“Não faz parte da política do governo o combate efetivo à escravidão contemporânea”. Entrevista especial com Marina Sampaio

IHU On-Line

A investigação da ação fiscal do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho“constatou que mulheres de nacionalidade filipina foram traficadas para o Brasil para trabalharem como empregadas domésticas sob condições análogas às de escravos em residências de famílias de alto poder aquisitivo no estado de São Paulo”, afirma Marina Sampaio à IHU On-Line ao comentar o trabalho realizado pelo Ministério do Trabalho recentemente. Marina integrou o grupo de auditores fiscais responsável pela investigação e relata que a equipe do Programa de Combate ao Trabalho Escravo de São Paulo “verificou que o tráfico foi intermediado por empresas constituídas exclusivamente para esse fim e que tinham o objetivo de ofertar trabalhadores também para atividades hoteleiras e de limpeza geral, gastronomia e cuidados com bebês e crianças”.

Segundo ela, tradicionalmente os filipinos migravam para o Brasil para trabalharem como marinheiros, mas dos 1.150 vistos concedidos a filipinos para trabalho no país, 147 foram exclusivamente destinados ao trabalho doméstico. “Com o tempo, agências de intermediação de mão de obra ‘descobriram’ o nicho econômico do trabalho doméstico para famílias de alta renda. Foi assim que começou o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração de trabalho doméstico em condições análogas às de escravo que o Programa de Combate ao Trabalho Escravo de SP desvendou”, relata.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Marina informa ainda que nas duas últimas décadas aproximadamente 50 mil pessoas foram libertadas de trabalho escravo no país, mas estima-se que o número de pessoas que vivem nessas condições atualmente “seja muito superior ao total de pessoas resgatadas nos últimos 20 anos. O Índice Global da Escravidão, por exemplo, estimou que o país tinha 161 mil pessoas em condições análogas às de escravos em 2016”.

Marina Sampaio é auditora-fiscal do Trabalho, integrante do Programa de Combate ao Trabalho Escravo de São Paulo e diretora de Educação do Instituto Trabalho Digno.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Recentemente foram publicadas matérias informando que domésticas de origem filipina são escravizadas em São Paulo. Que informações você tem sobre o caso, quais eram as condições de vida dos trabalhadores? O que os fiscais do Ministério do Trabalho apuraram ao investigarem essa situação?

Marina Sampaio – A ação fiscal do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho constatou que mulheres de nacionalidade filipina foram traficadas para o Brasil para trabalharem como empregadas domésticas sob condições análogas às de escravos em residências de famílias de alto poder aquisitivo no estado de São Paulo. A equipe do Programa de Combate ao Trabalho Escravo de São Paulo verificou que o tráfico foi intermediado por empresas constituídas exclusivamente para esse fim e que tinham o objetivo de ofertar trabalhadores também para atividades hoteleiras e de limpeza geral, gastronomia e cuidados com bebês e crianças.

Como parte da operação, foram investigadas três empresas de recrutamento de trabalhadores e um hotel de luxo cliente de uma dessas empresas. Nesse hotel & spa foram encontrados empregados filipinos trabalhando expostos a riscos de acidentes e morte, com jornadas de trabalho irregulares e sem o pagamento das horas extras, com descontos salariais indevidos, sonegação de FGTS e de INSS.

Quanto às empregadas domésticas, foi relatado que eram forçadas a trabalhar exaustivamente, chegando a jornadas de 15 horas no mesmo dia, sem descanso regular nos finais de semana e sem receberem pelas horas extras trabalhadas. Também eram controladas excessivamente quanto à quantidade de comida e algumas sofriam maus-tratos, o que gerou adoecimentos como úlcera e exaustão. Os empregadores, porém, negaram atenção e cuidados médicos e ameaçaram as trabalhadoras de prisão e de deportação caso elas fugissem das residências. Um dos expedientes utilizados para aumentar a vulnerabilidade e limitar a liberdade era a retenção dos passaportes das empregadas.

Além das infrações citadas, a equipe constatou fraude ao sistema de concessão do visto de trabalho no Brasil, ausência de autorização prévia das agências para realizar as atividades de recrutamento, introdução e alocação dos trabalhadores e irregularidades na intermediação de trabalhadores estrangeiros.

IHU On-Line – Como esses casos foram descobertos?

Marina Sampaio – A despeito das coações e ameaças de prisão e de deportação feitas pelos traficantes e pelas famílias empregadoras aos empregados para que aceitassem condições de trabalho ilegais impostas, alguns trabalhadores conseguiram fugir das residências e buscaram o apoio do Ministério do Trabalho. Foi assim, por meio de denúncias, que os casos foram descobertos.

Infelizmente, mas não por acaso e por diversos motivos, a Inspeção do Trabalho adota uma política institucional passiva de conhecimento acerca do crime de escravização de trabalhadores, pois depende da coragem (gerada muitas vezes pelo desespero) de empregados, que enfrentam os mais diversos riscos para conseguirem denunciar a exploração. A realidade é que o trabalho de investigação é feito de forma braçal e amadora, o que torna lento o acesso à informação de casos de trabalho escravo.

Uma abordagem ativa requer investimentos no sentido mais amplo do termo: desde o fornecimento de instrumentos básicos para o trabalho, como acesso informatizado a dados de empresas, GPS, carros e motoristas oficiais exclusivos para o projeto, passando pela disponibilização de redes de comunicação virtual com o trabalhador, até a contratação de auditores-fiscais do trabalho e servidores administrativos, dentre diversos outros.

No entanto, o que vivenciamos é o desmonte da Inspeção do Trabalho, tanto pela extinção do órgão decorrente do ínfimo número de auditores-fiscais do trabalho na ativa (são apenas 2.409 inspetores para todo o Brasil, sendo quem nem o número mínimo de Auditores-Fiscais do Trabalho previsto em lei – são 3.640 cargos – seria suficiente para garantir a satisfatória regulação do Direito do Trabalho no país, que conta com milhões de empregadores), quanto pela inviabilização da ações fiscais por falta de verba para gasolina, diárias etc., como noticiado recentemente em diversos meios de comunicação.

IHU On-Line – O que prevê a regulamentação sobre o trabalho doméstico no país? Nesses casos de trabalho envolvendo as filipinas, que leis foram violadas?

Marina Sampaio – A partir de 2016, a legislação trabalhista brasileira passou a garantir aos empregados domésticos basicamente os mesmos direitos assegurados aos demais empregados, como redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, proibição de discriminação, salário mínimo, 13º salário e férias acrescidas do 1/3 constitucional, princípio da irredutibilidade salarial, recolhimento do FGTS, do INSS e do seguro contra acidentes do trabalho, descanso semanal remunerado preferencialmente aos domingos, descanso em feriados, intervalos intra e interjornadas, concessão de férias de 30 dias e de férias proporcionais ao término do contrato de trabalho, estabilidade em razão de gravidez, licença-maternidade sem prejuízo do salário e do emprego, licença-paternidade de 5 dias corridos, auxílio-doença pago pelo INSS, aviso-prévio, aposentadoria, integração à previdência social, vale-transporte, salário-família, relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária, entre outros.

Nos casos das trabalhadoras filipinas, diversos dispositivos do ordenamento jurídico (CFCLTCPResolução do CNIg nº 104) foram violados. Em especial, o aliciamento, agenciamento e recrutamento das trabalhadoras, mediante coação e ameaças, a contração de dívidas no país de origem, a ausência de garantias em relação à repatriação no caso de distrato, a submissão a jornadas exaustivas e privações de descansos, as ameaças e assédio moral, levaram à caracterização do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho em condições análogas às de escravos (previsto no Código Penal, artigo 149-A).

IHU On-Line – Como e por que homens e mulheres filipinos vêm para o Brasil?

Marina Sampaio – Essas pessoas vêm ao Brasil porque têm a esperança de conseguirem um emprego no qual sejam tratadas com respeito e dignidade e pelo qual recebam um salário suficiente para se sustentarem e ajudarem suas famílias nas Filipinas. A esperança não é fruto de sua imaginação, mas decorrente de promessas – feitas muitas vezes por escrito – de que trabalharão sob determinadas condições de trabalho e de remuneração preestabelecidas pelo empregador e garantidas pelo Estado brasileiro.

O procedimento utilizado para o aliciamento desses trabalhadores é eficaz, pois se vale da propaganda de que há rigor no controle do cumprimento dos direitos trabalhistas no país e garante, por meio de um contrato de prestação de serviços firmado entre a agência e o candidato ainda no país de origem, que o trabalhador virá ao Brasil trazido pela agência, que paga sua passagem, para trabalhar em determinada residência e em determinadas condições. Esses contratos preveem, por exemplo, a estipulação de jornada diária de oito horas e quarenta e quatro semanais, o direito a um day-off semanal e férias, boa moradia com acesso à internet e alimentação adequada, além da possibilidade de poder retornar a seu país caso essas condições não sejam cumpridas e a concessão de “residência permanente” após dois anos, a partir da qual o trabalhador poderá prestar serviços em qualquer atividade e ainda trazer a família. Ressalte-se que essa promessa de residência permanente sequer possui previsão no ordenamento jurídico brasileiro.

trabalhador é enganado, pois é levado a crer que está contratando uma empresa de prospecção de vaga de emprego no Brasil, inclusive porque paga por esse serviço, e que poderá retornar a qualquer momento, caso o novo emprego não satisfaça suas expectativas. Para agravar a situação, a agência oferece a possibilidade de empréstimo ao trabalhador que não disponha do montante requerido, empréstimo esse que deve ser quitado por meio de descontos salariais mensais, sugerindo um negócio jurídico que acaba por levar o trabalhador a uma servidão por dívida ilegalmente contraída.

O truque é fazer a pessoa acreditar que é contratante de um serviço de colocação no mercado de trabalho quando, na realidade, a prestadora desse serviço é contratada pelo futuro empregador, que procura um empregado que satisfaça suas exigências pelo menor custo possível. A consequência da fraude é o descumprimento das promessas que sempre foram falsas, já que nunca foram do interesse do contratante real da empresa agenciadora. O trabalhador se vê preso numa casa estranha, com uma família muitas vezes hostil, num país que não é o seu, com dificuldades de conseguir se comunicar por conta da língua e sem saber como procurar ajuda.

IHU On-Line – Qual é o perfil das trabalhadoras e dos trabalhadores filipinos?

Marina Sampaio – Basicamente (e superficialmente, pois um perfil detalhado dependeria de uma pesquisa mais substancial), esses trabalhadores possuem baixa renda e são pouco qualificados, no sentido de terem baixo nível de escolaridade. São considerados, porém, como trabalhadores com mão de obra especializada, tendo inclusive denominação própria: “filipino workers overseas – FWO“.

São pessoas que vêm ao Brasil com a intenção de ganhar dinheiro para o seu sustento e de suas famílias que permanecem nas Filipinas. Isso torna o negócio lucrativo não só para o trabalhador, como também para seu país de origem, que tem no migrante uma fonte de renda mensal repatriada às Filipinas.

IHU On-Line – Que percentual de trabalhadores filipinos trabalha no Brasil hoje?

Marina Sampaio – Dados da Coordenação Geral de Imigração – CGIg revelam haver cerca de 1.150 vistos concedidos a filipinos para trabalho no Brasil. Destes, 147 seriam exclusivos para o trabalho doméstico.

Tradicionalmente, trabalhadores filipinos imigravam para o Brasil para trabalharem como marinheiros. Com o tempo, agências de intermediação de mão de obra “descobriram” o nicho econômico do trabalho doméstico para famílias de alta renda. Foi assim que começou o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração de trabalho doméstico em condições análogas às de escravo que o Programa de Combate ao Trabalho Escravo de SP desvendou.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Marina Sampaio – Desejo sim, e agradeço imensamente pela oportunidade de fazê-lo. Gostaria de acrescentar que, de 1995 a 2015, cerca de 50 mil pessoas foram libertadas da escravidão no país pelo Sistema Federal de Inspeção do Trabalho, segundo dados do MTb. No entanto, estima-se que o número de trabalhadores escravos hoje no Brasil seja muito superior ao total de pessoas resgatadas nos últimos 20 anos. O Índice Global da Escravidão, por exemplo, estimou que o país tinha 161 mil pessoas em condições análogas às de escravos em 2016.

A principal questão é que, em termos nacionais, não faz parte da política do governo o combate efetivo desse crime, seja porque muitos escravagistas são os próprios políticos, seja porque essa efetividade desmantelaria um dos principais pilares do sistema econômico. Assim, o país sofre reiterados golpes no combate ao trabalho escravo por meio de aprovação de iniciativas que precarizam o trabalho, como a Lei da Terceirização e a Reforma Trabalhista, e de tentativas de flexibilização do próprio conceito que define o que é o crime.

Também são adotadas políticas de impunidade com relação aos criminosos, por exemplo, com a ausência de punição criminal e a precarização do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho, principal órgão responsável pelo resgate dos trabalhadores: a despeito de a submissão de pessoas a trabalho escravo ser crime previsto no Código Penal brasileiro com pena de 2 a 8 anos de prisão, raríssimos são os casos de condenação dos criminosos (a Câmara Criminal do MPF divulgou recentemente que mais de 450 inquéritos criminais não foram sequer concluídos). Quanto à Inspeção do Trabalho, como dito anteriormente, o órgão vivencia há tempos uma sistemática queda no número de auditores-fiscais de trabalho e de servidores administrativos, além de severas restrições orçamentárias que chegam a deixar subdelegacias do trabalho sem papel para a impressão dos Autos de Infração (documento fiscal no qual são lavradas as infrações trabalhistas).

Essa ausência de resposta do Estado constitui incentivo objetivo para a continuidade da prática. Não por acaso diversos empregadores são flagrados mais de uma vez cometendo esse mesmo crime, e a Lista Suja do Trabalho Escravo divulgada pela Repórter Brasil em março deste ano continha 250 nomes de escravagistas flagrados (é importante lembrar que o governo tentou impedir a divulgação dessa Lista a todo custo e que ela só foi publicizada após ajuizamento de demanda judicial. Até hoje, inclusive, o site do Ministério do Trabalho traz ela escondida, difícil de ser localizada).

A despeito de todas as dificuldades, há casos em que o Estado consegue agir de forma a desvelar esquemas mais complexos de submissão de pessoas à escravidão contemporânea – como se observou nessa ação fiscal que desvendou a existência de rede de tráfico internacional de mulheres filipinas para trabalharem como domésticas escravas contemporâneas para famílias ricas no estado de São Paulo – e casos em que a resposta do Estado ao crime cometido significa um combate efetivo – como ocorreu numa ação fiscal recente e paradigmática, em que foi flagrado o trabalho escravo reincidente contumaz. Além de resgate e libertação de 23 trabalhadores pela Inspeção do Trabalho, houve ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público do Trabalho requerendo a expropriação da propriedade rural para fins de reforma agrária ou programas de habitação popular, sem qualquer indenização aos proprietários e sem prejuízo das demais sanções (administrativas, civis, penais).

Enfim, é necessário criticar e rechaçar iniciativas que flexibilizem e precarizem a legislação trabalhista. Também, a existência de resposta estatal efetiva, a qual pressupõe investimentos e arrefecimento da conduta dos agentes de Estado frente a esse crime de violação dos direitos humanos – de modo a assegurar a penalização dos escravagistas e a reparação à sociedade –, é condição necessária para a erradicação do trabalho escravo no país.

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