos de ser e pensar dos coletivos indígenas.

IHU On-Line – Qual é a relação dos indígenas que vivem na Amazônia brasileira com as comunidades indígenas da Amazônia peruana, por exemplo?

Jane Felipe Beltrão – Não conheço in loco, mas posso dizer que fronteiras intransponíveis são uma invenção ocidental. Os povos indígenas reconhecem os seus territórios e respeitam os limites dos demais povos até onde conheço. Creio que nas fronteiras políticas estabelecidas pelos estado-nação, mesmo com os impedimentos, há relações sociais que podem ser amistosas ou nem tanto, depende dos povos e das interferências políticas existentes. Há redes de movimentos indígenas latino-americanas e que eu saiba os povos lutam juntos.

IHU On-Line – Como a discussão de gênero é feita nas comunidades indígenas da Amazônia?

Jane Felipe Beltrão – Não tenho conhecimento adequado da discussão de gênero entre eles e elas. Mas tenho registros de violações e violências compreendendo abusos sexuais que colecionei nas escutas de muitos anos de trabalho entre os coletivos indígenas.

IHU On-Line – Qual é a situação da saúde indígena na Amazônia? Quais os principais desafios nesse sentido?

Jane Felipe Beltrão – Falta de atendimento, restrição do atendimento quando há a atenção básica. Sistema de referência e contrarreferência inoperantes e total ausência de intermedicalidade, ou seja, falta escuta e respeito aos modos de cura tradicionais e diálogo com os mesmos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Jane Felipe Beltrão – Só a esperança de mudar a política perversa em relação aos povos indígenas. E o desejo de ver algum êxito a partir da educação de novas gerações.

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