Medida Provisória faz parte de acordo de Temer com ruralistas; Karen Friedrich a define como “uma temeridade”; Ibama aponta potencial cancerígeno
Por Cauê Seignemartin Ameni – De Olho nos Ruralistas
Para continuar tendo apoio da bancada ruralista, a Casa Civil se prepara para desengavetar uma Medida Provisória que altera as regras do uso de agrotóxicos no país. A proposta possibilita a autorização de substâncias cancerígenas. E, por isso, proibidas. É a avaliação de Karen Friedrich, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que soltou nota sobre o assunto:
– De acordo com a MP proposta, poderiam ser registrados no Brasil produtos com potencial cancerígeno ou capazes de provocar anormalidades fetais, entre outros efeitos graves, quando tiverem sido encontradas condições de uso apropriadas para reduzir o risco de ocorrência desses efeitos.
O Ibama criticou também a previsão de suspender a regra que só libera a aprovação de agrotóxicos que tenham – comprovadamente – uma ação tóxica menor ou igual à dos atuais.
O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, disse ao Canal Rural que a ideia é ter um modelo baseado em risco, no qua Anvisa, Ibama e Agricultura estejam os três sempre de acordo. Mas a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não se manifestou. O Ibama é contrário à medida que pretende alterar a lei 7.802/1989, que torna o conceito de “análise de risco” fator determinante para a permissão de novas substâncias.
COQUETEL DE AGROTÓXICOS
A medida foi redigida pelo Ministério da Agricultura com a colaboração do setor agrícola e da indústria agroquímica. Karen Friedrich tem um posicionamento semelhante ao do Ibama:
– A MP vai piorar o que já é ruim. A Anvisa avalia os estudos toxicológicos conduzidos pela própria indústria que tem interesse em registrar o agrotóxico.
Segundo ela, os estudos são limitados porque são realizados com um agrotóxico por vez. Uma cobaia recebe a injeção de apenas um agrotóxico. Só que na lavoura, explica, o trabalhador rural aplica uma mistura de agrotóxicos. Ou passa um avião despejado uma série de agrotóxicos.
Em outras palavras: os brasileiros consomem, na alimentação, um coquetel de agrotóxicos. “A Anvisa já encontrou até dez agrotóxicos em um único alimento”, conta Karen. “Ou seja, essa mistura não é testada nos laboratórios para o registro. Se temos um agrotóxico com risco de causar câncer individualmente, na presença de misturas essa probabilidade pode aumentar”.
A pesquisadora, graduada em biomedicina com doutorado em toxicologia e saúde, vê com preocupação a falta de dialogo do governo e criticou também a ideia que circula no Palácio do Planalto, segundo reportagem de O Globo, de retirar a Anvisa do processo de autorização de novos agrotóxicos:
– É realmente uma temeridade essa MP passar condicionando o risco do agrotóxico a essa “avaliação de risco” em que algumas pessoas que trabalham em um órgão vão determinar o que é um risco aceitável ou inaceitável sem uma discussão mais ampla com a população e a comunidade científica se eles aceitam esse “risco”.
Ela conta que estudos recentes – e sofisticados – com populações expostas apresentaram efeitos proibitivos de registro. Mas a Anvisa “não teve condição técnica, iniciativa ou força política” para proibir os agrotóxicos. Foi o caso da atrazina, um dos mais utilizados no Brasil, proibido em outros países. E do acefato, igualmente proibido fora do país, mas por aqui liberado.
AUTISMO E MAL DE PARKINSON
Pelo menos seis substâncias utilizadas intensamente no campo estão em análise. São elas: 2,4-D, glifosato, paraquat, tiram, carbofurano e abamectina. Alguns novos relatórios são favoráveis ao banimento definitivo do glifosato, líder mundial de mercado, no mercado nacional. De acordo com Karen, há estudos que associam o glifosato ao autismo. E outros que vinculam o paraquat ao mal de Parkinson.
Outra ponto polêmico da MP é incluir, nos rótulos dos novos agrotóxicos, a expressão “nas condições recomendadas para uso”. O Ibama avalia que o país não tem estrutura para efetivar essa demanda. A pesquisadora da Fiocruz considera que a solução se transformaria rapidamente em um novo problema:
– Condicionar o risco do uso de agrotóxicos ao uso de equipamento individual é uma calamidade porque esses equipamentos são caros e difíceis de serem utilizados. Não é todo trabalhador que poderá comprar ou usar adequadamente, até pelas condições climáticas do país.
UM ANTIGO CARDÁPIO
A ideia de contemplar uma antiga demanda da bancada ruralista não é nova. Em abril deste ano, o Estadão revelou, na reportagem MP pode afrouxar regras para agrotóxicos, que a MP liberaria substâncias cancerígenas e teratogênicas (que põem em risco a formação dos fetos). Diante da repercussão negativa, Temer foi obrigado a engavetar a medida. Desta vez, porém, a proposta não teve a mesma repercussão na imprensa. Apenas uma notícia discreta no Canal Rural.
Quando o documento foi apresentado no começo do ano no Comitê Técnico de Assessoramento, integrado pelo Ibama, Anvisa e Ministério da Agricultura, encarregado de avaliar os critérios para uso de agrotóxicos no país, ele foi criticado pela falta de participação dos dois órgãos. Cabe à Anvisa analisar os impactos dos produtos na saúde e ao Ibama mensurar os efeitos dos agrotóxicos no ambiente.
Cada brasileiro consome anualmente um galão de cinco litros de agrotóxicos, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca). De acordo com o El País, o Brasil ocupa, desde 2008, o primeiro lugar no ranking mundial de consumo de pesticidas. O Dossiê Abrasco: um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde aponta que 70% dos alimentos in natura estão contaminados – e, segundo a Anvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas.
De acordo com a reportagem Paraíso dos agrotóxicos, publicada na revista Ciência Hoje, 24 das 50 substâncias mais utilizadas no Brasil em 2012 estavam banidas nos Estados Unidos, Canadá, Europa e Ásia.
Mesmo com a bancada ruralista considerando a atual legislação “rígida”, o Brasil bateu um novo recorde de registros de agrotóxicos em 2016, com um crescimento de 375% em relação a 2015.
Segundo pesquisa do Ibope, 81% da população brasileira acha que a quantidade de agrotóxicos aplicados nas lavouras é “alta” ou “muito alta”.