Mulheres quilombolas enviam carta ao STF por julgamento de ação que define futuro dos territórios no Brasil

Iniciativa do grupo de mulheres ‘Na Raça e Na cor’, documento aponta como titulação contribui para segurança das quilombolas.

Na Terra de Direitos

Um grupo de mulheres quilombolas enviou uma carta (leia abaixo) aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta sexta-feira, apontando a necessidade de manter o Decreto Federal 4887/2003. O decreto – que regulamenta o procedimento de titulação dos territórios quilombolas no Brasil – é alvo da Ação de Inconstitucionalidade 3239, que será julgada pelo STF na próxima quarta-feira (16). Caso o decreto seja considerado inconstitucional, não haverá mais marco normativo regulamentador para a titulação das terras, o que deve atrasar ainda mais os processos. Das quase 3 mil comunidades quilombolas existentes no Brasil, segundo dados da Fundação dos Palmares, apenas 37 foram tituladas pelo governo federal.

documento foi criado pelo Grupo de Mulheres Na Raça e na Cor, da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS). A Articulação de Organizações de Mulheres Negras do Brasil, e as Mulheres da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) subscrevem a carta.

O texto explica como as comunidades estabelecem fortes relações com o território e fala da necessidade de garantir que as terras sejam tituladas. “Temos saberes que herdamos de nossas ancestrais sobre como plantar, colher, pescar, fazer partos e usar as plantas medicinais para cura de toda a comunidade. O território é a nossa mãe, o nosso alimento e a nossa vida”, aponta a carta. E continua: “Imaginem vocês, Senhores Ministros e Ministras, retirar e ameaçar um território que é a vida e sobrevivência de várias famílias, local onde concentra toda sua cultura, memória e ancestralidade. Quem retira o povo de sua terra é perverso e foi assim que fizeram com nossas ancestrais quando as retiraram à força da África e trouxeram para o Brasil, escravizadas”.

No documento, as mulheres também falam como as comunidades têm sido ameaçadas pela falta de titulação, através de conflitos agrários. Em 2016, a líder quilombola Francisca Chagas foi assassinada no Maranhão, com indícios de violência sexual. No final de junho deste ano, a Maria Trindade da Silva Costa também foi morta Pará. Apenas em 2017, 10 quilombolas já foram mortos no país – oito casos foram registrados na Bahia, e seis foram vítimas de chacina na comunidade localizada na zona rural de Lençóis, na Chapada da Diamantina

“Se o decreto 4887/2003 “cair” isso vai piorar ainda mais”, escrevem. E denunciam: “Para nós mulheres quilombolas é tudo muito pior. Nós somos violentadas, estupradas e agredidas física e psicologicamente todos os dias. Quando o povo está vulnerável, as mulheres sofrem ainda mais. O território ajuda a nos proteger pois lá podemos viver uma vida com mais dignidade e felicidade”.

Comunidades tradicionais

Presidenta da Associação de Remanescentes de  Quilombos do Arapemã residentes no Maicá, Lídia Roberta de Matos Amaral fala que a garantia da titulação dos territórios pode trazer mais segurança para as comunidades. “Assim ninguém pode tirar a gente de lá. Se a gente não tiver como comprovar, a gente acaba sendo levado e perde aquele espaço. Perde tudo!”

Segundo Lídia, que é também integrante do grupo ‘Na raça e na cor’, há uma compreensão diferente da noção de “casa” para quilombolas. A casa não é apenas uma construção, mas todo o território onde desenvolvem sua cultura. “A gente nasce lá, aprende que tem que cuidar do meio ambiente, e de lá a gente tira a alimentação, a água e tudo que a gente precisa”.

E fala sobre a necessidade de potencializar a organização de mulheres quilombolas pelo reconhecimento de suas ações. “Nós ainda somos muito desrespeitadas. Nossa luta não é levada a sério”.

Julgamento no STF

A Ação Direta de Inconstitucionalidade I 3239 tramita no Supremo Tribunal Federal desde 2004, quando o DEM (antigo PFL) ajuizou a ação com o objetivo de declarar a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03. Esse decreto regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

O julgamento foi iniciado em 2012, quando o Ministro Cezar Peluso votou pela inconstitucionalidade do decreto. Após o voto do ministro Peluso, a Ministra Rosa Weber pediu vistas do processo. O julgamento foi somente retomado em março de 2015, quando a Ministra Rosa Weber votou pela constitucionalidade do decreto, empatando a votação. Com o pedido de vistas pelo Ministro Dias Toffoli, a decisão ficou suspensa.

O julgamento deve ser retomado no próximo dia 16 de agosto, em Brasília.

Leia a íntegra da Carta abaixo:

Carta das mulheres quilombolas

Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Ministro do Egrégio Supremo Tribunal Federal. Exmo. Alexandre de Moraes

Referência: Ação Direta de Inconstitucionalidade n°3239/04/DF

Estivemos reunidas no encontro de mulheres quilombolas do Baixo Amazonas, em Santarém-PA, nos dias 08 e 09 de julho de 2017 e discutimos o julgamento da ADI 3239 no STF.

Nós, mulheres quilombolas, temos uma relação muito forte como o nosso território. Dele nós retiramos o nosso sustento, o de nossas famílias e também os remédios naturais para nossa vida. Temos saberes que herdamos de nossas ancestrais sobre como plantar, colher, pescar, fazer partos e usar as plantas medicinais para cura de toda a comunidade. O território é a nossa mãe, o nosso alimento e a nossa vida.

Imaginem vocês, Senhores Ministros e Ministras, retirar e ameaçar um território que é a vida e sobrevivência de várias famílias, local onde concentra toda sua cultura, memória e ancestralidade. Quem retira o povo de sua terra é perverso e foi assim que fizeram com nossas ancestrais quando as retiraram à força da África e trouxeram para o Brasil, escravizadas. Destruíram famílias, separaram as mães de seus filhos, nos violentaram e massacram a história e cultura de um povo.

Ao longo dos séculos de resistência negra no Brasil nós fomos de novo nos juntando, construindo e reconstruindo nossa história. O quilombo é a nossa fortaleza. Não podem retirar tudo isso que construímos com muita luta. Que justiça é essa que tira o pouco que a nossa família conquistou através de muitos anos de luta e resistência?

Hoje vivemos ameaçadas pelos latifundiários, fazendeiros e grandes empresas que têm interesses nos nossos territórios. Vocês devem estar acompanhando a guerra que está acontecendo no meio rural hoje, com tantas mortes e violência contra quilombolas, indígenas e sem terras. Isso é responsabilidade do estado que não cumpre o seu dever e nos deixa na mira dos latifundiários, grandes empresas e empreendimentos multinacionais que usam toda a força e violência contra nós. Se o decreto 4887/2003 “cair” isso vai piorar ainda mais.

Então nós vos perguntamos senhores e senhoras: Quantas vidas ainda serão perdidas nessa guerra por poder e disputas por terras no nosso país? Quantos dos nossos parentes, amigos e companheiros/as ainda teremos que enterrar antes do Brasil se manifestar? Uma coisa é certa: Nós, mulheres quilombolas, nunca desistiremos de nossos territórios e lutaremos por ele até o fim.

Para nós mulheres quilombolas é tudo muito pior. Nós somos violentadas, estupradas e agredidas física e psicologicamente todos os dias. Quando o povo está vulnerável, as mulheres sofrem ainda mais porque a violência contra nós é muito grave. O território ajuda a nos proteger pois lá podemos viver uma vida com mais dignidade e felicidade. Para isso, precisamos que nossos quilombos sejam titulados e que o decreto 4887/2003 permaneça.

Não vamos aceitar de maneira nenhuma que o quilombo seja retirado do nosso povo. Vivemos e vamos morrer em nossas terras, que foram conquistadas através de muita luta e sangue do povo negro desse país.

Nós resistiremos!

Grupo de Mulheres Na Raça e na Cor – Federação das Organizações Quilombolas de Santarém

Subscrevem:

Articulação de Organizações de Mulheres Negras do Brasil

Mulheres da Coordenação Nacional da Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ

Encontro de Jovens Negras Feministas

Foto: Terra de Direitos

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